Também reparei, creio que toda a gente reparou. A nossa
formação cívica é de tal modo incipiente, que, ridiculamente tomamos
iniciativas pessoais, num caso de tal dimensão, mas com a televisão atrás, para
todos ficarmos sabendo que somos bons, somos ricos, e que a nossa vontade é
soberana. Temos casa, carro, comida e roupa lavada para dispensar, aí vamos nós
agarrar nuns poucos e ficar na história, serviçais, generosos e colaboradores,
sem que ninguém nos tivesse pedido, mas avisando à socapa os media, do nosso
gesto altruístico.
Do gesto exibicionista fica uma sensação de vergonha,
o que é comum nos exibicionismos. Não, não se trata de um Aristides de Sousa
Mendes, que tinha um cargo de poder, para ajudar, mas que até acabou injustamente
castigado. Também não se trata do santo
que dividiu a capa ao meio para abrigar o pobre. Esse foi premiado com o sol de
verão em pleno outono. Estes da caravana antecipam para si o prémio da fama. Também
La Fontaine tratou do tema, em fábula bem conhecida – «O Coche e a Mosca»,
prova de que é antigo o vício, e universal. Ainda bem que não é exclusivo
nosso.
António da Cunha Duarte Justo conta do caso português, com a necessária precisão e justeza,
no texto saído no A Bem da Nação.
CARAVANA PRIVADA EM BUSCA DE REFUGIADOS
UMA INICIATIVA À REBELDIA?
Accionismo devido a Falta de
Informação objectiva
«Na sexta-feira passada 25.09, tal como informa VISÃO,
partiram de Portugal 6 automóveis com destino à Hungria/Croácia/Eslovénia (a
caminho decidir-se-ão), no intuito de voltar a Portugal com os carros “cheios
de refugiados”. “Seis carros – sete, a contar com o da equipa da SIC –, cada um
com duas pessoas, um piloto e um co-piloto…” reza a VISÃO. Os activistas pensam
com esta acção dar uma bofetada na burocracia dos Estados europeus e “gastar
provavelmente o que gastaríamos numa semana de férias” e talvez ajudá-los até
ver. Que ideias fazem da situação Nuno, Pedro, Vera, Abdul e outros
colaboradores da iniciativa? Tudo isto em nome e à responsabilidade de quem?
Para imigrantes é suficiente a improvisação e o mostrar boa vontade?
Uma tal acção será legítima se as pessoas que
transportam os refugiados se comprometerem a dar guarida, formação e emprego
aos refugiados enquanto estes não puderem viver à custa própria e se suponha
que tal acção seja coberta pelas autoridades, doutro modo correriam o perigo de
serem inculpados de passadores (Na Alemanha estão 1.500 pessoas em observação
por cumplicidade de negócio de tráfico com refugiados; naturalmente que estes
não poderão ser comparados com sentimentos de bondade espontânea). Com acções
do género servem-se, por vezes, mais os jornais do que os afectados pela
injustiça.
Armar-se em samaritanos à custa do Estado ou de
outros, que depois terão de assumir responsabilidade pelos refugiados, cheira a
leviandade criticável, ingenuidade pura ou cumplicidade; tudo isto pode ser
encarado como o accionismo da UE que agora começa a acordar, porque começa a
sofrer as consequências dos formatos que ajudou a criar ao desestabilizar a
Síria e outras nações apoiando o terrorismo daqueles que usam de movimentos
populares por vezes bem-intencionados.
Os autoproclamados bombeiros da necessidade, agem como
se refugiados, na condição de pobres estivessem dispostos a aceitar viver em
qualquer condição e como se Portugal tivesse aberto as fronteiras aos
imigrantes. Aqui na Alemanha tem havido revoltas entre refugiados alojados em
centros de acolhimento, embora as autoridades alemãs se esforcem imensamente
por os ajudar; estas são secundadas pelo povo com iniciativas de apoio e ajuda
com bens materiais e no ensino da língua, condição essencial para os imigrantes
se autoafirmarem no mercado! Um exemplo: refugiados acolhidos numa caserna e a
viver provisoriamente como vivem os soldados em geral consideram tal situação
desumana.
Com isto não quero levar pessoas a olharem para o
lado! A responsabilidade deve perceber o que está deveras a acontecer e a
complexidade da situação de uma crise reveladora de situações desumanas em que
se encontram inocentes, vítimas, muitos necessitados (à procura de maior
felicidade) mas também, entre eles, pessoas com energia criminosa; em tal
situação só o Estado ou organizações humanitárias terão a competência para
ajudarem efectivamente sem correrem o perigo de uma ajuda questionável só para
inglês ver!
Não chega dar peixe, é necessário ensinar a pescar, já
sabia o nosso povo! A Síria está a ser sangrada e a ver-se envelhecer vendo os
seus jovens a fugir e estados como a Turquia interessados em continuar a
guerrilha não são questionados. Com a crise dos refugiados continua a
desviar-se a bola para canto.
Ao cinismo europeu e americano (intervenção no
Afeganistão, destruição dos Estados no Iraque, na Líbia, na Síria e
instabilização de toda África do norte, aos interesses concorrentes entre
Turquia e Irão) segue-se uma reacção afectiva em relação ao êxodo provocado que
se pode tornar tão questionável como o cinismo. O mau desenvolvimento na Europa
em consequência das duas grandes guerras não pode ser argumento justificador de
políticas à deriva ou à vela dos ventos de ideologias e dos interesses xiitas
ou sunitas.
A Europa e cada europeu precisam de maior reflexão
sobre o que se faz e o que se deixa de fazer: política de investimento nos
referidos países para que os cidadãos não se vejam obrigados a emigrar na
procura legítima de uma vida melhor! Precisa-se do empenho de todos,
instituições e cidadãos, numa acção conjunta, não para fortalecer o próprio ego
em actividades publicitárias de relações públicas à custa de “refugiados
inocentes” mas para colocar a humanidade e a justiça no centro do agir
individual e político!»
António
da Cunha Duarte Justo
A fábula de La Fontaine, como reforço moral:
O coche e a mosca
Por um caminho de íngreme subida,
Arenoso, irregular
E de todos os lados exposto ao sol,
Seis fortes cavalos puxavam um coche.
Mulheres, Frade, Velhos, tudo tinha descido.
Os cavalos suavam, bufavam, esgotados.
Vem uma Mosca e deles se aproxima.
Pretende animá-los com o seu zumbido,
Pica um, pica outro e pensa a todo o momento
Que é ela que põe a máquina em movimento.
Poisa no timão, no nariz do Cocheiro;
Assim que a carruagem começa a subir
E vê as gentes avançar
A si só atribui do facto a glória;
Vai, vem, faz-se apressada; parece ser
Um Oficial encarregado do plano da batalha
A todo o lado a ir,
Para as tropas fazer avançar e apressar a vitória.
A Mosca, nesta comum necessidade,
De tanta dificuldade,
Queixa-se de agir só, todo o encargo com ela;
Que ninguém ajuda os Cavalos a não ser ela.
O Monge lia o seu Breviário;
Boa maneira de passar o tempo!
Uma mulher cantava;
Era mesmo de canções que se precisava!
A Senhora Mosca vai cantar aos seus ouvidos
E faz cem tolices semelhantes.
Depois de muitos trabalhos o Coche consegue arribar.
Respiremos agora, diz a Mosca imediatamente:
Trabalhei tanto que
os passageiros estão no seu destino, finalmente.
Pagai-me, Senhores Cavalos pelo meu trabalho.
Assim certas pessoas, fazendo-se muito servis,
Se introduzem nos assuntos gerais ou privados:
Em toda a parte se julgam imprescindíveis
E, sempre importunos, deveriam ser recambiados.
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