sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Deitar pérolas…



Mais uma achega à rejeição do AO de 1990, com que nos vamos entretendo e entristecendo, no ocaso da ilusão do “Surge et ambula” da inteligência nacional que, tão embrulhada como a sua alma mater, fez resvalar a língua para uma mixórdia inconcebível de asneiras, lançadas no papel ou no vento, ao sabor das sapiências cada vez mais débeis, das escritas e das pronúncias, a que esse acervo de monstruosidades deu direito. Trata-se de um artigo esplendidamente esclarecedor dos motivos por que se fala – e deixará de falar – de uma determinada maneira e não de outra, com assento na etimologia das palavras, que asnaticamente se decidiu simplificar na sua escrita, com consequências asneirentas sobre a pronúncia. Creio que é caso único, na história do mundo dito civilizado, tal praga ortográfica com consequências na ortofonia de um povo que fora criador de nações. A verdade é que, ao perder, sem pejo, essas nações, também se não importaria, naturalmente, de perder a língua, embora reclame muito pela perda da TAP e de outros trastes do seu território escarrado.
Mas admiro sempre quem ainda se atreve a protestar, tão brilhantemente inútil, como o professor da Universidade de Évora que escreveu no Público ontem:

O AO90 e o afastamento entre as variantes da língua portuguesa
Hélio J. S. Alves
Público, 8/10/15
Há uns anos, fora de qualquer conversa sobre ortografias e acordos, uma amiga exclamou comigo, quase indignada: “Mas por que razão dizes vàcina?! Escreve-se vacina, toda a gente diz vacina, não percebo essa tua mania.”
Apanhado de surpresa, só podia dizer que não sabia, não tinha pensado nisso. Achei então que aquele A escancarado devia ser algum resquício meu de sotaque nortenho. Mais tarde ocorreu-me que dizer vacina, com aquele primeiro A tépido e preguiçoso, poderia ser outro tipo de sotaque, de Lisboa, já que a minha amiga é lisboeta. E como nunca se fala em sotaque de Lisboa (Lisboa pensa que, sendo Lisboa, não tem sotaque), a minha amiga estaria a ser vítima de mais um caso de lisbonocentrismo (palavra que, se não existe, devia existir). Fosse como fosse, nunca mais esqueci o remoque. E mais tarde percebi o que aconteceu. Eu dizia vàcina, sem o saber, porque a palavra vem do latim vaccina e a consoante geminada no latim produz certos efeitos na evolução das línguas românicas que podem ter a ver, como no caso do português, com a articulação da primeira consoante e/ou com a abertura ou prolongamento da vogal anterior. Um caso de oralidade instintiva. A minha amiga, pelo contrário, dizia vacina porque é alfabetizada e sabe ler. Quer dizer, eu abria muito aquele A porque essa é uma das formas que existem em português para manifestar a presença fónica da palavra latina original. A minha amiga fechava o mesmo A porque, com a consagração da grafia vacina, deixou de ver, e bem, qualquer razão para o conservar aberto.
As reformas ortográficas da língua portuguesa realizadas no século XX (em 1911, em 1945 etc.) transformaram grafias como vaccina em vacina. Contribuíram assim, decisivamente, para a alteração da prosódia, a alteração da maneira como a palavra é articulada nos sons, na sua duração, timbre, ritmo etc. Deixou de existir uma das marcas, um dos sinais, que indicava a pronúncia correcta da palavra. Como tal, a pronúncia foi mudando até chegar àquela vacina de hoje, com o tal A lânguido e abatido.
Uma das consequências mais espectaculares desta mudança ou simplificação ortográfica foi a de afastar o português falado de Portugal do português falado do Brasil. Os brasileiros continuam a dizer vàcina, pelas razões que eles lá saberão, nós por cá já não vemos razões para dizer senão vacina. Com a ideia de unificação gráfica entre variantes da língua portuguesa, o que se conseguiu foi precisamente o contrário ao nível da oralidade. Curiosamente, as mesmas pessoas que defendem tal simplificação e unificação ortográficas são as mesmas que lamentam a forma cerrada como os portugueses pronunciam a sua língua hoje. Pudera! Se as palavras vão perdendo os sinais escritos que indicam a prosódia, como se pode esperar que o português falado de Portugal, onde os níveis de analfabetismo absoluto são cada vez mais residuais, conserve vogais abertas e consoantes articuladas?
O acordo ortográfico de 1990, ao declarar que se deve escrever “receção”, “setor”, “deteta” e “ativo” porque essas palavras se pronunciam assim em Portugal, não somente está a levar ao delírio velhas e bafientas noções de simplificação e unificação, mas está também a construir uma gigantesca mistificação. Essas palavras ainda não se pronunciam assim em Portugal. Mas, como aconteceu com vaccina/vacina, virão em breve a pronunciar-se como surgem escritas, se não se acabar o mais depressa possível com o AO90. Assim, “receção” não vai distinguir-se oralmente de “recessão”, nem “deteta” se deixará de parecer com “de teta”. O AO90 literalmente educa-me para não dizer “activamente”, como eu sempre disse – com aquele primeiro A bem aberto --, mas sim “ativamente”, com aquele A prostrado, historicamente errado, e, ainda por cima, completamente irreconhecível para um brasileiro. Isto é, o AO90 consegue concretizar duas grossíssimas asneiras ao mesmo tempo: deseduca-me como falante do português e presta um péssimo serviço à unidade transcontinental da língua.
Para evitar acusações como aquelas que acabo de formular, o AO90 apressou-se a oferecer alternativas. Certas palavras passam a poder escrever-se de mais do que uma maneira. Com P ou sem P, com hífen ou sem hífen, com acento agudo ou com acento circunflexo, com letra maiúscula ou com letra minúscula, e por aí fora. Salvando assim a unidade da Língua. Haverá escrita para todos os paladares; no fundo, deixará de haver ortografia (“escrita correcta”) para haver, dizem, língua portuguesa. Uma vez que o acordo é, então, a consagração dum desacordo, o absurdo do argumento nem merece resposta. Infelizmente, porém, a sopa-de-letras-para-todos-os-gostos que é o AO90 dá-me todas as opções menos a de redigir vaccina, para perceber donde vem a palavra, como se escreve e pronuncia, e porquê. O AO90 dá tudo, tudo, a portugueses, brasileiros, angolanos, moçambicanos e tantos mais, menos a única coisa que talvez nos interesse na língua portuguesa: escrever e dizer bem.
Professor da Universidade de Évora

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