Nos tempos de Salazar, houve uma literatura de
resistência ao regime chamado de ditadura, que punha a nu, persistentemente, os
contrastes sociais, numa absurda dicotomia entre o Bem e o Mal, entre
os do bem-estar e da exploração e os que os serviam na humilhação da
ignorância, da servilidade e da sua miséria de explorados. Uma literatura de
pesadelo, desses ledores – ou não (a moda conta muito também)– de Marx, em que
a virtude se punha do lado dos tristes, por vezes revoltados, os maus no seu
papel prepotente, sendo os juízos de valor, condenatórios do regime, sempre
subjacentes às suas intrigas ficcionais, de natural escassez de criatividade e
originalidade. E, afinal, de honestidade crítica, numa generalização de ataque,
que ignorou tanto das realizações dos tempos de Salazar, quer no
desenvolvimento material, quer na própria elevação das classes sociais, pela
instrução libertadora, embora dentro de princípios de rigidez e convenção que,
aliás, eram conceitos da época, dado que a liberalização dos costumes viria com
o progresso, em toda a parte. Quanto ao nosso analfabetismo, ele é mais antigo
do que a Sé de Braga, Salazar tinha costas largas, coitado, para abarcar mais
essa responsabilidade de ter votado o povo à incultura.
A democracia libertária, virando do avesso os
princípios de contenção e educação, trouxe o ruído, o espalhafato, o despudor, o
vale-tudo da indisciplina sem as normas de respeito a valores que dantes eram
sagrados – entre os quais o do aforismo “o seu a seu dono”, que
escandalosamente quebramos para alcançarmos o que não obteríamos a não ser usurpando.
O PC e compadrio vão poder agora pôr em prática
aquilo em que há tanto tempo fazem finca-pé – a defesa dos direitos dos
trabalhadores – que são quem conta para eles, nesse seu governo de usurpação,
que Passos Coelho não vai conseguir vencer, tendo vencido. A nossa sociedade
mais p’r’ó vermelho, segundo fizeram constar, apesar da abstenção ser ainda
superior à participação eleitoral, entende que num país de touradas o vermelho
assenta a matar e escolheu o vermelho.
É Alberto Gonçalves que, de espada em riste,
aponta essa comédia vermelha de aparente defesa de liberdades e direitos populares
dos tempos do fascismo, traduzida por uma ânsia real de ditadura repressiva que
os nossos próprios comunistas manifestaram, quando aqui governaram no pós
Abril, e que tantos por esse mundo exploraram e exploram em brutalidade
repressiva.
Um texto intervencionista, este de Alberto
Gonçalves, corajoso, inteligente, de uma psicologia humorística e penetrante e
de um conhecimento real dos cordelinhos da nossa perspicácia e malícia. Espécie
de intervencionismo às avessas, desmascarando os reais propósitos e ambições
desses e dessas figuras de santidade da nossa veneração pacóvia, que muito
mergulha na mesquinhez da inveja.
Uma comédia vermelha
Alberto Gonçalves
DN, 25/10/15
Entre as misérias que o salazarismo nos legou, uma das
piores foi o mito de que o PCP combateu a ditadura em nome da liberdade. No
mundo real, o PCP lutava por uma ditadura mais repressiva, da qual aliás se
espreitou o grotesco rosto em 1975. Em 2015, é ridículo - e sobretudo triste -
ter de o lembrar. Mas a lenda da "generosidade" comunista resistiu ao
25 de Novembro, à queda do Muro e à enésima divulgação das carnificinas
pedagógicas inspiradas por Marx. Em países sem tradição autocrática recente, o
comunismo, em qualquer das sangrentas variantes, é o tique nervoso de uns
poucos excêntricos, geralmente confinados à universidade ou ao manicómio.
Graças ao Estado Novo, os comunistas nativos chegam a 20% no Parlamento. E, em
estimativa moderada, a uns 50% nos media.
É por isso que, por cá, cada avanço da
"extrema-direita" no "estrangeiro" equivale às trombetas do
Apocalipse, enquanto a ascensão caseira de PCP e BE é a abertura necessária a
forças e eleitores injustamente marginalizados. Nestes dias, não faltam idiotas
úteis e inúteis a celebrar o fim do "arco da governação". Embora
feiinha, a expressão não é absurda: convém limitar o governo de uma democracia
a partidos cujo desígnio não consista na aniquilação da dita. Isto para
dizer que Cavaco Silva esteve bem.
Imagine-se uma história alternativa. Imagine-se que o
PS ganhava as eleições sem maioria nem indícios de apoio parlamentar.
Imagine-se que o PSD e o CDS ensandeciam e namoravam os deputados do PNR e do
recém--legalizado MIRN para estabelecer uma frente de direita e formar governo.
Imagine-se que o presidente António Guterres rejeitava a possibilidade sob o
argumento de que a frágil situação nacional não deveria ser comprometida por
forças avessas aos, cito, "grandes compromissos", do euro à NATO, do Tratado
Orçamental à UE. Quantos dos que agora berram contra a "parcialidade"
de Cavaco Silva berrariam nesse dia contra a "parcialidade" de
Guterres?
Desconfio
que poucos: para a esquerda, a parcialidade naturalmente só incomoda quando não
a beneficia. Os ataques desenfreados de Soares às maiorias de Cavaco
(ambas sem o MIRN e o PNR) foram uma espectacular manifestação de consciência
cívica. Os truques de Sampaio para despachar a maioria absoluta da
"direita" (de novo sem o MIRN e o PNR) e consagrar Sócrates foram a prova
de que tínhamos estadista. A aparente rejeição de Cavaco a qualquer
"solução" que envolva a extrema-esquerda é, a acreditar no berreiro
que por aí vai, uma vingança inconstitucional.
Apenas
um pormenor: não é. A Sagrada Constituição permite que o PR faça o que ameaçou
fazer e, face ao avanço de radicais perigosos e derrotados, prefira um governo
dito de "gestão". A esquerda não gosta? A "direita", por
acaso a "direita" que elegeu Cavaco Silva, sim. Legalidade por
legalidade, legitimidade por legitimidade, é tudo questão de gosto.
Eu
limito-me a achar que as consequências de um governo limitado na decisão são
menos nefastas do que as consequências de um governo ilimitado na alucinação.
Haverá quem ache o contrário e julgue que o PR escolheu o partido em lugar do
país. Por acaso, é evidente que escolheu o país em lugar do partido: para o PSD
(e a coligação), oito meses de oposição a um bando de nulidades chantageadas
por fanáticos seria uma mina eleitoral. Seria porém uma calamidade talvez
definitiva para Portugal.
Se,
como é plausível, Passos Coelho e Portas recusarem o arranjo da
"gestão", assistirão na plateia à comédia da "muralha de
aço" (este PS demente já adoptou a expressão) e, lá para Julho, garantem
maioria nunca vista. O problema é que, entretanto, o hilariante espectáculo
terá tornado anacrónica a proverbial comparação com a Grécia: a curto prazo,
habilitamo-nos a ser a Venezuela. E não sobrará ninguém para rir.
Sexta-feira,
23 de Outubro
Bonequinhos de corda
"A
gente já sabe que o governo vai cair, pá", afirmou Jorge Coelho na
Quadratura do Círculo. E o sorriso dele resumia todo um mundo. Um mundo em que
os mesmos deputados em que a esquerda fundamenta o discurso de vitória valem
exactamente zero.
Já
antes da "comunicação" de Cavaco Silva, a esquerda achava que
indigitar Passos Coelho seria "perda de tempo". Depois da
"comunicação", a impaciência converteu-se em típica indignação, mas
manteve-se a certeza de que não valeria a pena acreditar na individualidade de
uma única das cabecinhas que enfeitam a Assembleia da República. E se, porque
nunca fizeram outra coisa na vida, não admira que os serviçais de PCP e BE se
prestem a tamanho vexame, há certa melancolia em suspeitar que os parlamentares
socialistas se satisfazem com o papel de bonequinhos aos quais o chefe dá corda
para aprovar ou vetar o que o chefe decide.
Ao
apostar tudo, ou quase tudo, na vontade própria dos bonequinhos, Cavaco Silva
exagerou no optimismo. Ou me engano bastante ou os "espíritos livres"
do PS esgotaram-se nos três ou quatro casos de independência revelados desde 4
de Outubro. Não consta que nos próximos dias se multipliquem as rebeliões: por
muito que abominem a abdicação perante os partidos comunistas, a ambição de
partilhar um pedacinho do poder é grande, e o medo de arriscar a carreira é
maior ainda. À esquerda e não só à esquerda, a vasta maioria dos
"representantes do povo" não representa nada, excepto a fraude a que
o regime desceu. E que abre caminho a regimes piores.
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