terça-feira, 27 de outubro de 2015

Um intervencionismo às avessas



Nos tempos de Salazar, houve uma literatura de resistência ao regime chamado de ditadura, que punha a nu, persistentemente, os contrastes sociais, numa absurda dicotomia entre o Bem e o Mal, entre os do bem-estar e da exploração e os que os serviam na humilhação da ignorância, da servilidade e da sua miséria de explorados. Uma literatura de pesadelo, desses ledores – ou não (a moda conta muito também)– de Marx, em que a virtude se punha do lado dos tristes, por vezes revoltados, os maus no seu papel prepotente, sendo os juízos de valor, condenatórios do regime, sempre subjacentes às suas intrigas ficcionais, de natural escassez de criatividade e originalidade. E, afinal, de honestidade crítica, numa generalização de ataque, que ignorou tanto das realizações dos tempos de Salazar, quer no desenvolvimento material, quer na própria elevação das classes sociais, pela instrução libertadora, embora dentro de princípios de rigidez e convenção que, aliás, eram conceitos da época, dado que a liberalização dos costumes viria com o progresso, em toda a parte. Quanto ao nosso analfabetismo, ele é mais antigo do que a Sé de Braga, Salazar tinha costas largas, coitado, para abarcar mais essa responsabilidade de ter votado o povo à incultura.
A democracia libertária, virando do avesso os princípios de contenção e educação, trouxe o ruído, o espalhafato, o despudor, o vale-tudo da indisciplina sem as normas de respeito a valores que dantes eram sagrados – entre os quais o do aforismo “o seu a seu dono”, que escandalosamente quebramos para alcançarmos o que não obteríamos a não ser usurpando.
O PC e compadrio vão poder agora pôr em prática aquilo em que há tanto tempo fazem finca-pé – a defesa dos direitos dos trabalhadores – que são quem conta para eles, nesse seu governo de usurpação, que Passos Coelho não vai conseguir vencer, tendo vencido. A nossa sociedade mais p’r’ó vermelho, segundo fizeram constar, apesar da abstenção ser ainda superior à participação eleitoral, entende que num país de touradas o vermelho assenta a matar e escolheu o vermelho.
É Alberto Gonçalves que, de espada em riste, aponta essa comédia vermelha de aparente defesa de liberdades e direitos populares dos tempos do fascismo, traduzida por uma ânsia real de ditadura repressiva que os nossos próprios comunistas manifestaram, quando aqui governaram no pós Abril, e que tantos por esse mundo exploraram e exploram em brutalidade repressiva.
Um texto intervencionista, este de Alberto Gonçalves, corajoso, inteligente, de uma psicologia humorística e penetrante e de um conhecimento real dos cordelinhos da nossa perspicácia e malícia. Espécie de intervencionismo às avessas, desmascarando os reais propósitos e ambições desses e dessas figuras de santidade da nossa veneração pacóvia, que muito mergulha na mesquinhez da inveja.
Uma comédia vermelha
Alberto Gonçalves
DN, 25/10/15
Entre as misérias que o salazarismo nos legou, uma das piores foi o mito de que o PCP combateu a ditadura em nome da liberdade. No mundo real, o PCP lutava por uma ditadura mais repressiva, da qual aliás se espreitou o grotesco rosto em 1975. Em 2015, é ridículo - e sobretudo triste - ter de o lembrar. Mas a lenda da "generosidade" comunista resistiu ao 25 de Novembro, à queda do Muro e à enésima divulgação das carnificinas pedagógicas inspiradas por Marx. Em países sem tradição autocrática recente, o comunismo, em qualquer das sangrentas variantes, é o tique nervoso de uns poucos excêntricos, geralmente confinados à universidade ou ao manicómio. Graças ao Estado Novo, os comunistas nativos chegam a 20% no Parlamento. E, em estimativa moderada, a uns 50% nos media.
É por isso que, por cá, cada avanço da "extrema-direita" no "estrangeiro" equivale às trombetas do Apocalipse, enquanto a ascensão caseira de PCP e BE é a abertura necessária a forças e eleitores injustamente marginalizados. Nestes dias, não faltam idiotas úteis e inúteis a celebrar o fim do "arco da governação". Embora feiinha, a expressão não é absurda: convém limitar o governo de uma democracia a partidos cujo desígnio não consista na aniquilação da dita. Isto para dizer que Cavaco Silva esteve bem.
Imagine-se uma história alternativa. Imagine-se que o PS ganhava as eleições sem maioria nem indícios de apoio parlamentar. Imagine-se que o PSD e o CDS ensandeciam e namoravam os deputados do PNR e do recém--legalizado MIRN para estabelecer uma frente de direita e formar governo. Imagine-se que o presidente António Guterres rejeitava a possibilidade sob o argumento de que a frágil situação nacional não deveria ser comprometida por forças avessas aos, cito, "grandes compromissos", do euro à NATO, do Tratado Orçamental à UE. Quantos dos que agora berram contra a "parcialidade" de Cavaco Silva berrariam nesse dia contra a "parcialidade" de Guterres?
Desconfio que poucos: para a esquerda, a parcialidade naturalmente só incomoda quando não a beneficia. Os ataques desenfreados de Soares às maiorias de Cavaco (ambas sem o MIRN e o PNR) foram uma espectacular manifestação de consciência cívica. Os truques de Sampaio para despachar a maioria absoluta da "direita" (de novo sem o MIRN e o PNR) e consagrar Sócrates foram a prova de que tínhamos estadista. A aparente rejeição de Cavaco a qualquer "solução" que envolva a extrema-esquerda é, a acreditar no berreiro que por aí vai, uma vingança inconstitucional.
Apenas um pormenor: não é. A Sagrada Constituição permite que o PR faça o que ameaçou fazer e, face ao avanço de radicais perigosos e derrotados, prefira um governo dito de "gestão". A esquerda não gosta? A "direita", por acaso a "direita" que elegeu Cavaco Silva, sim. Legalidade por legalidade, legitimidade por legitimidade, é tudo questão de gosto.
Eu limito-me a achar que as consequências de um governo limitado na decisão são menos nefastas do que as consequências de um governo ilimitado na alucinação. Haverá quem ache o contrário e julgue que o PR escolheu o partido em lugar do país. Por acaso, é evidente que escolheu o país em lugar do partido: para o PSD (e a coligação), oito meses de oposição a um bando de nulidades chantageadas por fanáticos seria uma mina eleitoral. Seria porém uma calamidade talvez definitiva para Portugal.
Se, como é plausível, Passos Coelho e Portas recusarem o arranjo da "gestão", assistirão na plateia à comédia da "muralha de aço" (este PS demente já adoptou a expressão) e, lá para Julho, garantem maioria nunca vista. O problema é que, entretanto, o hilariante espectáculo terá tornado anacrónica a proverbial comparação com a Grécia: a curto prazo, habilitamo-nos a ser a Venezuela. E não sobrará ninguém para rir.
Sexta-feira, 23 de Outubro
Bonequinhos de corda
"A gente já sabe que o governo vai cair, pá", afirmou Jorge Coelho na Quadratura do Círculo. E o sorriso dele resumia todo um mundo. Um mundo em que os mesmos deputados em que a esquerda fundamenta o discurso de vitória valem exactamente zero.
Já antes da "comunicação" de Cavaco Silva, a esquerda achava que indigitar Passos Coelho seria "perda de tempo". Depois da "comunicação", a impaciência converteu-se em típica indignação, mas manteve-se a certeza de que não valeria a pena acreditar na individualidade de uma única das cabecinhas que enfeitam a Assembleia da República. E se, porque nunca fizeram outra coisa na vida, não admira que os serviçais de PCP e BE se prestem a tamanho vexame, há certa melancolia em suspeitar que os parlamentares socialistas se satisfazem com o papel de bonequinhos aos quais o chefe dá corda para aprovar ou vetar o que o chefe decide.
Ao apostar tudo, ou quase tudo, na vontade própria dos bonequinhos, Cavaco Silva exagerou no optimismo. Ou me engano bastante ou os "espíritos livres" do PS esgotaram-se nos três ou quatro casos de independência revelados desde 4 de Outubro. Não consta que nos próximos dias se multipliquem as rebeliões: por muito que abominem a abdicação perante os partidos comunistas, a ambição de partilhar um pedacinho do poder é grande, e o medo de arriscar a carreira é maior ainda. À esquerda e não só à esquerda, a vasta maioria dos "representantes do povo" não representa nada, excepto a fraude a que o regime desceu. E que abre caminho a regimes piores.

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