domingo, 6 de março de 2016

Ainda o Hissope



Ainda o desaguisado inédito entre  o “Bispo D. Lourenço” da Câmara Municipal do Porto, e o “deão Lara” da “Sé” de Vigo, respectivamente Rui Moreira e o alcaide de Vigo, Caballero, que, por ser cavalheiro – e provavelmente ignorante dos sabores deliciosos do apimentado prato da Invicta - «a francesinha» - não levou a bem a grosseria da inédita equiparação com a salsicha fresca no dito prato, talvez – quem sabe? - até referida em secreta homenagem a si, nuestro hermano, embora em forma de bordoada de arrocho bem à portuguesa, por falta de subtileza discursiva. O que é certo, é que a atitude de Rui Moreira atrai a loa prazenteira de João Taborda da Gama, no prazer da sua franqueza rude contrariando o “politicamente correcto” da nossa hipocrisia, que o é não só a  nível nacional como até ao nível mundial. Daí a loa e a referência a outros exemplos do discurso rude de outros “insultadores” como Antonio Scalia, rude adepto do “come e cala” dos poderes soberanos destes tempos - a "dita dura", como se apelidava nos idos de sessenta.
Um tipo de humor, este de João Taborda da Gama, despojado e alegremente saudável, sem moralismos convencionais, e com informação política de apreço, que dá prazer reler:

Francesinhas frescas
João Taborda da Gama
DN, 21/2/16
O mundo é um lugar cada vez menos seguro: ainda a tinta do acordo nuclear com o Irão não tinha secado já a humanidade estava a ser confrontada com o embate Porto-Vigo. Agora a sério: Rui Moreira não esteve nada mal nas bordoadas que distribuiu Rias Bajas acima. Apesar dos arrepios na pele sempre sensível das elites alfacinhas, insultar uma cidade a cento e cinquenta quilómetros de distância noutro país, e sem aviso prévio, tem a sua grandeza. Por acaso Medina tem coragem para chamar chispe no cozido a Badajoz? Ou Almeida Henriques chama maranho a Salamanca? Moreira abriu o livro da internacionalização do cacete local. Já ninguém tem é paciência para a picardiazinha Lisboa-Porto, Manchester-Liverpool, Canas de Senhorim e a terra ao lado com quem andam sempre às turras. Se é para picardias, internacionalizemos a picardia. Aliás, a tendência mundial é precisamente a de estabelecer relações intercidades, redes de cidades que se situam em diversos países e que têm entre elas um conjunto de relações, fluxos, contas-correntes. Geografias variáveis. Mas excetuando talvez Estocolmo-Copenhaga, não é muito comum a rivalidade municipal transfronteiriça - e só por isso Moreira já merece palmas por esta estreia.
E com estrondo: à primeira o vigota amuou. Cortou relações, fez declarações, quer um pedido de desculpas.
Em vez de ignorar olimpicamente Moreira e a Invicta, por que raio foi o Cavalheiro Caballero cortar relações diplomáticas com o Porto? Será que levou demasiado à letra aquilo de lhe dizerem que ele se sente como uma "salsicha fresca dentro de uma francesinha"? É que não tenho nada por certo que o senhor Caballero, apesar de galego, saiba o que é uma francesinha ou, melhor dizendo, que neste contexto francesinha é prato e salxicha (em galego) é enchido. Achou que a coisa era uma brejeirice e sentiu-se tocado. Compreende-se, um Caballero é um Caballero. No fundo, no fundo, o corte de relações entre Vigo e o Porto é tão grave como o Canadá deixar de participar no Festival da Eurovisão. Vigo é uma cidade absolutamente irrelevante para a vida da maioria dos portugueses, não aquece nem arrefece, exceto o consolo que traz recordar aqueles noventa minutos em que o Benfica levou sete. E isto, e apenas isto, era a única coisa em que o presidente da Câmara do Porto devia ter pensado (talvez dizer: "Estou a ofender Vigo, a cidade, mas não o Celta nem os seus adeptos que estão sempre no nosso coração"). Quanto ao resto, é continuar a carregar, que já se viu que o galego é chorão. E se ele ripostar, é enviar a Vigo uma legião de taxistas portuenses, daqueles que espancam motoristas da Uber à porta do Sheraton.
Mas Rui Moreira estava imparável e não ficou pela salsicha fresca: indagou se a promoção da TAP, que oferece um pacote de fim de semana a Lisboa com viagem e estada, não incluiria também a companhia. Não me parecendo que o edil se estivesse a referir a partes de capital da própria companhia aérea (um programa milhas-por-ações, numa cooperativização sexy da TAP), a companhia em causa seria mais naquele sentido de acompanhamento afetivo temporário oneroso (ver os classificados deste jornal, umas páginas atrás).
E é a propósito deste tipo de companhia que queria lembrar um grande insultador, uma grande cabeça, um grande jurista, Antonin Scalia, que morreu esta semana. Scalia era juiz do Supremo Tribunal norte-americano, colosso de um conservadorismo jurídico radical (não temos por cá disso, não vale a pena tentar procurar analogias). Scalia é a prova de que só podemos verdadeiramente discordar de alguém que admiramos; é o respeito, neste caso intelectual, que traça a linha entre o desprezo e a discórdia, uma das mais importantes fronteiras interpessoais. É estranho isto de admirar muito quem com quem se concorda pouco. Scalia chegou ao Supremo em 1986, mas no Tribunal de Recurso onde era juiz anteriormente escreveu uma das mais belas aberturas de acórdãos: "Este caso, sobre os requisitos jurídicos da composição e etiquetagem de produtos cárneos como as salsichas do tipo frankfurt, dá-nos a rara oportunidade de explorar simultaneamente as duas partes do aforismo de Bismark segundo o qual "nenhum homem deve ver como as leis ou as salsichas são feitas"." E com esta abertura mata logo a pretensão de um grupo de consumidores em deitar abaixo um regulamento que não obrigava a indicar que a carne da salsicha era destruída mecanicamente, o que faria com que o enchido pudesse ter fragmentos de osso. Scalia mandou-os comer e calar, que o Estado faz os regulamentos que quiser. É esta brutalidade de palavras, que Scalia tinha e que Moreira teve agora, que falta cada vez mais ao mundo morno do consenso e da protodiscussão, em que todos nos prostituímos ao boi sagrado do politicamente correto. Em 2013 o Supremo Tribunal dos EUA, por seis a dois, entendeu que uma lei não podia fazer depender os subsídios a ONG de estas serem expressamente contra a prostituição e a sua legalização, que isto violava a liberdade de expressão das organizações, sobretudo aquelas que trabalhavam nos países em desenvolvimento com prostitutas infetadas com VIH. Scalia discorda e defende no seu voto de vencido que o Estado não tem de ser absolutamente neutral nas suas perspetivas, e que não viola a liberdade de expressão, de nenhuma organização não ser financiada por aquelas que, apesar de não se oporem, não apoiarem as perspetivas do governo - podendo, naturalmente, atuar e dizer publicamente tudo aquilo em que acreditam. Era, disse Scalia, como entregar o programa público de alimentação saudável à Sociedade Gourmet Americana, que não se opõe à comida saudável mas também não a defende expressamente. Ou, diria Moreira, usar a TAP pública como uma espécie de shuttle para as escapadelas dos vigotas a Lisboa.

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