Ainda o desaguisado inédito entre
o “Bispo D. Lourenço”
da Câmara Municipal do Porto, e o “deão Lara” da “Sé” de Vigo,
respectivamente Rui Moreira e o alcaide de Vigo, Caballero, que, por ser
cavalheiro – e provavelmente ignorante dos sabores deliciosos do apimentado prato
da Invicta - «a francesinha» - não levou a bem a grosseria da inédita equiparação
com a salsicha fresca no dito prato, talvez – quem sabe? - até referida em
secreta homenagem a si, nuestro hermano, embora em forma de bordoada de arrocho bem
à portuguesa, por falta de subtileza discursiva. O que é certo, é que a atitude
de Rui Moreira atrai a loa prazenteira de João Taborda da Gama, no prazer da
sua franqueza rude contrariando o “politicamente correcto” da nossa hipocrisia,
que o é não só a nível nacional como até
ao nível mundial. Daí a loa e a referência a outros exemplos do discurso rude de
outros “insultadores” como Antonio Scalia, rude adepto do “come e cala” dos
poderes soberanos destes tempos - a "dita dura", como se apelidava nos idos de sessenta.
Um tipo de humor, este de João
Taborda da Gama, despojado e alegremente saudável, sem moralismos
convencionais, e com informação política de apreço, que dá prazer reler:
Francesinhas
frescas
João
Taborda da Gama
DN,
21/2/16
O
mundo é um lugar cada vez menos seguro: ainda a tinta do acordo nuclear com o
Irão não tinha secado já a humanidade estava a ser confrontada com o embate
Porto-Vigo. Agora a sério: Rui Moreira não esteve nada mal nas bordoadas que
distribuiu Rias Bajas acima. Apesar dos arrepios na pele sempre sensível das
elites alfacinhas, insultar uma cidade a cento e cinquenta quilómetros de
distância noutro país, e sem aviso prévio, tem a sua grandeza. Por acaso Medina
tem coragem para chamar chispe no cozido a Badajoz? Ou Almeida Henriques chama
maranho a Salamanca? Moreira abriu o livro da internacionalização do cacete
local. Já ninguém tem é paciência para a picardiazinha Lisboa-Porto,
Manchester-Liverpool, Canas de Senhorim e a terra ao lado com quem andam sempre
às turras. Se é para picardias, internacionalizemos a picardia. Aliás, a
tendência mundial é precisamente a de estabelecer relações intercidades, redes
de cidades que se situam em diversos países e que têm entre elas um conjunto de
relações, fluxos, contas-correntes. Geografias variáveis. Mas excetuando talvez
Estocolmo-Copenhaga, não é muito comum a rivalidade municipal transfronteiriça
- e só por isso Moreira já merece palmas por esta estreia.
E
com estrondo: à primeira o vigota amuou. Cortou relações, fez declarações, quer
um pedido de desculpas.
Em
vez de ignorar olimpicamente Moreira e a Invicta, por que raio foi o Cavalheiro
Caballero cortar relações diplomáticas com o Porto? Será que levou demasiado à
letra aquilo de lhe dizerem que ele se sente como uma "salsicha fresca
dentro de uma francesinha"? É que não tenho nada por certo que o senhor
Caballero, apesar de galego, saiba o que é uma francesinha ou, melhor dizendo,
que neste contexto francesinha é prato e salxicha (em galego) é enchido. Achou
que a coisa era uma brejeirice e sentiu-se tocado. Compreende-se, um Caballero
é um Caballero. No fundo, no fundo, o corte de relações entre Vigo e o Porto é
tão grave como o Canadá deixar de participar no Festival da Eurovisão. Vigo é
uma cidade absolutamente irrelevante para a vida da maioria dos portugueses,
não aquece nem arrefece, exceto o consolo que traz recordar aqueles noventa
minutos em que o Benfica levou sete. E isto, e apenas isto, era a única coisa
em que o presidente da Câmara do Porto devia ter pensado (talvez dizer:
"Estou a ofender Vigo, a cidade, mas não o Celta nem os seus adeptos que
estão sempre no nosso coração"). Quanto ao resto, é continuar a carregar,
que já se viu que o galego é chorão. E se ele ripostar, é enviar a Vigo uma
legião de taxistas portuenses, daqueles que espancam motoristas da Uber à porta
do Sheraton.
Mas
Rui Moreira estava imparável e não ficou pela salsicha fresca: indagou se a
promoção da TAP, que oferece um pacote de fim de semana a Lisboa com viagem e
estada, não incluiria também a companhia. Não me parecendo que o edil se
estivesse a referir a partes de capital da própria companhia aérea (um programa
milhas-por-ações, numa cooperativização sexy da TAP), a companhia em causa
seria mais naquele sentido de acompanhamento afetivo temporário oneroso (ver os
classificados deste jornal, umas páginas atrás).
E
é a propósito deste tipo de companhia que queria lembrar um grande insultador,
uma grande cabeça, um grande jurista, Antonin Scalia, que morreu esta semana.
Scalia era juiz do Supremo Tribunal norte-americano, colosso de um
conservadorismo jurídico radical (não temos por cá disso, não vale a pena
tentar procurar analogias). Scalia é a prova de que só podemos verdadeiramente
discordar de alguém que admiramos; é o respeito, neste caso intelectual, que
traça a linha entre o desprezo e a discórdia, uma das mais importantes
fronteiras interpessoais. É estranho isto de admirar muito quem com quem se
concorda pouco. Scalia chegou ao Supremo em 1986, mas no Tribunal de Recurso
onde era juiz anteriormente escreveu uma das mais belas aberturas de acórdãos:
"Este caso, sobre os requisitos jurídicos da composição e etiquetagem de
produtos cárneos como as salsichas do tipo frankfurt, dá-nos a rara oportunidade
de explorar simultaneamente as duas partes do aforismo de Bismark segundo o
qual "nenhum homem deve ver como as leis ou as salsichas são
feitas"." E com esta abertura mata logo a pretensão de um grupo de
consumidores em deitar abaixo um regulamento que não obrigava a indicar que a
carne da salsicha era destruída mecanicamente, o que faria com que o enchido
pudesse ter fragmentos de osso. Scalia mandou-os comer e calar, que o Estado
faz os regulamentos que quiser. É esta brutalidade de palavras, que Scalia tinha
e que Moreira teve agora, que falta cada vez mais ao mundo morno do consenso e
da protodiscussão, em que todos nos prostituímos ao boi sagrado do
politicamente correto. Em 2013 o Supremo Tribunal dos EUA, por seis a dois,
entendeu que uma lei não podia fazer depender os subsídios a ONG de estas serem
expressamente contra a prostituição e a sua legalização, que isto violava a
liberdade de expressão das organizações, sobretudo aquelas que trabalhavam nos
países em desenvolvimento com prostitutas infetadas com VIH. Scalia discorda e
defende no seu voto de vencido que o Estado não tem de ser absolutamente
neutral nas suas perspetivas, e que não viola a liberdade de expressão, de
nenhuma organização não ser financiada por aquelas que, apesar de não se oporem,
não apoiarem as perspetivas do governo - podendo, naturalmente, atuar e dizer
publicamente tudo aquilo em que acreditam. Era, disse Scalia, como entregar o
programa público de alimentação saudável à Sociedade Gourmet Americana, que não
se opõe à comida saudável mas também não a defende expressamente. Ou, diria
Moreira, usar a TAP pública como uma espécie de shuttle para as escapadelas dos
vigotas a Lisboa.
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