Era o meu pai um homem sério,
que gostava de contar a sua anedota à mesa, para nos rirmos, o que acontecia
não raras vezes. A propósito do hábito do lamento que reconhecia no povo
português, ele próprio podendo referir – mas jamais o fazendo, sempre discreto,
no seu mundo que sempre admirei como superior, (nos seus estudos, nas suas
lutas, na sua força de alma, nos seus escritos), conhecendo eu a sua história
primeira mais pelas referências da minha mãe, do que por qualquer possível
desabafo seu – a propósito, pois, do choradinho provinciano, contido em tanto
do fado antigo, o meu pai resumia-o na expressão que colheu algures e nos fazia
rir sempre – “Chora a mãe trabeculosa junt’ à filha qu’ agoniza”.
É tema da crónica de João
Miguel Tavares «O desgraçadismo foi sobrevalorizado», do Público
de 1 de Outubro, ultimamente muito referido, no propósito de reforço das
acusações ao Governo que o proporcionou com a sua austeridade “criminosa”. A
crónica o diz, eu já tinha reparado, em conversa de café, mostrando quanto tal
não corresponde assim tanto à realidade, quando nos “concertos” e outros
eventos públicos se vêem os espaços repletos, apesar da careza dos bilhetes.
Por outro lado, com uma bonificação passageira nas carteiras – confesso que não
dei por nada, mas Vasco Pulido Valente o afirma em “Portugal não tem cura”
no Público de 26/9, a propósito do “dinheiro fácil” que voltou – refere-se
o aumento do nível de vida, em aquisições de automóveis e provavelmente em gozo
de férias, nem sei bem. As populações das terras também não parecem infelizes,
nos vários programas diários televisivos, que mostram cozinhados, bailaricos,
canções e alegria popular com fartura.
João Miguel Tavares refere que
criou o neologismo “desgraçadismo” por analogia com o “engraçadismo” criado por
Pacheco Pereira, em apontamento sobre a ligeireza das críticas humorísticas - como
a de J. Miguel Tavares - o que não admira, tal a profundidade dos
esclarecimento científicos de Pacheco Pereira, qual Dr. Fausto interessado pela
panorâmica da ciência universal, as levezas da jocosidade crítica passando-lhe
ao largo, embora não as da sensibilidade amorosa. (Refiro-me, é claro, neste
último capítulo, a Fausto, não a Pacheco Pereira, cuja vida pessoal me é estranha).
Para além, pois, da exploração
do miserabilismo para fins eleitorais, da crónica de João M. Tavares, a crónica
de Vasco Pulido Valente refere, em iracúndia de desprezo “crónico”, a história
de um povo deslumbrado pelo dinheiro fácil, que nos levou actualmente a querer
emparceirar com as “raças superiores” europeias. Uma lição de história pátria,
uma lição humilhante, que, se não prestigia o povo português, também não
prestigia quem tão aristocraticamente o achincalha, sem qualquer laivo de equilíbrio
ou de bondade, em generalização propositadamente defeituosa.
O texto de João Miguel Tavares:
«O
desgraçadismo foi sobrevalorizado»
Em
tempos, Pacheco Pereira cunhou a palavra “engraçadismo” para classificar
aqueles que, como eu, utilizam o humor para falar de assuntos políticos, com
uma superficialidade (diz ele) que impede uma genuína reflexão sobre os
problemas do país.
Hoje,
eu queria devolver o cumprimento e acusar Pacheco Pereira de “desgraçadismo”,
que podemos classificar como a utilização de um discurso catastrófico para
falar de assuntos políticos, com um primarismo (digo eu) que impede uma genuína
avaliação do estado do país.
Não
digo isto só para embirrar com Pacheco Pereira em vésperas de eleições, mas
porque a sua atitude me parece sintomática do desfasamento que existe entre a
realidade do país e a narrativa que sobre ele foi sendo construída ao longo dos
últimos anos. Todos estamos admirados com as sondagens, e há seis meses não se
vislumbrava vivalma capaz de admitir em público a sua fé na vitória da
coligação. Contudo, há uma diferença significativa entre o espanto e a
incompreensão. Eu estou espantado, mas percebo. Já a esquerda da pátria, e a
própria esquerda do PSD, não está pura e simplesmente a perceber o que lhe está
acontecer. Afinal, como é possível que num Portugal espremido até à última gota
de IVA, de sobretaxa de IRS, de 13º mês, de terrível precariedade e impiedosa
austeridade, quatro em cada dez eleitores ainda se mostre disponível para votar
em quem nos governou desde 2011? O povo embruteceu de vez?
Não,
o povo não embruteceu de vez, embora o mesmo não se possa dizer de quem decidiu
resumir os últimos quatro anos de Portugal a uma espécie de “waste land” – para
esses, Outubro pode bem vir a ser o mês mais cruel. Ao mesmo tempo que fomos
sendo esmagados por um discurso mediático centrado em números de desemprego,
programas de ajustamento, cortes, emigração, quedas de bancos e protestos de
corporações descontentes, havia centenas de milhares de portugueses a fazer
pela vida e a tentarem desenrascar-se sem a velha bengala do Estado, cada vez
mais frouxa e desconjuntada. O desgraçadismo está muito sobrevalorizado.
É
verdade que boa parte dos portugueses que vão votar na coligação não estão
satisfeitos com a governação de Passos Coelho e Paulo Portas. Eu próprio, no
próximo domingo, vou votar PàF mais ou menos com a mesma convicção com que os
comunistas votaram em Mário Soares em 1986. Trata-se de engolir, não direi um
sapo, mas, pelo menos, uma rã. Só que não tenho alternativa à rã – não há um
único partido que esteja a criticar a coligação por aquilo que ela merece ser
criticada. Todos os políticos batem na tecla da austeridade, quando todos os
não-políticos têm a perfeita consciência de que a austeridade era inevitável;
toda a esquerda acusa o governo de ter ido além da troika, quando o maior erro
do governo foi ter ficado aquém da troika.
Tivesse
alguém dito: “o governo perdeu uma excelente oportunidade para reformar o
país”, e eu estaria ao seu lado. Mas não. Em toda esta campanha apenas se ouviu
a conversa do desgraçadinho. Ora, para quem não é desgraçadinho, não se sente
desgraçadinho e não está viciado em desgraçadismo, o discurso do queixume e as
promessas de regresso a vacas gordas em prado ralo são muito pouco
convincentes. O país mudou e o PS estava distraído. Acreditou que para ganhar
folgadamente as eleições bastava, como dantes, sacar o voto do
descontentamento. Enganou-se: desta vez, os descontentes não são todos iguais.
O texto de
Vasco Pulido Valente:
«Portugal não tem cura»
A
revista Visão trazia na capa: “Voltou o dinheiro fácil”, o que para muita gente
foi com certeza um motivo de congratulação.
Não
interessa que a poupança tenha caído nos três primeiros meses deste ano, nem
que a balança comercial tenha voltado a ser (temporariamente?) deficitária. Os
portugueses são portugueses porque são ou imaginam que são europeus. Fora isso,
coitados, não são coisa nenhuma e precisam, portanto, de imitar as “raças”
superiores que vivem lá mais para norte ou para ocidente. E quando apanham uns
tostões, já se sabe, é para se mascararem de “modernos”. Compram, ou recompram,
uma casa, um carro novo, o último computador, um tablet e um smartphone e vão passear para a
Tailândia ou outro sítio exótico como as pessoas civilizadas.
No
meio das belezas da segunda metade do século XIX, houve em Portugal um pequeno
percalço. O Brasil arranjou uma guerra com o Paraguai (1864- 1870) e a moeda
brasileira, que nos chegava da emigração, perdeu uma parte substancial do seu
valor. Ora era com ela, ou quase só com ela, que nós pagávamos as nossas contas
no estrangeiro, porque o “real” português não valia nada. A “classe média”
indígena ficou muito agitada. Os dois partidos do regime (o regenerador e o
progressista) fabricaram um governo a que chamaram “Fusão”, o Porto veio para a
rua e resolveu inventar para seu uso uma “união nacional” e tudo até 1871 ficou
numa grande balbúrdia, que só Fontes conseguiu acalmar, com um empréstimo
confortável, que nos permitiu não perder a nossa querida “identidade nacional”.
Nesse
tempo, a “classe média” (um conceito por excelência ambíguo) não passava de uns
milhares de pobrezinhos, que trabalhavam para o Estado e arrastavam as suas
pretensões melancolicamente pelos cafés da Baixa e por alguns clubes
recreativos. Uma carga de polícia chegava para os meter na ordem. Hoje não.
Hoje a verdadeira “classe média” com hábitos de consumo “como na Europa” é uma
grande massa de centenas de milhares de pessoas (na maioria funcionários
públicos), distribuídas por Portugal inteiro e com um voto na mão. Não se
contentam com o óbolo exíguo que recebem do Estado, protestam contra a sua
imaginária “escravatura” fiscal e querem “mudar”. Para quê já confirmámos: para
gozar os benefícios da civilização como ela se goza em Nova Iorque ou em Bali,
com a comodidade que o seu “bom gosto”, aprendido na TVI, na SIC e em revistas,
manifestamente exige. Portugal não tem cura.
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