A
“O PS passou-se?” de João Miguel Tavares, de 22/10, segue-se, na
mesma linha temática, o artigo de Vasco Pulido Valente “A loucura
estabelecida” de 23/10. Duas pessoas razoavelmente sensatas que se
mortificam à ideia de um governo de esquerda, e sobretudo da maneira como foi
forjado, governo de garotos brincando aos governos, como se estes fossem
bonecos de uma infância descuidada e fantasiosa. Ambos os comentaristas apontam
o inverosímil do procedimento de António Costa, cabeça oca de sorriso alvar, na
satisfação do piparote com que julga dirigir os destinos de uma pátria que
provavelmente despreza, como os seus congéneres de última hora, senão não se
envolveria isoladamente num pretensioso e sinistro caminho de destruição, de
que os ditos cronistas apontam as incongruências e os resultados negativos a
esperar.
João
Miguel Tavares concede, todavia, razões a Costa - o que não admira, pessoa que
pretende ser honestamente e inteligentemente isenta, sentado que fica a uma
mesma mesa de humor destrutivo e brincalhão num programa que Ricardo Araújo
Pereira pontua com a sua irreverência de enormidades de salão. Não creio que Miguel
Tavares tenha razão nessas razões que atribui a Costa, e que são ditadas apenas
por cinismo e má fé deste.
Em
“A loucura estabelecida”, Vasco Pulido Valente historia os factos
com a sabedoria e ironia do costume, lançando críticas ao Dr. Cavaco pela sua
inércia, desculpável, julgo, por o artigo ser anterior à comunicação do PR de
indigitação do governo à coligação PAF. Um artigo que se lê na delícia da
desmistificação de uma pobre pretensiosa só possível neste pedaço de “jardim”
que espreita o mar dos nossos bronzeados. Na realidade, depois de ter ouvido
Marcelo Rebelo de Sousa, e a sua simpatia à esquerda, talvez para comer da
mesma gamela quando for presidente, o desprezo acentuou-se em mim, por um mesquinho
ser, nem carne nem peixe – mais um neste nosso tablado do bronze –
atrevidamente irresponsável agora que deixou de ser farfalhudamente decifrador
dos enigmas pátrios. E a admiração por Cavaco, que Pulido Valente
despreza, manteve-se, em mim, inabalável, pequeno gigante corajoso e altivo, a
contrastar com os muitos anões, na inquebrável firmeza, embora aparentando
debilidade (julgo que por timidez), do seu amor pátrio.
O texto de João Miguel Tavares
O PS passou-se?
Para
não ser logo muito bruto, deixem-me começar pelas questões em que António Costa
tem razão, ainda que alguma direita tenha dificuldade em admiti-lo.
Costa
tem razão na legitimidade de um Governo à esquerda, se Passos e Portas caírem
no Parlamento e o PS conseguir um acordo sólido com Bloco e PCP – eu não alinho
nas conversas de golpe de Estado. Costa tem razão quando diz que foi claro
durante a campanha eleitoral na rejeição do Bloco Central (o facto de ninguém o
ter levado a sério não é culpa sua). Costa também tem razão quando acredita que
a maior parte do PS está do seu lado. E Costa tem ainda razão quando intui que
a possibilidade de uma fragmentação do PS pode ser maior em caso de acordo com
a direita do que no caso de um acordo com a esquerda.
Costa
até tem razão em tentar prosseguir o seu caminho: quando olhamos para a
sondagem da passada segunda-feira na TVI, ela não disse o que muitos gostariam
que dissesse. Se os números do PS não mexem, isso significa que a quase
totalidade do seu eleitorado engoliu a patranha antiausteridade e deseja, em
primeiro lugar, que a coligação seja impedida de formar Governo. Quatro anos de
sacrifícios racharam o país ao meio – António Costa tinha um tubo de cola na
mão direita e martelo e escopro na mão esquerda. Optou pelo martelo e escopro.
Está no seu direito. E até combina melhor com a bandeira do PCP.
Mas,
como imaginam, tudo o que atrás ficou dito, todas as razões que atribuí a
António Costa, têm como premissa duas pequenas palavrinhas: “acordo sólido”.
“Acordo”, no sentido de “documento assinado”. E “sólido”, no sentido de
“aceitável dentro das metas do Tratado Orçamental”. É que, sem acordo, não há
nada. Sem acordo, há apenas um grupo de socialistas desesperados a rodopiar por
aí. Sem acordo, resta António Costa travestido de um Martim Moniz com défice
democrático, procurando com a bojuda perna esquerda impedir que a porta de São
Bento se feche na sua cara.
Deixem-me,
então, recorrer à brutidade: a figura que o PS fez na terça-feira, primeiro
pela voz do líder do PS, à saída do Palácio de Belém, e depois, à noite, na SIC
e na TVI, pelas vozes de Carlos César e de Pedro Nuno Santos, é das coisas mais
irresponsáveis e vergonhosas que me foram dadas a assistir na política
portuguesa. Quando questionado sobre os termos do acordo, Carlos César
respondeu: “Não lhe posso detalhar o acordo. Em primeiro lugar, ele não está
subscrito pelos seus parceiros. E, em segundo lugar, a sua divulgação só tem
interesse por ocasião da indigitação.” Está tudo doido?
Uma
resposta destas merecia nova manifestação na Fonte Luminosa. António Costa
tinha jurado na sexta-feira, em entrevista à TVI, que não iria chumbar um
Governo da coligação se não tivesse uma alternativa. Mas, na terça-feira,
embora essa alternativa não existisse nem se soubesse se iria existir, ele já
estava a pedir ao Presidente da República a indigitação para liderar o país.
Não há acordo, ninguém o viu, o PS acha que não tem de o mostrar, mas o Governo
só pode ser dele. Confirma-se: está mesmo tudo doido.
O
DN resumia o caso exemplarmente na sua manchete de ontem: “Governo à esquerda –
só falta que Costa, Catarina e Jerónimo assinem acordo.” No campeonato do wishful thinking, é das melhores
coisas que li até hoje. Dentro desse mesmo espírito, posso já revelar aqui o
título do meu próximo artigo: “João Miguel Tavares casa-se com Monica Bellucci,
Charlize Theron e Scarlett Johansson – só falta elas aceitarem”.
O
texto de Vasco Pulido Valente:
A loucura estabelecida
O
dr. Passos Coelho pediu “celeridade” a Cavaco. O dr. António Costa também pediu
a Cavaco “celeridade”. Cavaco não deu sinais de ter percebido esta extravagante
coincidência. Perceber nunca foi o forte dele. Mas, para uma pessoa normal, a
coisa é fácil. Passos Coelho quer ser indigitado primeiro, para obrigar o PS e
o seu séquito ao odioso de correr com ele em plena Assembleia da República.
Costa quer que o odioso de humilhar a direita fique para o Presidente. Se
Cavaco acordar a tempo, indigita Passos Coelho. Se por acaso se embrulhar na
intriga da “esquerda”, indigita Costa. Para fazer coro, Catarina Martins vai
dizendo pelos cantos que não se deve perder tempo com os deputados e prefere
designar directamente Costa. Ninguém a ouve, coitada, e, se ela não se achasse
tão importante, era capaz de chorar.
Na
tese de Costa e de Catarina há um minúsculo defeito: a escolha de Costa ignora
com entusiasmo a Assembleia da República. Os deputados são um rol de roupa suja
que os chefes trazem na carteira. Ganha o rol maior e o Presidente com toda a
humildade põe o carimbo. Pior ainda: o Presidente nem sequer pode examinar o
rol e apreciar o que lhe servem. Nem ele, nem nós. As negociações do PS com o
PC e o Bloco decorrem à revelia dos respectivos partidos, dos deputados, de
Cavaco e do público. A “esquerda” sempre gostou muito de conversas secretas,
em que se combina o que se combina, sem interferência da ralé e sem espécie
alguma de responsabilidade. Felizmente, a proverbial mansidão do povo português
permite esta política de corte como no século XVII ou no século XVIII.
Convém,
por isso, que a “opinião” não se inquiete. Estamos nas mãos de António,
Catarina e Jerónimo e mais duas dúzias de ajudantes? Estamos com certeza em
boas mãos. E, quando chegar o dia miraculoso da revelação, na Assembleia da
República e já com Costa a primeiro-ministro, o país responderá sem dúvida com
cantos de alegria. Claro que, ao princípio, muito pouca gente perceberá o
que se prepara. Não interessa: em Bruxelas vivem uns senhores com uns papéis, a
quem não escapa nada; e são eles que dispensam o caldo do convento. Os
peritos deste indispensável ingrediente não concordam com a data em que ele irá
acabar. Seis meses? Provavelmente um ano? Com sorte um ano e meio? Essas contas
não deixam de ser muito divertidas. E seriam mais, se não acabassem por nos
sair do pêlo.
Nota:
este artigo foi escrito antes da comunicação do Presidente da República, ontem
à noite.
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