Saído no «A Bem da Nação»:
DA ARTE DO MANDO
Prefácio ao Livro de
Memórias de um capitão que fez heróis:
Ricardo
Ferreira Durão, tenente-general do Exército Português
reformado, já era um narrador com ampla e fiel audiência quando o conheci no
Colégio Militar, há setenta e cinco anos. Aos Domingos, após o toque de
recolher, reuníamo-nos a um canto da camarata para o ouvir contar o filme que
tinha visto durante a saída semanal. Por vezes, a ida ao cinema não passara de
intenção, mas isso nunca o impediu de nos contar o filme. Uma coisa era certa:
fundamentada ou não, a narrativa do Ricardo era sempre mais empolgante do que o
próprio filme. Só muito mais tarde percebi que ele não fazia isso para formar
séquito; fazia-o para nos animar. Instintivamente sabia que os privados de
saída por mau comportamento ou os que tinham saído mas não dispunham de posses
para ir ao cinema precisavam de um anti depressivo para aguentarem mais uma
semana da exigente e monótona rotina do CM, daquele tempo. Ele intuíra que
professores e oficiais faziam a rotina mas quem fazia o Colégio era a
"malta": quando a adversidade é dura – senão mesmo violenta –, a
resposta está no grupo, na solidariedade. Esta intuição teria importantes
consequências na sua futura carreira militar e até incidências na História
pátria.
Neste
seu livro de memórias (o segundo que publica), Ricardo tornou-se avaro no
reconto; deu precedência à historiografia e encostou-se à cronologia. O seu
estilo pessoal transparece contudo nas poucas descrições que faz. O autor
parece aqui mais empenhado em fundamentar e documentar a fama que o segue.
Fornece-nos amplas provas documentais, registos oficiais e oficiosos,
testemunhos alheios escritos e opiniões gravadas emitidas por gente de
reconhecida autoridade. Dir-se-ia que desta feita Ricardo Durão sentiu a
necessidade de provar que viu o filme e, mais do que isso, fez parte do mesmo.
E fez.
Não
espere pois o leitor entretenimento. E, se bem que aqui sejam referidos factos
de inegável relevância para compreensão do período histórico português que
medeia entre a guerra colonial e o restabelecimento do parlamentarismo, não
espere também análise dos mesmos. Ricardo afirma-se (diria melhor confirma-se)
um carismático e carismático não analisa; vive as coisas e não aceita
discussões; entende que a distinção entre bem e mal não resulta de qualquer
contrato social mas, sim, de um processo natural que partindo de si, orienta a
família e é partilhado pela sociedade e pelo Estado. Ricardo Durão disse-me um
dia – já lá vão largos anos – que jamais precisou de ler regulamentos; seguiu
sempre a sua intuição e nunca foi desautorizado. Lembro-me que, na altura, eu
senti um rebate: a observação do meu companheiro de colégio tocara-me muito
mais do que eu poderia esperar. Tinha atingido o cerne da mentalidade dos
"meninos da Luz", ou seja, a divindade do estático estabelecido, a
aceitação do que existe, do que é e como é. Era assim naquele tempo. No CM,
ninguém nos fez ler e, menos ainda, meditar Darwin. Disseram-nos que o triunfo
era do mais forte, quando, afinal, se tratava de mudança permanente e da
capacidade de adaptação à mesma. E, por via desta distorção, por nós
devidamente assimilada, quando Paris acordou o mundo no Maio de 1968, eu
senti-me perdido, totalmente baralhado. Fiquei sem Norte, passei a caminhar
pelo desconhecido, quedei-me falho de sentido e tacto ou, como diria o poeta,
sem saber "para que serve qualquer facto". Chegara eu, então e enfim,
à tragédia do Eppur si muove. Daí para diante, tive de recorrer à análise
casuística. A História continuou a servir-me de muleta mas nunca mais recuperei
a paz de espírito.
Ele
nunca perdeu a dele. Para Ricardo Durão nada significativo mudou no mundo, desde
que é mundo. Sabe que, de quando em vez, alguém vira o disco; a música contudo
é sempre a mesma. Nada o abalou. Do ponto de vista militar, esta
impermeabilidade mental é funcional e ela ajuda também a explicar o assinalável
êxito obtido pelo capitão Ricardo Durão nas suas missões de combate em África.
Comunicava facilmente com os soldados porque, como eles, tinha por certo o
saber do vulgo e, mais conscientemente do que eles, aceitava que a História – e
nunca a Razão – é mãe de toda a sabedoria; só a experiência nos permite
conhecer as verdades essenciais.
Relações
do tipo mando/obediência, hierarquia/grupo, repressão/sedução têm – tanto no
domínio social como no militar – longo historial. No caso militar, tais
relações assumem cunho dramático uma vez que a obediência significa, em última
análise, preparação para a morte prematura. A propedêutica militar reconhece
que quem combate é o soldado mas quem faz o bom soldado é o oficial. Ao oficial
cabe disciplinar a vontade natural incontrolada de cada um e conduzi-la à
aceitação de um princípio universal propício à acção colectiva. Esta questão
sempre me perturbou. Como é possível induzir um ser pensante, dono de vontade
própria e dotado de instinto de sobrevivência a comportar-se de forma tão
avessa à sua natureza. Ciência não é pois não há concordância definitiva quanto
ao procedimento a seguir pelo oficial para fazer com que o soldado aceite tal
condição. O mando é e continua a ser uma arte. O artista recorre a vários
instrumentos: à moral, à repressão (violenta se necessário), à camaradagem, à
cumplicidade, por vezes até ao carinho para se fazer amado, etc., a seu
critério. A escolha depende da inclinação pessoal de cada um.
Para
suprimir o julgamento individual, a ética é útil. Quando o fervor moral inspira
o homem este tende a considerar a livre iniciativa como imoral. Mas a ética tem
endereço: o que é valor aqui, não é ali. Consciente disso, Júlio César entendia
que mais do que moralizar seria preciso surpreender constantemente os soldados
para conseguir que eles deixassem de confiar no seu julgamento próprio. Só lhes
comunicava os objectivos mesmo em cima do momento da execução e fazia gosto em
alterar os mesmos, caso os soldados deles se tivessem apercebido
antecipadamente. Assim, acostumava-os a obedecer, sem se intrometerem nos
desígnios do seu capitão. Independentemente desta desorientação proposital,
recorria à cumplicidade. Nas suas exortações, tratava os soldados por
companheiros e só castigava a cobardia e a desobediência. Outros vícios eram
tolerados ou esquecidos. Partilhava mais facilmente o imoral do que o moral.
Outros grandes generais seguir-lhe-iam o exemplo: o saque e o estupro serviram
frequentemente de estímulo.
Os
medievos introduziram o conceito de honra, artifício destinado a reforçar a moral
como instrumento motivador de obediência. O conceito porém não se conseguiu
impor ao tempo e ao modo. O que é a honra para cada um? Depreende-se da cultura
primitiva que honra, reputação e poder andavam juntos. Honra era uma
demonstração de poder. Para os medievais, consistia em morrer combatendo o
infiel. “Vá-se o homem, fique a fama”. Para Lancelote, cavaleiro da Távola
Redonda, honra era matar quem quer que dissesse que ele era amante de
Guinevere, mulher do Rei Artur. A verdade, no caso, não interessava. No
absolutismo, honra era a capacidade de infligir sofrimento. Cristóvão Colombo
mandou desfilar nua pela ilha de São Domingos uma senhora espanhola que o
insultou. D. José I de Portugal lavou a sua honra infligindo um sacrifício
desumano aos Távoras. Algo idêntico fez Francisco Franco quando capitão do
Tércio (Legião Estrangeira espanhola). Assistia ao rancho e apercebeu-se que um
soldado imitava a sua voz de falsete. Puxou da pistola que trazia à cinta e
imediatamente matou o soldado. Limpou a sua honra e simultaneamente enunciou um
programa de acção política que viria a concretizar. Napoleão chamava aos campos
de batalha campos da honra e criou a Legião de Honra, porque "estes
cordões fazem heróis". Era a época romântica. Cedo porém os homens abandonaram
o desprendimento material e cansaram-se de lutar pela glória de um epitáfio. O
heróico cedeu a vez ao administrativo. Para os vitorianos britânicos, honra era
o trabalho duro e honesto, o jogo limpo, a defesa dos fracos e incapacitados e
o império. Estavam preparados para lutar pelo país, mas preferiam dividir os
potenciais adversários e evitar a agressão física. Ser honrado para o árabe é
ser leal à tribo, à seita religiosa e sobretudo ao Islão, como entendido pela
sua gente. Para o português, honra foi sempre dizer a última palavra, ainda que
disparatada. No seu todo, a honra produziu o divórcio entre patrícios e a plebe
donde brota o soldado. Como tal, esgotou-se.
Ganhou
então curso a escola disciplinadora repressiva. Note-se que já os Romanos tinham
por máxima que o soldado deve temer o seu comandante mais do que o inimigo. O
grande Turenne, marechal de França de Luís XIV, entendia que seria preciso
viver com o soldado. Mas já o seu rival Condé foi de opinião que o soldado deve
ser humilhado ao ponto de se tornar incapaz de contestar a superioridade do seu
comandante. Humilhado, ele procurará sair de si e fa-lo-á mediante
enquadramento rigoroso e global num quadro hierárquico. Já a escola prussiana
do tempo de Frederico, o Grande, inventou a ordem unida como forma de privar o
soldado de pensamento próprio. Aos recrutas recém-chegados eram dadas
constantemente ordens curtas e rápidas, com berros guturais e duros que soavam
como chicotes. E neste procedimento nada de imoral havia. Pelo contrário; para
os formuladores do pensamento alemão, a ética é a obediência. O cidadão –
qualquer que seja a sua posição na hierarquia – não tem direitos; tem deveres.
Mais tarde, os nazis adicionaram a vigilância. Os soldados eram constantemente
vigiados, de preferência pelos seus próprios camaradas. Se já não podiam pensar
agora também não podiam confiar. Restava-lhes apenas cumprir. O general Batov,
do Exército Vermelho, preferia a crueldade para chegar ao mesmo propósito: -”Se
houver um pântano com água até ao peito, é preciso treinar no pântano; se
houver uma sarjeta, então deitem-nos na sarjeta”. O próprio Lenine receitava a
violência. "É preciso malhar em cima das cabeças; malhar impiedosamente,
embora, por ideal, nos tenhamos oposto a qualquer violência. Mas há que
reconhecer que a violência é indispensável. Só com violência se altera o curso
da história".
O século
XX materializou uma novidade: a ideologia como substituto da Moral e da
Religião. A ideologia surgiu quando a Religião começou a perder força como
princípio organizador da sociedade. Anunciava-se o triunfo da Razão numa idade
de crescente secularismo. Sendo a ideologia por natureza tão redutora como a
Religião, estaria sempre em contradição com pluralismo. Entendia Sartre que
"debaixo de um regime ideológico totalitário, as ideias transcendentes da
moral desaparecem. O diálogo interior [o pensamento] extingue-se. O militante
renuncia a todas as suas qualidades pessoais. Colocado num quadro que não se
preocupa com essas cousas, o pensamento, a moral e a própria vontade
evaporam-se". A realidade porém ultrapassou a expectativa: a ideologia
divide mais do que unifica. O espírito crítico uma vez despertado não se apaga.
Como tal, a ideologia não serve a qualquer propósito militar; pelo contrário. A
Guerra Civil de Espanha forneceu claro exemplo desta realidade. Avisados, os
dirigentes soviéticos quando tiveram que mobilizar o povo para enfrentar o
desafio da Alemanha hitleriana, descartaram imediatamente a ideologia e
apelaram para o patriotismo, como nos narra Vassily Grossman na sua descrição
da Grande Guerra Patriótica que exigiu o sacrifício de dezenas de milhões de
jovens. O saber vulgar não abrange reflexões sociais mas previne que só
mediante cooperação de todos será possível a cada um defender o seu chão e a
sua família. Esta sabedoria do povo – mais ainda do que a geografia e o clima –
permitiu aos russos vencerem uma exército invasor muito mais e mais bem
equipado do que o seu.
O estilo
do capitão Ricardo Durão distinguiu-se de qualquer destes modelos mas foi
buscar algo a quase todos. A moral carismática ajudou-o. Aquele que está
convencido da justeza e transcendência da missão que lhe foi confiada transmite
facilmente este sentimento aos seus subordinados. Estes, por seu turno, certos
e seguros dessa justeza, serão capazes de produzir actos heróicos sem se
aperceberem disso. Durão entendia que ser companheiro vale mais do que ser
disciplinador. O mando deve servir para tornar grandes os mandados e não para
os humilhar, para os lançar no desespero, no rancor, na inveja; deve fazê-los
mais livres, libertando-os de raivas. Preocupava-se com os soldados, animava-os
e, se necessário, divertia-os. A preocupação também significava conferir: Tens
cartuchos? manejas bem a tua arma ? Sabes o que fazer em caso de cilada? Tens
protecção contra o sol e repelente de mosquitos? Etc. Os praças vinham ter com
ele e traziam-lhe tanto as boas como as más notícias que recebiam de suas
casas. Sempre que apropriado, louvava os seus homens, falava e escrevia sobre
eles. Contudo, punia os negligentes. Nunca ignorou o mais pequeno sinal de
desleixo, nem que fosse um botão em falta no uniforme ou alguém que tossia numa
missão de reconhecimento ou ainda um distraído que praguejasse em pleno mato. E
assim aconteceu que os soldados da Companhia 122 adoravam o seu capitão. Mas
mais, Durão, graças aos hábitos criados no desporto de alta competição,
aproveitava os intervalos entre acções para aperfeiçoar a preparação colectiva.
Atingida a competência em combate e passou á excelência. Sabia como proteger os
seus homens debaixo do fogo inimigo, deu provas disso e a confiança no chefe
não cessou de crescer. Sobretudo, soube privilegiar o grupo, experiência
adquirida no CM. Como disse Sigmund Freud, "o grupo fornece a certeza,
elimina a dúvida quanto ao erro. É intolerante para como os outros mas
obediente à sua autoridade interna. Sob a influência de sugestão, o grupo pode
produzir abnegação e devoção a um ideal. No indivíduo isolado, os interesses
particulares são a única força; no grupo, os interesses raras vezes são
proeminentes. Enquanto a capacidade intelectual do grupo está abaixo da do
indivíduo, o grupo pode produzir padrões de ética comportamental muito
superiores aos do indivíduo. A mente do grupo identifica-se mais facilmente com
a mente primitiva e manifesta-se nos tabus que cercam as palavras. Quanto mais
identificado mais coeso". Não sei se Ricardo tinha lido este trecho do
fundador da psicanálise, mas, uma vez mais, não precisou de ler. Ele sabia por
intuição que era assim mesmo.
A
competência táctica, o grupo, a confiança e o pensamento carismático foram pois
os instrumentos de que Ricardo Durão se serviu para formar um escol de soldados
que praticaram feitos heróicos e levaram a cabo missões difíceis ao serviço da
República Portuguesa. Para quem tenha dúvidas nesta matéria, recomendo que
passe imediatamente à página 55 e leia, a partir daí, a saga da Companhia 122
em Angola.
Repetiu-se
no Ultramar português o fenómeno que historiadores militares já haviam
registado noutras latitudes e noutros conflitos armados. "Na guerra, dá-se
uma cisão: na Frente é tudo pureza e abnegação, os homens preparam-se para
morrer; na Retaguarda mantém-se o vício, os homens esforçam-se para viver. O
breve trecho, Frente e Retaguarda desentendem-se e caminham para a
incompatibilidade. Na Frente só há dois modos: a euforia quando se acredita que
o inimigo será vencido e a mais profunda depressão quando se constata que o
inimigo não poderá ser vencido. Quando a Frente está eufórica obedece à
Retaguarda. No momento porém em que a depressão se instala, a Frente vira-se
contra os seus amos: - os que sofrem vingam-se dos que lhes impuseram o
sofrimento".
Provavelmente o
texto – tão elegante e originalmente erudito – de Luís Soares de Oliveira –
pretende orientar-nos para a analogia com os sucessos últimos da nossa
contemporaneidade. Só que a Frente que comanda – com autoridade mas
periclitantemente, (em virtude dos elementos sísmicos em seu redor), não conseguiu
educar a Rectaguarda nos princípios da obediência e do respeito. A era da democracia
em que nos inserimos, se extinguiu prepotências, também extinguiu conceitos de
honra. Daí que, desses feitos gloriosos do passado, possíveis numa preparação
de rigor, e angariadora – no caso de Ricardo Ferreira Durão – de respeito e
submissão – já nada reste em termos conceptuais, ou tão só de respeito –
próprio e alheio. A era é a do pontapé nas costas: “Sai-te daí, que agora entro
eu”. Com extrema precisão oportunista, por ilegítima que seja e enxovalhante do
homem português, transformado em insecto zumbidor.
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