Somos mesmo assim, como nos descreve Camões, a
propósito de uma trombeta castelhana a dar um sinal de guerra, que fez que as tais
mães – portuguesas de origem -“aos peitos os filhinhos apertaram” ao
ouvi-lo “horrendo, fero, ingente e temeroso”. Somos mesmo assim,
temerosas do mundo, protectoras dos filhos desde tenrinha idade, mães-galinhas
como nos acusam, embora os media nos informem do aumento das excepções em cada
dia que passa, com crianças sofrendo destinos estapafúrdios que jamais se
pensaria pudessem acontecer por cá. Mas o nosso Governo vê-se que é do estilo dessas
mães de Aljubarrota, pelo menos segundo o subentende Clara Ferreira Alves em ira
com o facto, no seu artigo de 27/3/16, ela que assistiu, com certeza, a cenas
chocantes lá pelo Médio Oriente – ainda não se falava nas migrações de agora - que
o seu “Pai Nosso” deixa antever, no seu estilo simultaneamente sóbrio nas frases curtas e alucinante de abundância de dados,
espécie de pontilhismo, na profusão das referências a sentimentos e a factos,
por vezes apenas pressentidos, com multiplicidade de acontecimentos e espaços, e
originalidade da imagem simples e drástica, e em que as sequências conflituais
nem sempre são facilmente deslindáveis, o propósito narrativo não sendo o de facilitar
a percepção, mas o de baralhar as pistas, tanto na expressão narrativa como na sequência
referencial, nos palcos de guerra e outros, de dados profundamente embaraçados,
das suas muitas viagens e experiências no mundo. E toda esta experiência lhe fornece a
sagacidade para criticar, comparando.
Retomando,
pois, o tema, na questão dos afectos maternos portugueses não podemos também ignorar os desvelos
das mães medievais pelas filhas sofrendo de amores, a que o próprio D Dinis foi
sensível: «De que morredes,
filha, a do corpo velido? ―Madre,
moiro d' amores que mi deu meu amigo; («Alva é, vai liero»)» ou os versos de Bulhão Pato, que
confirmam, em estilo ultra romântico, a nossa idiossincrasia materna, de susto
e protecção contínuos, e até sem qualquer estilo literário de monta:
A mãe e o filho morto
A pobre da mãe cuidava
Que o filhinho inda vivia,
E nos braços o apertava!
O coração que batia
Era o dela, e não do filho,
Que já no sono da morte
Havia instantes dormia.
Olhei, e fiquei absorto
Na dor daquela mulher
Que tinha, sem o saber,
Nos braços o filho morto!
Que o filhinho inda vivia,
E nos braços o apertava!
O coração que batia
Era o dela, e não do filho,
Que já no sono da morte
Havia instantes dormia.
Olhei, e fiquei absorto
Na dor daquela mulher
Que tinha, sem o saber,
Nos braços o filho morto!
Rezava, e do fundo
d'alma!
Enquanto a infeliz rezava
O pobre infante esfriava!
Enquanto a infeliz rezava
O pobre infante esfriava!
Quando gelado o
sentira,
O grito que ela soltou,
Meu Deus! — que dor expressou!
O grito que ela soltou,
Meu Deus! — que dor expressou!
Pensei então: a mulher
Para alcançar o perdão
De quantos crimes tiver,
Na fervorosa oração,
Basta que possa dizer:
"Tive um filhinho, Senhor,
E o filho do meu amor
Nos braços o vi morrer!"
Para alcançar o perdão
De quantos crimes tiver,
Na fervorosa oração,
Basta que possa dizer:
"Tive um filhinho, Senhor,
E o filho do meu amor
Nos braços o vi morrer!"
Creio que são esses exemplos de comovida sensibilidade
que o nosso Governo autopromovido segue, protegendo os filhos que o Governo
anterior condenou à inactividade, forçando estes a asilarem-se em casa dos
pais, em vez de irem à vida, o que nem sempre é fácil, é necessário jeito, a Clara
sabe-o bem. Mas ela é uma lutadora, com ideias fortes de determinação e muito
saber, e naturalmente despreza a inacção e o parasitismo que o
Estado-Providência democraticamente gerou, por formas várias antecedentes, e
não só essa que cita da abrangência da ADSE dos pais aos filhos “sem
trabalho, maiores de trinta anos”.
O artigo de
Clara Ferreira Alves é claro e ditado por cólera muitos dirão que justa. Mas eu, que sou do
estilo das mães de Aljubarrota, e mesmo das do nosso lirismo medieval, só
estranho o motivo de não se prolongar a ADSE dos pais aos filhos “sem
trabalho, maiores de mais de trinta anos” a viver ou não em
casa deles, valha-nos S. Pisco abade - apelo hierático que ouvia a um
colega já idoso, no liceu de Aveiro, quando comecei a retribuir em impostos ao
Estado – na altura menos galinha e mais galo exigente da paga – os custos do
ensino que ele me fornecera antes, os quais, aliás, o meu pai também contribuía
para ressarcir, com os descontos das suas obrigações tributárias. O tempo passa
depressa e, ao que se diz, a situação de «sem trabalho» tende a
prolongar-se, dos trinta aos quarenta é um pulo e as doenças acompanham o ritmo
do tempo. Além de que poderemos sempre pensar que, se António Costa está a
oferecer oportunidades aos migrantes em fuga, abrindo-lhes solidariamente os
braços, não poderá desamparar os nacionais, não pareceria bem, na Grécia parece
que este Estado de sítio ainda é mais participado, ora essa! Para que serve
então a solidariedade? Não andam os meus dois filhos mais velhos mais o meu genro Quim na
senda da distribuição aos sem abrigo? Não participa a Santa Casa da Misericórdia
nessas ajudas fraternas? Não colaboro eu e tantos outros em todas as recolhas
de donativos para as causas sociais, nos dias próprios? Que mal tem que o Estado
providencie? Às vezes também o faz a Providência Divina. Há dias, posso-me
gabar, até me saíram 200 euros numa lotaria
da Santa Casa. Temos que ser uns para os outros. Ajudei a Santa Casa,
comprando-lhe um bilhete para ajudar os desabrigados. A Providência ajudou-me a
mim que às vezes também me sinto desabrigada. Estado-Providência, eis um bonito
nome. E mãe é sempre mãe.
A Pluma Caprichosa
Clara Ferreira
Alves
E, 27/2/16
FILHOS DE UM
ESTADO-GALINHA
Uma
das medidas mais extraordinárias deste Governo, ou mais estupidamente
extraordinárias, é a da extensão da ADSE, o subsistema de Saúde dos
funcionários públicos, a filhos até aos 30 anos. Em que consiste exatamente,
para efeitos de proteção social, a figura do “filho” de 30 anos? Qual a
sociedade avançada, ou mesmo a sociedade primitiva e tribal, em que um adulto
de pleno direito, com idade para ser pai/mãe de família, e que deveria ser
idealmente pai/mãe de família, deva ser considerado um filho-família,
dependente do sistema de Saúde dos pais? Bom, parece que será apenas, para
efeitos restritos, um filho de trinta anos que viva em casa dos pais e que não
exerça actividade remunerada. Foi o que li em todas as notícias. Ou seja, um
desempregado que vive à custa dos pais e que não foi encorajado a deixar de
depender dos pais. E não estamos a falar, penso, de filhos com deficiências ou
incapacidades que geram dependência e sim de filhos adultos sem modo de vida
autónomo. Ou com modo de vida sem escape ao controlo da lei, o que não será
difícil. Todos sabemos que a crise e a austeridade geraram modelos abstrusos de
convivência social em que filhos de trinta anos vivem em casa dos pais e à
conta dos pais, e mesmo das pensões dos pais, mas não podemos culpar a crise e
a austeridade de um estado de coisas que em Portugal é socialmente aceite como
normal há décadas. A do filho que não mexe uma palha para se desenvencilhar,
não arranjou emprego, não tentou arranjar emprego, não emigrou, não se safou. Se
aos 30 anos não saiu de casa, é menos provável que venha a sair aos 35 ou aos
40 anos. Em muitas famílias, a situação é considerada normal e convida-se o
filho hiperprotegido, com o seu IPhone e o seu bilhete de concerto rock a
deixar-se estar. O Estado, tal como os pais, vela por ele. Na minha geração,
como nas anteriores e nas seguintes, os filhos saíam de casa para se casarem ou
porque os pais tinham dinheiro para lhes comprar uma casa, depois de terem
comprado o primeiro carro. Era socialmente aceitável, num país europeu no final
do século XX, que os pais continuassem a pagar as despesas e os luxos do filho
além da sua capacidade económica. A alternativa era a permanência em casa. Em Portugal,
nunca se encorajou a saída de casa aos 20 anos de idade, nem a partilha de apartamentos
ou casas alugadas por jovens que se recusem a ficar em casa dos pais. Isto só
acontecia quando os jovens saíam de casa para irem estudar numa universidade
longe, obrigando-os a cortar com os maus hábitos, a lavandaria em casa da mãe,
a empregada da mãe, a cozinha da mãe e a cama feita pela mãe. Em cidades
universitárias de “expatriados” como Coimbra, com as suas repúblicas e lares,
muitos adultos foram obrigados a ser adultos pela primeira vez e a cuidar deles
próprios. E era visível a diferença de autonomia entre estudantes que viviam em
casa e os que viviam fora de casa. Os primeiros tinham mais dinheiro disponível
e nunca tinham de se preocupar com nada. Nem administrar nada. A casa familiar
era a muralha que os separava e protegia do mundo ingrato. O carro era o do
papá, ou era o carro comprado pelo papá. E a primeira casa também. A mamã em
Portugal nunca tevce desafogo financeiro suficiente para ser ela a esportular
as quantias envolvidas na manutenção destas existências. As classes mais pobres
reproduziam a estranha forma de vida, acolhendo os filhos além da idade adulta,
estimulando a dependência e a preguiça, cozinhando para eles, lavando para
eles, tratando dos assuntos por eles e, de um modo geral, fazendo sacrifícios
por eles. Não passava pela cabeça destes pais darem um pontapé no rabo aos
filhos e mandarem-nos fazer pela vida. Aqui ou fora daqui. Esta mentalidade
matriarcal (encorajada pelas mães) não é condutora do chamado espírito
empreendedor, como se calcula. Gerações de adultos foram impedidos de se
tornarem responsáveis pela sua vida e
pelos seus erros.
Curiosamente, o Estado, empobrecido como está,
reproduz a atitude e inclui na sua protecção pessoas de 30 anos que noutros
países mais ricos não só são consideradas cidadãos contribuintes e geradores de
riqueza como são obrigadas a serem cidadãos capazes de gerar a sua autonomia. Passamos
da mãe-galinha para o Estado-galinha.
A medida de “alcance social ”que aumenta a idade de 25
para 30 anos passou sem um sussurro na sociedade portuguesa. Ninguém a achou
anacrónica, pouco inteligente e um estímulo à passividade e ao conformismo. Ninguém
dos que para aí andam a apalpar buracos no Orçamento, perdeu tempo com isto. Acha-se
normal, no Portugal de 2016, que um homem ou uma mulher de 30 anos, com mais do
que idade para tratar do seu sistema de saúde , público ou privado, seja
abrangido pelo sistema dos “pais” desde que os pais sejam funcionários públicos.
Com ou sem aumento de descontos (a situação é confusa) nada disto faz sentido.
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