“Dói-me Portugal”: Um texto sombrio, socorrendo-se de referências a poesia de Espanha, poesia,
segundo Pacheco Pereira, intraduzível noutras línguas em termos de
musicalidade, embora ele tenha traduzido dois versos para a sua analogia não
patriota, mas apenas pátria: “Uma das
duas Espanhas há-de gelar-te o coração”: “Um dos dois Portugais há-de gelar-te
o coração”.
E segue-se o tal aprofundamento das escrófulas
sociais, de hoje como de ontem, é certo,
mas por conveniência raivosa apenas responsabilizando os do governo que
se pavoneia, os do empresariado em posição de vénia, todo o resto – “os de
baixo” - no desemprego ou no emprego precário e, segundo a focalização dos
empregadores, descritos como “feios, porcos e maus”, querendo receber
sem trabalhar, à custa deles, dos patrões, em vez de “amocharem
disciplinadamente”.
Já depois deste artigo despejando recalcamentos e
ódios intemeratos, surgiu o tal esboço do rectângulo dividido em dois, na “Quadratura
do Círculo” pelo mesmo Pacheco Pereira, antecipando – e sugerindo - a proposta pós-eleitoral
de governação à esquerda, a qual esquerda cobre mais de metade do país, sem
referir a quase metade populacional dos que se abstiveram de votar, o que faz propor
a criação de um outro governo para estes, ou pondo-os a governar entre si,
embora pelo seu desprezo em participar num acto importante de cidadania, me
pareça que esses se estão nas tintas para quem quer que os governe – o que é
amorfo.
E assim se fomenta o ódio, nestas generalizações de
ataques raivosos de uma esquerda desejando ascender, tal como já o fizera
anteriormente durante o Processo Revolucionário em Curso de má memória, e que
Pacheco Pereira parece querer fazer renascer, com o seu historial sem ponta de
equilíbrio, num radicalismo desafogado em mágoas e ódios, que não ressalva os tantos
de uma população de facto “de brandos costumes”, não da hipocrisia de Salazar,
mas da sua sabedoria e inteligência crítica. Mas Pacheco Pereira parece desejar
mais os costumes jihadistas para expansão do seu Islão avassalador, ou mesmo apenas
a garra combativa de uma Espanha dos
idos de 36/38, atropelada em sangue fratricida, para expansão das suas teorias
falsamente humanitárias e desprezadoras da sua pátria.
E o “niño que empieza a vivir” terá o coração
gelado num desses dois Portugais, como já acontecera na Espanha, nos lamentos de
musicalidade intraduzível de António Machado, donde a conclusão de Pacheco
Pereira, ambicioso de um Portugal valiente, como a valiente España,
desta vez imitando as mágoas de Unamuno: “me duele España”, dói-me Portugal».
Dói-me Portugal
José Pacheco
Pereira
Público, 5/9/15
O
poema de Antonio Machado intitulado Españolito é, como muitos poemas seus,
intraduzível.
Eugénio
de Andrade dava os poemas de Antonio Machado como exemplo da impossibilidade,
no caso da poesia, de encontrar noutra língua, não as palavras certas, o que
ainda era possível, mas a “música” do poema, o modo como fluía o som dessas
palavras. Por isso, aqui vai
no original:
Ya hay un español que quiere
vivir y a vivir empieza,
entre una España que muere
y otra España que bosteza.
Españolito que vienes
al mundo te guarde Dios.
una de las dos Españas
ha de helarte el corazón.
É
um poema sinistro tanto quanto pode ser um poema. Estamos a caminho da
ferocidade da guerra civil espanhola: “uma das duas Espanhas / há-de gelar-te o
coração”. Não é hipotético, é certo. Morrerás em breve por uma ou por outra
dessas “duas Espanhas”. Como Machado, enterrado junto da Espanha mas do lado
francês, para onde fugiu quando a guerra estava perdida para a República.
O
tema das “duas Espanhas” é muito antigo e não é alheio também ao pensamento
português contemporâneo desde o século XIX. A ideia de que há “dois Portugais”
também por cá circulou, mas sem a dramaticidade e a fronteira talhada à faca,
com que existiu em Espanha. Houve sempre por cá mais mistura, mesmo nos
momentos em que “um Portugal” defrontou o “outro”, nas lutas liberais, na
República e na longa ditadura que preencheu metade do século XX português. A
essa mistura Salazar chamava a “brandura dos nossos costumes”, uma enorme
mentira em que os poderosos desejam acreditar e nem ele acreditava. Também ele
era capaz de, com o seu enorme cinismo, agradecer aos portugueses terem sido
tão “pacíficos” durante a crise.
Hoje,
“dois Portugais” existem e vão a eleições. Um está à vista todos os dias, outro
tornou-se invisível, mas está cá. Como é que é possível ele ter desaparecido de
modo tão conveniente neste ano eleitoral? É conspiração dos media, é censura
induzida, é habilidade de um dos “Portugais”, é apatia, resignação do outro
“Portugal”, é incapacidade do sistema político representar ambos, ou só um, é o
efeito daquilo que os marxistas chamavam “ideologia dominante”`? É, porque já
não há dois, mas apenas um só, e este é o Portugal feliz, redimido dos seus
vícios passados, empreendedor, cheio de esperança no futuro, deixando a “crise”
para trás, virado para o “Portugal para a frente”? É tudo junto, menos a última
razão.
Um
dos “Portugais” está de facto invisível nestas eleições. Quem devia falar por
ele, não fala e quem fala não é ouvido. Criou-se uma barreira de silêncio onde
apenas se ouve a propaganda. Vejam-se as miraculosas estatísticas. Começa
porque há as estatísticas de primeira e as de segunda, as que valem tudo e as
que não valem nada. As “económicas” são de primeira, as “sociais” são de
segunda. Das primeiras fala-se, as segundas ocultam-se.
As
estatísticas “da recuperação económica”, escolhidas a dedo e trabalhadas a
dedo, são comparadas com os anos que mais convém, umas vezes 2000, outras 2008,
outras 2010, outras 2011, outras 2012, outras 2013, etc.. Todas a subir, pouco
mas a subir, com “tendência” para subir. Os “do contra” ainda dizem que são tão
milimétricas essas subidas e tão condicionadas pelo bater no fundo, tão longe
do que seria necessário, tão dependentes de factores externos, que, ao mais
pequeno abanão, o castelo de cartas ruirá. Como, para não ir mais longe, se vê
com a venda do Novo Banco, o “bom”. (Embora suspeite que mesmo a pior das
vendas vai ser apresentada como um excelente resultado, comparada com qualquer
hipotética operação mais ruinosa, que “poderia ter acontecido”, mas nunca
existiu. É uma das técnicas habituais apresentar sempre o mal como o mal
menor.)
Quem
é que quer saber, destes pequenos incidentes? Até às eleições servem bem, no
dia seguinte, se os seus criativos autores ganharem, voltam a ler com toda a atenção
os relatórios do FMI para justificar a continuação da austeridade. Ver-se-á
como o défice vai subir, vai-se ver como as coisas são piores do que se
apresentou neste ano eleitoral, mas já é passado, não conta.
Há
mais de um milhão de desempregados, “desencorajados”, desempregados de longa
duração que desapareceram das estatísticas, falsos estagiários, e pessoas que
só não estão nas listas do desemprego porque emigraram. Porque queriam? Não.
Porque não tinham alternativa e ainda faziam parte daqueles que podiam emigrar.
Se estão felizes é por mérito da Suíça, da Grã-Bretanha, da Alemanha, da França
e das competências e conhecimentos que ganharam em Portugal, imperfeitos que
fossem, antes de 2008. O Portugal que lhe deu essas competências também já está
a encolher, a acabar. Estamos a falar de várias centenas de milhares de
pessoas. É muito português.
Voltemos
aos desempregados que, ó céus!, também não deixaram de existir. São muitas
centenas de milhares de pessoas, à volta de um milhão se somarmos, como devemos
somar, várias parcelas de pessoas que não tem emprego. Não é sequer emprego sem
direitos, é que não tem emprego. Ponto. Por muita imaginação que se possa ter,
é suposto que não estejam felizes com a sua vida. Nem eles, nem as suas
famílias. É muito português.
Depois,
mais um número que se sobrepõe aos outros, uma em cada cinco pessoas é pobre,
dois milhões de portugueses. Onde estão eles que não se vêem? Depois de uma
overdose pontual de miséria nos anos mais agudos da crise, despareceram as
pessoas que vivem mal de Portugal. Não são boa televisão a não ser como “casos
humanos” extremos – a idosa sem pleno uso das suas faculdades mentais que vive
imersa na sujidade e na miséria mais extrema numa casa sem vidros, nem água,
nem luz – e não é disso que estou a falar. Estou a falar da pobreza que é
estrutural, da que recuou dez anos para trás, mas que, neste recuo enorme em
termos sociais, perdeu qualquer esperança, aquela que ainda podiam ter no
início da década de 2000.
E
aqueles a quem cortaram a magra pensão na velhice e a reforma com que pensavam
viver os últimos anos, também estão felizes, a aplaudir o PAF? E aqueles que
não eram pobres ou tinham deixado de ser pobres depois do 25 de Abril e que
agora estão a escorregar para esse “estado” de que já não vão sair até
morrerem? Estão felizes e contentes, perdido o emprego, a pequena empresa, o
carro, a casa? Sim, as estatísticas de segunda, as sociais, revelam as
penhoras, as devoluções, as humilhações, o esconder de uma vida sem esperança,
ou seja desesperança. É muito português.
O
discurso oficial, o do “outro” Portugal, diz que tudo isto é “miserabilismo”.
Diz-nos que apenas o crescimento da “economia”, daquilo que eles chamam
“economia”, pode resolver as malditas estatísticas “sociais”. Outra conveniente
ilusão, porque, a não haver mecanismos de distribuição, a não haver equilíbrio
nas relações laborais, a não haver reforço dos mecanismos sociais do estado –
tudo profundamente afectado pela parte do programa da troika que eles cumpriram
com mais vigor e rapidez – o “crescimento” de que falam tem apenas um efeito:
agravar as desigualdades sociais. Como se vê.
No
grosso das notícias, ministros e secretários de estado pavoneiam-se com grupos
de empresários em posição de vénia, por feiras, colóquios dos jornais
económicos, encontros liofilizados para que não haja o mínimo risco e, quando
abrem a boca, é apenas para fazer propaganda eleitoral, a mais enganadora da
qual se faz falando do “estado” redentor do país que agora já “pode mudar”.
Eles falam do lado do poder, do poder que aparece nas listas dos jornais
económicos, os novos “donos disto tudo”, chineses, angolanos, profissionais das
“jotas” alcandorados a governantes, advogados de negócios e facilitadores,
gestores, empresários de sucesso, a nova elite que deve envergonhar a mais
velha gente do dinheiro, que o fez de outra maneira. O “outro” Portugal, o que
é tão visível que até cega, com todas as cores, luzes a laser, aplausos de
casting, feérico e feliz.
Não
é este o meu Portugal. Não lhes tenho respeito. Uns fazem por si, outros fazem
pelos outros. Conheço-os bem de mais. Não gostam dos de “baixo”. Acham que eles
são feios, porcos e maus. Querem receber sem trabalhar. Querem viver à
custa dos outros, deles. Se estão pobres é porque a culpa é sua. Se estão
desempregados é porque não sabem trabalhar. Se se lamentam da sua sorte, são
piegas. Deviam amochar disciplinadamente para serem bons portugueses. Não.
“Há-de gelar-te o coração”.
Direi
pois, como o velho Unamuno, “me duele España”, dói-me Portugal.
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