segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Necessidade a quanto obrigas!




Era o meu pai um homem sério, que gostava de contar a sua anedota à mesa, para nos rirmos, o que acontecia não raras vezes. A propósito do hábito do lamento que reconhecia no povo português, ele próprio podendo referir – mas jamais o fazendo, sempre discreto, no seu mundo que sempre admirei como superior, (nos seus estudos, nas suas lutas, na sua força de alma, nos seus escritos), conhecendo eu a sua história primeira mais pelas referências da minha mãe, do que por qualquer possível desabafo seu – a propósito, pois, do choradinho provinciano, contido em tanto do fado antigo, o meu pai resumia-o na expressão que colheu algures e nos fazia rir sempre – “Chora a mãe trabeculosa junt’ à filha qu’ agoniza”.
É tema da crónica de João Miguel Tavares «O desgraçadismo foi sobrevalorizado», do Público de 1 de Outubro, ultimamente muito referido, no propósito de reforço das acusações ao Governo que o proporcionou com a sua austeridade “criminosa”. A crónica o diz, eu já tinha reparado, em conversa de café, mostrando quanto tal não corresponde assim tanto à realidade, quando nos “concertos” e outros eventos públicos se vêem os espaços repletos, apesar da careza dos bilhetes. Por outro lado, com uma bonificação passageira nas carteiras – confesso que não dei por nada, mas Vasco Pulido Valente o afirma em “Portugal não tem cura” no Público de 26/9, a propósito do “dinheiro fácil” que voltou – refere-se o aumento do nível de vida, em aquisições de automóveis e provavelmente em gozo de férias, nem sei bem. As populações das terras também não parecem infelizes, nos vários programas diários televisivos, que mostram cozinhados, bailaricos, canções e alegria popular com fartura.
João Miguel Tavares refere que criou o neologismo “desgraçadismo” por analogia com o “engraçadismo” criado por Pacheco Pereira, em apontamento sobre a ligeireza das críticas humorísticas - como a de J. Miguel Tavares - o que não admira, tal a profundidade dos esclarecimento científicos de Pacheco Pereira, qual Dr. Fausto interessado pela panorâmica da ciência universal, as levezas da jocosidade crítica passando-lhe ao largo, embora não as da sensibilidade amorosa. (Refiro-me, é claro, neste último capítulo, a Fausto, não a Pacheco Pereira, cuja vida pessoal me é estranha).
Para além, pois, da exploração do miserabilismo para fins eleitorais, da crónica de João M. Tavares, a crónica de Vasco Pulido Valente refere, em iracúndia de desprezo “crónico”, a história de um povo deslumbrado pelo dinheiro fácil, que nos levou actualmente a querer emparceirar com as “raças superiores” europeias. Uma lição de história pátria, uma lição humilhante, que, se não prestigia o povo português, também não prestigia quem tão aristocraticamente o achincalha, sem qualquer laivo de equilíbrio ou de bondade, em generalização propositadamente defeituosa.

O texto de João Miguel Tavares:

«O desgraçadismo foi sobrevalorizado»
Em tempos, Pacheco Pereira cunhou a palavra “engraçadismo” para classificar aqueles que, como eu, utilizam o humor para falar de assuntos políticos, com uma superficialidade (diz ele) que impede uma genuína reflexão sobre os problemas do país.
Hoje, eu queria devolver o cumprimento e acusar Pacheco Pereira de “desgraçadismo”, que podemos classificar como a utilização de um discurso catastrófico para falar de assuntos políticos, com um primarismo (digo eu) que impede uma genuína avaliação do estado do país.
Não digo isto só para embirrar com Pacheco Pereira em vésperas de eleições, mas porque a sua atitude me parece sintomática do desfasamento que existe entre a realidade do país e a narrativa que sobre ele foi sendo construída ao longo dos últimos anos. Todos estamos admirados com as sondagens, e há seis meses não se vislumbrava vivalma capaz de admitir em público a sua fé na vitória da coligação. Contudo, há uma diferença significativa entre o espanto e a incompreensão. Eu estou espantado, mas percebo. Já a esquerda da pátria, e a própria esquerda do PSD, não está pura e simplesmente a perceber o que lhe está acontecer. Afinal, como é possível que num Portugal espremido até à última gota de IVA, de sobretaxa de IRS, de 13º mês, de terrível precariedade e impiedosa austeridade, quatro em cada dez eleitores ainda se mostre disponível para votar em quem nos governou desde 2011? O povo embruteceu de vez?
Não, o povo não embruteceu de vez, embora o mesmo não se possa dizer de quem decidiu resumir os últimos quatro anos de Portugal a uma espécie de “waste land” – para esses, Outubro pode bem vir a ser o mês mais cruel. Ao mesmo tempo que fomos sendo esmagados por um discurso mediático centrado em números de desemprego, programas de ajustamento, cortes, emigração, quedas de bancos e protestos de corporações descontentes, havia centenas de milhares de portugueses a fazer pela vida e a tentarem desenrascar-se sem a velha bengala do Estado, cada vez mais frouxa e desconjuntada. O desgraçadismo está muito sobrevalorizado.
É verdade que boa parte dos portugueses que vão votar na coligação não estão satisfeitos com a governação de Passos Coelho e Paulo Portas. Eu próprio, no próximo domingo, vou votar PàF mais ou menos com a mesma convicção com que os comunistas votaram em Mário Soares em 1986. Trata-se de engolir, não direi um sapo, mas, pelo menos, uma rã. Só que não tenho alternativa à rã – não há um único partido que esteja a criticar a coligação por aquilo que ela merece ser criticada. Todos os políticos batem na tecla da austeridade, quando todos os não-políticos têm a perfeita consciência de que a austeridade era inevitável; toda a esquerda acusa o governo de ter ido além da troika, quando o maior erro do governo foi ter ficado aquém da troika.
Tivesse alguém dito: “o governo perdeu uma excelente oportunidade para reformar o país”, e eu estaria ao seu lado. Mas não. Em toda esta campanha apenas se ouviu a conversa do desgraçadinho. Ora, para quem não é desgraçadinho, não se sente desgraçadinho e não está viciado em desgraçadismo, o discurso do queixume e as promessas de regresso a vacas gordas em prado ralo são muito pouco convincentes. O país mudou e o PS estava distraído. Acreditou que para ganhar folgadamente as eleições bastava, como dantes, sacar o voto do descontentamento. Enganou-se: desta vez, os descontentes não são todos iguais.

O texto de Vasco Pulido Valente:
«Portugal não tem cura»
A revista Visão trazia na capa: “Voltou o dinheiro fácil”, o que para muita gente foi com certeza um motivo de congratulação.
Não interessa que a poupança tenha caído nos três primeiros meses deste ano, nem que a balança comercial tenha voltado a ser (temporariamente?) deficitária. Os portugueses são portugueses porque são ou imaginam que são europeus. Fora isso, coitados, não são coisa nenhuma e precisam, portanto, de imitar as “raças” superiores que vivem lá mais para norte ou para ocidente. E quando apanham uns tostões, já se sabe, é para se mascararem de “modernos”. Compram, ou recompram, uma casa, um carro novo, o último computador, um tablet e um smartphone e vão passear para a Tailândia ou outro sítio exótico como as pessoas civilizadas.
No meio das belezas da segunda metade do século XIX, houve em Portugal um pequeno percalço. O Brasil arranjou uma guerra com o Paraguai (1864- 1870) e a moeda brasileira, que nos chegava da emigração, perdeu uma parte substancial do seu valor. Ora era com ela, ou quase só com ela, que nós pagávamos as nossas contas no estrangeiro, porque o “real” português não valia nada. A “classe média” indígena ficou muito agitada. Os dois partidos do regime (o regenerador e o progressista) fabricaram um governo a que chamaram “Fusão”, o Porto veio para a rua e resolveu inventar para seu uso uma “união nacional” e tudo até 1871 ficou numa grande balbúrdia, que só Fontes conseguiu acalmar, com um empréstimo confortável, que nos permitiu não perder a nossa querida “identidade nacional”.
Nesse tempo, a “classe média” (um conceito por excelência ambíguo) não passava de uns milhares de pobrezinhos, que trabalhavam para o Estado e arrastavam as suas pretensões melancolicamente pelos cafés da Baixa e por alguns clubes recreativos. Uma carga de polícia chegava para os meter na ordem. Hoje não. Hoje a verdadeira “classe média” com hábitos de consumo “como na Europa” é uma grande massa de centenas de milhares de pessoas (na maioria funcionários públicos), distribuídas por Portugal inteiro e com um voto na mão. Não se contentam com o óbolo exíguo que recebem do Estado, protestam contra a sua imaginária “escravatura” fiscal e querem “mudar”. Para quê já confirmámos: para gozar os benefícios da civilização como ela se goza em Nova Iorque ou em Bali, com a comodidade que o seu “bom gosto”, aprendido na TVI, na SIC e em revistas, manifestamente exige. Portugal não tem cura.

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