terça-feira, 13 de outubro de 2015

Num texto de Luís Soares de Oliveira



Saído no «A Bem da Nação»:
DA ARTE DO MANDO
Prefácio ao Livro de Memórias de um capitão que fez heróis:

 Ricardo Ferreira Durão, tenente-general do Exército Português reformado, já era um narrador com ampla e fiel audiência quando o conheci no Colégio Militar, há setenta e cinco anos. Aos Domingos, após o toque de recolher, reuníamo-nos a um canto da camarata para o ouvir contar o filme que tinha visto durante a saída semanal. Por vezes, a ida ao cinema não passara de intenção, mas isso nunca o impediu de nos contar o filme. Uma coisa era certa: fundamentada ou não, a narrativa do Ricardo era sempre mais empolgante do que o próprio filme. Só muito mais tarde percebi que ele não fazia isso para formar séquito; fazia-o para nos animar. Instintivamente sabia que os privados de saída por mau comportamento ou os que tinham saído mas não dispunham de posses para ir ao cinema precisavam de um anti depressivo para aguentarem mais uma semana da exigente e monótona rotina do CM, daquele tempo. Ele intuíra que professores e oficiais faziam a rotina mas quem fazia o Colégio era a "malta": quando a adversidade é dura – senão mesmo violenta –, a resposta está no grupo, na solidariedade. Esta intuição teria importantes consequências na sua futura carreira militar e até incidências na História pátria.
Neste seu livro de memórias (o segundo que publica), Ricardo tornou-se avaro no reconto; deu precedência à historiografia e encostou-se à cronologia. O seu estilo pessoal transparece contudo nas poucas descrições que faz. O autor parece aqui mais empenhado em fundamentar e documentar a fama que o segue. Fornece-nos amplas provas documentais, registos oficiais e oficiosos, testemunhos alheios escritos e opiniões gravadas emitidas por gente de reconhecida autoridade. Dir-se-ia que desta feita Ricardo Durão sentiu a necessidade de provar que viu o filme e, mais do que isso, fez parte do mesmo. E fez.
Não espere pois o leitor entretenimento. E, se bem que aqui sejam referidos factos de inegável relevância para compreensão do período histórico português que medeia entre a guerra colonial e o restabelecimento do parlamentarismo, não espere também análise dos mesmos. Ricardo afirma-se (diria melhor confirma-se) um carismático e carismático não analisa; vive as coisas e não aceita discussões; entende que a distinção entre bem e mal não resulta de qualquer contrato social mas, sim, de um processo natural que partindo de si, orienta a família e é partilhado pela sociedade e pelo Estado. Ricardo Durão disse-me um dia – já lá vão largos anos – que jamais precisou de ler regulamentos; seguiu sempre a sua intuição e nunca foi desautorizado. Lembro-me que, na altura, eu senti um rebate: a observação do meu companheiro de colégio tocara-me muito mais do que eu poderia esperar. Tinha atingido o cerne da mentalidade dos "meninos da Luz", ou seja, a divindade do estático estabelecido, a aceitação do que existe, do que é e como é. Era assim naquele tempo. No CM, ninguém nos fez ler e, menos ainda, meditar Darwin. Disseram-nos que o triunfo era do mais forte, quando, afinal, se tratava de mudança permanente e da capacidade de adaptação à mesma. E, por via desta distorção, por nós devidamente assimilada, quando Paris acordou o mundo no Maio de 1968, eu senti-me perdido, totalmente baralhado. Fiquei sem Norte, passei a caminhar pelo desconhecido, quedei-me falho de sentido e tacto ou, como diria o poeta, sem saber "para que serve qualquer facto". Chegara eu, então e enfim, à tragédia do Eppur si muove. Daí para diante, tive de recorrer à análise casuística. A História continuou a servir-me de muleta mas nunca mais recuperei a paz de espírito.
Ele nunca perdeu a dele. Para Ricardo Durão nada significativo mudou no mundo, desde que é mundo. Sabe que, de quando em vez, alguém vira o disco; a música contudo é sempre a mesma. Nada o abalou. Do ponto de vista militar, esta impermeabilidade mental é funcional e ela ajuda também a explicar o assinalável êxito obtido pelo capitão Ricardo Durão nas suas missões de combate em África. Comunicava facilmente com os soldados porque, como eles, tinha por certo o saber do vulgo e, mais conscientemente do que eles, aceitava que a História – e nunca a Razão – é mãe de toda a sabedoria; só a experiência nos permite conhecer as verdades essenciais.
Relações do tipo mando/obediência, hierarquia/grupo, repressão/sedução têm – tanto no domínio social como no militar – longo historial. No caso militar, tais relações assumem cunho dramático uma vez que a obediência significa, em última análise, preparação para a morte prematura. A propedêutica militar reconhece que quem combate é o soldado mas quem faz o bom soldado é o oficial. Ao oficial cabe disciplinar a vontade natural incontrolada de cada um e conduzi-la à aceitação de um princípio universal propício à acção colectiva. Esta questão sempre me perturbou. Como é possível induzir um ser pensante, dono de vontade própria e dotado de instinto de sobrevivência a comportar-se de forma tão avessa à sua natureza. Ciência não é pois não há concordância definitiva quanto ao procedimento a seguir pelo oficial para fazer com que o soldado aceite tal condição. O mando é e continua a ser uma arte. O artista recorre a vários instrumentos: à moral, à repressão (violenta se necessário), à camaradagem, à cumplicidade, por vezes até ao carinho para se fazer amado, etc., a seu critério. A escolha depende da inclinação pessoal de cada um.
Para suprimir o julgamento individual, a ética é útil. Quando o fervor moral inspira o homem este tende a considerar a livre iniciativa como imoral. Mas a ética tem endereço: o que é valor aqui, não é ali. Consciente disso, Júlio César entendia que mais do que moralizar seria preciso surpreender constantemente os soldados para conseguir que eles deixassem de confiar no seu julgamento próprio. Só lhes comunicava os objectivos mesmo em cima do momento da execução e fazia gosto em alterar os mesmos, caso os soldados deles se tivessem apercebido antecipadamente. Assim, acostumava-os a obedecer, sem se intrometerem nos desígnios do seu capitão. Independentemente desta desorientação proposital, recorria à cumplicidade. Nas suas exortações, tratava os soldados por companheiros e só castigava a cobardia e a desobediência. Outros vícios eram tolerados ou esquecidos. Partilhava mais facilmente o imoral do que o moral. Outros grandes generais seguir-lhe-iam o exemplo: o saque e o estupro serviram frequentemente de estímulo.
Os medievos introduziram o conceito de honra, artifício destinado a reforçar a moral como instrumento motivador de obediência. O conceito porém não se conseguiu impor ao tempo e ao modo. O que é a honra para cada um? Depreende-se da cultura primitiva que honra, reputação e poder andavam juntos. Honra era uma demonstração de poder. Para os medievais, consistia em morrer combatendo o infiel. “Vá-se o homem, fique a fama”. Para Lancelote, cavaleiro da Távola Redonda, honra era matar quem quer que dissesse que ele era amante de Guinevere, mulher do Rei Artur. A verdade, no caso, não interessava. No absolutismo, honra era a capacidade de infligir sofrimento. Cristóvão Colombo mandou desfilar nua pela ilha de São Domingos uma senhora espanhola que o insultou. D. José I de Portugal lavou a sua honra infligindo um sacrifício desumano aos Távoras. Algo idêntico fez Francisco Franco quando capitão do Tércio (Legião Estrangeira espanhola). Assistia ao rancho e apercebeu-se que um soldado imitava a sua voz de falsete. Puxou da pistola que trazia à cinta e imediatamente matou o soldado. Limpou a sua honra e simultaneamente enunciou um programa de acção política que viria a concretizar. Napoleão chamava aos campos de batalha campos da honra e criou a Legião de Honra, porque "estes cordões fazem heróis". Era a época romântica. Cedo porém os homens abandonaram o desprendimento material e cansaram-se de lutar pela glória de um epitáfio. O heróico cedeu a vez ao administrativo. Para os vitorianos britânicos, honra era o trabalho duro e honesto, o jogo limpo, a defesa dos fracos e incapacitados e o império. Estavam preparados para lutar pelo país, mas preferiam dividir os potenciais adversários e evitar a agressão física. Ser honrado para o árabe é ser leal à tribo, à seita religiosa e sobretudo ao Islão, como entendido pela sua gente. Para o português, honra foi sempre dizer a última palavra, ainda que disparatada. No seu todo, a honra produziu o divórcio entre patrícios e a plebe donde brota o soldado. Como tal, esgotou-se.
Ganhou então curso a escola disciplinadora repressiva. Note-se que já os Romanos tinham por máxima que o soldado deve temer o seu comandante mais do que o inimigo. O grande Turenne, marechal de França de Luís XIV, entendia que seria preciso viver com o soldado. Mas já o seu rival Condé foi de opinião que o soldado deve ser humilhado ao ponto de se tornar incapaz de contestar a superioridade do seu comandante. Humilhado, ele procurará sair de si e fa-lo-á mediante enquadramento rigoroso e global num quadro hierárquico. Já a escola prussiana do tempo de Frederico, o Grande, inventou a ordem unida como forma de privar o soldado de pensamento próprio. Aos recrutas recém-chegados eram dadas constantemente ordens curtas e rápidas, com berros guturais e duros que soavam como chicotes. E neste procedimento nada de imoral havia. Pelo contrário; para os formuladores do pensamento alemão, a ética é a obediência. O cidadão – qualquer que seja a sua posição na hierarquia – não tem direitos; tem deveres. Mais tarde, os nazis adicionaram a vigilância. Os soldados eram constantemente vigiados, de preferência pelos seus próprios camaradas. Se já não podiam pensar agora também não podiam confiar. Restava-lhes apenas cumprir. O general Batov, do Exército Vermelho, preferia a crueldade para chegar ao mesmo propósito: -”Se houver um pântano com água até ao peito, é preciso treinar no pântano; se houver uma sarjeta, então deitem-nos na sarjeta”. O próprio Lenine receitava a violência. "É preciso malhar em cima das cabeças; malhar impiedosamente, embora, por ideal, nos tenhamos oposto a qualquer violência. Mas há que reconhecer que a violência é indispensável. Só com violência se altera o curso da história".
O século XX materializou uma novidade: a ideologia como substituto da Moral e da Religião. A ideologia surgiu quando a Religião começou a perder força como princípio organizador da sociedade. Anunciava-se o triunfo da Razão numa idade de crescente secularismo. Sendo a ideologia por natureza tão redutora como a Religião, estaria sempre em contradição com pluralismo. Entendia Sartre que "debaixo de um regime ideológico totalitário, as ideias transcendentes da moral desaparecem. O diálogo interior [o pensamento] extingue-se. O militante renuncia a todas as suas qualidades pessoais. Colocado num quadro que não se preocupa com essas cousas, o pensamento, a moral e a própria vontade evaporam-se". A realidade porém ultrapassou a expectativa: a ideologia divide mais do que unifica. O espírito crítico uma vez despertado não se apaga. Como tal, a ideologia não serve a qualquer propósito militar; pelo contrário. A Guerra Civil de Espanha forneceu claro exemplo desta realidade. Avisados, os dirigentes soviéticos quando tiveram que mobilizar o povo para enfrentar o desafio da Alemanha hitleriana, descartaram imediatamente a ideologia e apelaram para o patriotismo, como nos narra Vassily Grossman na sua descrição da Grande Guerra Patriótica que exigiu o sacrifício de dezenas de milhões de jovens. O saber vulgar não abrange reflexões sociais mas previne que só mediante cooperação de todos será possível a cada um defender o seu chão e a sua família. Esta sabedoria do povo – mais ainda do que a geografia e o clima – permitiu aos russos vencerem uma exército invasor muito mais e mais bem equipado do que o seu.    
O estilo do capitão Ricardo Durão distinguiu-se de qualquer destes modelos mas foi buscar algo a quase todos. A moral carismática ajudou-o. Aquele que está convencido da justeza e transcendência da missão que lhe foi confiada transmite facilmente este sentimento aos seus subordinados. Estes, por seu turno, certos e seguros dessa justeza, serão capazes de produzir actos heróicos sem se aperceberem disso. Durão entendia que ser companheiro vale mais do que ser disciplinador. O mando deve servir para tornar grandes os mandados e não para os humilhar, para os lançar no desespero, no rancor, na inveja; deve fazê-los mais livres, libertando-os de raivas. Preocupava-se com os soldados, animava-os e, se necessário, divertia-os. A preocupação também significava conferir: Tens cartuchos? manejas bem a tua arma ? Sabes o que fazer em caso de cilada? Tens protecção contra o sol e repelente de mosquitos? Etc. Os praças vinham ter com ele e traziam-lhe tanto as boas como as más notícias que recebiam de suas casas. Sempre que apropriado, louvava os seus homens, falava e escrevia sobre eles. Contudo, punia os negligentes. Nunca ignorou o mais pequeno sinal de desleixo, nem que fosse um botão em falta no uniforme ou alguém que tossia numa missão de reconhecimento ou ainda um distraído que praguejasse em pleno mato. E assim aconteceu que os soldados da Companhia 122 adoravam o seu capitão. Mas mais, Durão, graças aos hábitos criados no desporto de alta competição, aproveitava os intervalos entre acções para aperfeiçoar a preparação colectiva. Atingida a competência em combate e passou á excelência. Sabia como proteger os seus homens debaixo do fogo inimigo, deu provas disso e a confiança no chefe não cessou de crescer. Sobretudo, soube privilegiar o grupo, experiência adquirida no CM. Como disse Sigmund Freud, "o grupo fornece a certeza, elimina a dúvida quanto ao erro. É intolerante para como os outros mas obediente à sua autoridade interna. Sob a influência de sugestão, o grupo pode produzir abnegação e devoção a um ideal. No indivíduo isolado, os interesses particulares são a única força; no grupo, os interesses raras vezes são proeminentes. Enquanto a capacidade intelectual do grupo está abaixo da do indivíduo, o grupo pode produzir padrões de ética comportamental muito superiores aos do indivíduo. A mente do grupo identifica-se mais facilmente com a mente primitiva e manifesta-se nos tabus que cercam as palavras. Quanto mais identificado mais coeso". Não sei se Ricardo tinha lido este trecho do fundador da psicanálise, mas, uma vez mais, não precisou de ler. Ele sabia por intuição que era assim mesmo.
A competência táctica, o grupo, a confiança e o pensamento carismático foram pois os instrumentos de que Ricardo Durão se serviu para formar um escol de soldados que praticaram feitos heróicos e levaram a cabo missões difíceis ao serviço da República Portuguesa. Para quem tenha dúvidas nesta matéria, recomendo que passe imediatamente à página 55 e leia, a partir daí, a saga da Companhia 122 em Angola.
Repetiu-se no Ultramar português o fenómeno que historiadores militares já haviam registado noutras latitudes e noutros conflitos armados. "Na guerra, dá-se uma cisão: na Frente é tudo pureza e abnegação, os homens preparam-se para morrer; na Retaguarda mantém-se o vício, os homens esforçam-se para viver. O breve trecho, Frente e Retaguarda desentendem-se e caminham para a incompatibilidade. Na Frente só há dois modos: a euforia quando se acredita que o inimigo será vencido e a mais profunda depressão quando se constata que o inimigo não poderá ser vencido. Quando a Frente está eufórica obedece à Retaguarda. No momento porém em que a depressão se instala, a Frente vira-se contra os seus amos: - os que sofrem vingam-se dos que lhes impuseram o sofrimento".

Provavelmente  o texto – tão elegante e originalmente erudito – de Luís Soares de Oliveira – pretende orientar-nos para a analogia com os sucessos últimos da nossa contemporaneidade. Só que a Frente que comanda – com autoridade mas periclitantemente, (em virtude dos elementos sísmicos em seu redor), não conseguiu educar a Rectaguarda nos princípios da obediência e do respeito. A era da democracia em que nos inserimos, se extinguiu prepotências, também extinguiu conceitos de honra. Daí que, desses feitos gloriosos do passado, possíveis numa preparação de rigor, e angariadora – no caso de Ricardo Ferreira Durão – de respeito e submissão – já nada reste em termos conceptuais, ou tão só de respeito – próprio e alheio. A era é a do pontapé nas costas: “Sai-te daí, que agora entro eu”. Com extrema precisão oportunista, por ilegítima que seja e enxovalhante do homem português, transformado em insecto zumbidor.

Nenhum comentário: