Releio livros antigos,
aparentemente ligeiros, de Françoise Sagan, que, desde o seu «Bonjour tristesse»,
imediatamente desencadeador de escândalo e admiração, (esta última causada pela
precocidade da escritora) protagonizaram um piparote nos costumes burgueses,
encarcerados nos convencionalismos das chamadas hipocrisias sociais,
impeditivas da transparência nas acções do foro pessoal e familiar. Estas,
acondicionadas na ciência das conveniências, não impediram nunca, contudo, tantas
das tais violências que uma sociedade machista possibilitou - e, ao que parece,
continua a possibilitar, mau grado o travão que a defesa dos direitos humanos instituídos
propõe.
As liberdades concedidas com o
desenvolvimento cultural, as permissividades que as acompanharam, nos capítulos
do feminismo, da prostituição, da homossexualidade, o desgaste das relações humanas, tudo isso perpassa sem convicção na obra de Sagan, em
que, muitas vezes ela é figura principal, que encara cinicamente todas as
questões morais ou amorais, na consciência da sua irrisão. Admiro-lhe, pois, o
estilo, onde a psicologia se casa com o conhecimento humano resultante de
experiência de vida, sem dogmas de verdades absolutas E as personagens surgem
leves, sedutoras, ingénuas ou grotescas, e simultaneamente indiferentes, na sua
intelectualidade que põe em causa todos os princípios da racionalidade, o ser
afirmando-se superior a quaisquer princípios – caso dos irmãos suecos Sébastien
e Eléonore, cínicos e belos e parasitas, tanto na comédia “Château en Suède”
, como na novela “Des bleus à l’âme” traduzida em português como “Viver
não custa”, em que surgem como cúmplices na procura de quem os sustente
momentaneamente, aliciado pela sedução e indiferença que ambos revestem.
Estes e outros livros – “Aimez-vous
Brahms?”, “Dans un mois, dans un an”, li-os há muito, como algo de
novo que varreu concepções antigas e me ajudou a pensar, a voz da narradora,
presente ou não, que se afirma na solidão irreparável da miséria humana, que as
filosofias existencialistas tornaram mais percucientes. Vou-os relendo, sempre
no mesmo encantamento, a “pobreza” não aparecendo entre as suas temáticas, na
intelectualidade e bem-estar das sociedades que transpõe aos seus livros, desde
os tempos recuados do seu “Bonjour tristesse”, no local paradisíaco da Côte d’Azur.
Pobreza é tema que amam os
nossos escritores neo-realistas, na tristeza de uma pátria pobre e pouco
intelectual, que amam os nossos deputados da esquerda com fins revestidos de
uma generosidade ambígua, pobreza, o tema escolhido por Vasco Pulido Valente
para a sua crónica de 11/10, clarificadora de mensagem e história. “A
natureza da coisa”, assim se chama. Não mostra quanto é obscena, de facto, a
pobreza, que, apesar dos tais direitos constitucionais, invade o mundo, com
cada vez maior amplitude, lembrando o universo em expansão, de galáxias
afastando-se. A riqueza em expansão, a pobreza em expansão. Tal o universo e as
suas galáxias. Não deixa de ser obsceno, pese embora a nossa descrença
nas intenções desses tais deputados da esquerda. Porque não atentam no facto de
os que governaram quererem eliminar isso, tanto quanto possível.
Em minha humilde opinião, esses tais
de que fala Vasco Pulido Valente estão ansiosos por generalizarem a pobreza a
todo o país, quais galáxias expandindo-se no espaço.
A
natureza da coisa
Público, 11/10/2015
A pobreza foi descoberta pelos filhos da burguesia no
século XIX. Até ali não era visível, como hoje ainda em grande parte não é, ou
era considerada uma característica geral da criminalidade.
Foi
já em 1958 que o historiador Louis Chevalier escreveu um livro em que
distinguia as “classes laboriosas” das “classes criminosas” e explicou ao mundo
essa particular cegueira da civilização ocidental. Houve, evidentemente, desde
o princípio da Restauração dos Bourbons (1815-1830) uma espécie de literatura
que explorava o equívoco entre o “povo” bom e o “povo” mau, que a gente “com
qualquer coisinha de seu” lia com delícia, cujo exemplo mais conhecido é “Os
Mistérios de Paris” de Eugène Sue, mil vezes copiado e recopiado, mesmo por
Vítor Hugo na obra épica “Os Miseráveis”, que continua a ser na forma de
opereta ou na forma de filme um sucesso contemporâneo.
No
século XIX descobrir a pobreza (como descobrir o sexo) mudou a vida a muita
gente. Não só essa estranha revelação abria o caminho para a idade adulta e
para a cidadania, mas porque o adolescente “rico” se sentia por uma vez parte
da humanidade e frequentemente com a missão de a reformar. Claro que primeiro
vinham os sentimentos: a indignação, a fúria, a tristeza, o ódio por uma
sociedade que permitia aquela atroz miséria. Mas, com o tempo, esses
sentimentos cristalizavam numa vontade de acção: ou se trepava para uma
barricada ou se escreviam utopias “socialistas”, para inquietar os poderes do
dia e aliviar os remorsos. E aqui nesta luta pela transformação do mundo, que
se achava radical e definitiva, nasceu um equívoco perene.
Do
genuíno sofrimento pela pobreza não derivam conclusões seguras sobre a natureza
da história ou sobre o regime em que a humanidade deve viver. Pelo contrário, o
sofrimento leva quase sempre a ideias que não têm um uso prático ou a planos
que escondem ou ignoram a realidade. Basta ver a nossa extrema-esquerda. Não
nego que andem por lá pessoas bem-intencionadas. Sucede que a noção de que os
sentimentos chegam para reformar a sociedade e o fanatismo em que a acção de
costume se perde e se transforma podem quanto muito produzir alguma destruição
sem nexo, não podem mudar nada duradouramente. Não por acaso a extrema-esquerda
(de qualquer pinta ou nascimento) se parece toda com uma igreja, com o seu zelo
e o seu ódio teológico. São pássaros da mesma pena.
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