Mais uma achega à rejeição do AO de 1990, com que nos vamos entretendo e entristecendo, no ocaso
da ilusão do “Surge et ambula” da inteligência nacional que, tão embrulhada
como a sua alma mater, fez resvalar a língua para uma mixórdia inconcebível de
asneiras, lançadas no papel ou no vento, ao sabor das sapiências cada vez mais
débeis, das escritas e das pronúncias, a que esse acervo de monstruosidades
deu direito. Trata-se de um artigo esplendidamente esclarecedor dos motivos por
que se fala – e deixará de falar – de uma determinada maneira e não de outra,
com assento na etimologia das palavras, que asnaticamente se decidiu
simplificar na sua escrita, com consequências asneirentas sobre a pronúncia.
Creio que é caso único, na história do mundo dito civilizado, tal praga
ortográfica com consequências na ortofonia de um povo que fora criador de
nações. A verdade é que, ao perder, sem pejo, essas nações, também se não
importaria, naturalmente, de perder a língua, embora reclame muito pela perda
da TAP e de outros trastes do seu território escarrado.
Mas admiro sempre quem ainda se
atreve a protestar, tão brilhantemente inútil, como o professor da Universidade
de Évora que escreveu no Público ontem:
O AO90 e o afastamento entre as variantes da língua portuguesa
Hélio J. S. Alves
Público, 8/10/15
Há
uns anos, fora de qualquer conversa sobre ortografias e acordos, uma amiga
exclamou comigo, quase indignada: “Mas por que razão dizes vàcina?! Escreve-se
vacina, toda a gente diz vacina, não percebo essa tua mania.”
Apanhado
de surpresa, só podia dizer que não sabia, não tinha pensado nisso. Achei então
que aquele A escancarado devia ser algum resquício meu de sotaque nortenho.
Mais tarde ocorreu-me que dizer vacina, com aquele
primeiro A tépido e preguiçoso, poderia ser outro tipo de sotaque, de Lisboa,
já que a minha amiga é lisboeta. E como nunca se fala em sotaque de Lisboa
(Lisboa pensa que, sendo Lisboa, não tem sotaque), a minha amiga estaria a ser
vítima de mais um caso de lisbonocentrismo (palavra que, se não existe, devia
existir). Fosse como fosse, nunca mais esqueci o remoque. E mais tarde percebi
o que aconteceu. Eu dizia vàcina, sem o saber,
porque a palavra vem do latim vaccina e a consoante
geminada no latim produz certos efeitos na evolução das línguas românicas que
podem ter a ver, como no caso do português, com a articulação da primeira
consoante e/ou com a abertura ou prolongamento da vogal anterior. Um caso de
oralidade instintiva. A minha amiga, pelo contrário, dizia vacina porque é alfabetizada e sabe ler. Quer
dizer, eu abria muito aquele A porque essa é uma das formas que existem em
português para manifestar a presença fónica da palavra latina original. A minha
amiga fechava o mesmo A porque, com a consagração da grafia vacina, deixou de ver, e bem, qualquer razão para
o conservar aberto.
As
reformas ortográficas da língua portuguesa realizadas no século XX (em 1911, em
1945 etc.) transformaram grafias como vaccina
em vacina. Contribuíram assim,
decisivamente, para a alteração da prosódia, a alteração da maneira como a
palavra é articulada nos sons, na sua duração, timbre, ritmo etc. Deixou de existir uma das marcas, um dos
sinais, que indicava a pronúncia correcta da palavra. Como tal, a pronúncia foi
mudando até chegar àquela vacina de hoje, com o
tal A lânguido e abatido.
Uma
das consequências mais espectaculares desta mudança ou simplificação
ortográfica foi a de afastar o português falado de Portugal do português falado
do Brasil. Os brasileiros continuam a dizer vàcina, pelas
razões que eles lá saberão, nós por cá já não vemos razões para dizer senão vacina. Com a ideia de unificação gráfica entre
variantes da língua portuguesa, o que se conseguiu foi precisamente o contrário
ao nível da oralidade. Curiosamente, as mesmas pessoas que defendem tal simplificação e unificação ortográficas são as mesmas que
lamentam a forma cerrada como os portugueses pronunciam a sua língua hoje.
Pudera! Se as palavras vão perdendo os sinais escritos que indicam a prosódia,
como se pode esperar que o português falado de Portugal, onde os níveis de
analfabetismo absoluto são cada vez mais residuais, conserve vogais abertas e
consoantes articuladas?
O
acordo ortográfico de 1990, ao declarar que se deve escrever “receção”,
“setor”, “deteta” e “ativo” porque essas palavras se pronunciam assim
em Portugal, não somente está a levar ao delírio velhas e
bafientas noções de simplificação e unificação, mas está também a construir uma
gigantesca mistificação. Essas palavras ainda não
se pronunciam assim em Portugal. Mas, como aconteceu com vaccina/vacina, virão em breve a pronunciar-se
como surgem escritas, se não se acabar o mais depressa possível com o AO90.
Assim, “receção” não vai distinguir-se oralmente de “recessão”, nem “deteta” se
deixará de parecer com “de teta”. O AO90 literalmente educa-me para não dizer
“activamente”, como eu sempre disse – com aquele primeiro A bem aberto --, mas
sim “ativamente”, com aquele A prostrado, historicamente errado, e, ainda por
cima, completamente irreconhecível para um brasileiro. Isto é, o AO90 consegue
concretizar duas grossíssimas asneiras ao mesmo tempo: deseduca-me como falante
do português e presta um péssimo serviço à unidade transcontinental da língua.
Para
evitar acusações como aquelas que acabo de formular, o AO90 apressou-se a
oferecer alternativas. Certas palavras passam a poder escrever-se de mais do
que uma maneira. Com P ou sem P, com hífen ou sem hífen, com acento agudo ou
com acento circunflexo, com letra maiúscula ou com letra minúscula, e por aí
fora. Salvando assim a unidade da Língua. Haverá escrita para todos os
paladares; no fundo, deixará de haver ortografia (“escrita correcta”) para
haver, dizem, língua portuguesa. Uma vez que o acordo é, então, a consagração
dum desacordo, o absurdo do argumento nem merece resposta. Infelizmente, porém,
a sopa-de-letras-para-todos-os-gostos que é o AO90 dá-me todas as opções menos
a de redigir vaccina, para perceber
donde vem a palavra, como se escreve e pronuncia, e porquê. O AO90 dá tudo, tudo, a portugueses,
brasileiros, angolanos, moçambicanos e tantos mais, menos a única coisa que
talvez nos interesse na língua portuguesa: escrever e dizer bem.
Professor da Universidade de Évora
Nenhum comentário:
Postar um comentário