terça-feira, 15 de março de 2016

«Os guardas-costas qualquer dia dá-lhes um AVC»




Estávamos a falar na chegada de Marcelo às escadarias do Palácio, a pé, parece que deixara o Mercedes longe, e comentávamos a aparente modéstia na fuga ao protocolo, quando a nossa amiga soltou o aviso da sua preocupação pelo bem-estar da massa anónima que sofre os caprichos dos patrões - «Os guardas-costas qualquer dia dá-lhes um AVC» - que nos fez rir, embora eu achasse que os guardas, no entrementes, até tivessem a oportunidade de fumar o seu cigarrito para disfarçar a tensão.  De muitas coisas se falou nessa manhã, na preocupação em que nos movemos, com receio da borrasca que o governo diz que não vem e a oposição diz que vem, mas também nos rimos com a graça dos DDT no seu sketch sobre a vitalidade de Marcelo contrastando com o ar extenuado dos actores aquando da festa em homenagem ao infatigável Presidente. E aqui vamos, rindo para disfarçar, não mais cantando, que o «tronco em flor” já não estende os ramos “à mocidade que passa” do hino antigo, e são muitas as razões – o que nos assusta.
Mas sejamos felizes quando lemos coisas bem argumentadas pelos jovens de agora, como este de João Miguel Tavares, ainda sobre o Presidente e o seu discurso no dia da eleição – discurso de banalidade, nas promessas de moderação e isenção, a que o estado catastrófico das finanças portuguesas não permite atribuir grande credibilidade. Discordo do que diz de Tino de Rans, cujo comentário sobre as afinidades do povo com o Presidente não passam de evidente patetice, próprias de um representante do Zé Povinho atrevido e finório. Mas transcrevo o apelo de J. M. Tavares à responsabilidade do trabalho, e ao abandono das fantasias nos discursos da nossa retórica exibicionista: «Se nos julgássemos menos singulares, mais iguais a toda a gente, e arregaçássemos as mangas para trabalhar com os outros, era tão, mas tão mais útil.»
A crónica de João Miguel Tavares:

O presidente de tooooodos os portugueses
Público, 09/03/2016
 Quanto ao discurso de Marcelo, sejamos claros: não teve interesse nenhum. Foi redondinho como uma bola de bilhar e com duas caras como Janus. Prometeu justiça social e apoio à iniciativa privada. Um poder económico subordinado ao poder político mas não um Estado dirigista. Disse que iria “apoiar aqueles que a mão invisível apagou” sem descurar as “finanças sãs”. Elogiou o Estado social de direito e a reforma das instituições desajustadas e ineficientes. Distribuiu cartas à esquerda e à direita. Manteve-se fiel ao centro. Foi um discurso para todos os portugueses. E quando digo todos, é mesmo toooodos.
Em resumo, foi uma chatice. Paulo Portas elogiou a qualidade literária do discurso de Marcelo. Mentiu. Marcelo sempre foi infinitamente melhor a falar do que a escrever – é o típico professor de Direito. Nem sequer faltou a habitual citação foleira de Miguel Torga, que passou incessantemente nos rodapés das televisões: “Valemos muito mais do que pensamos ou dizemos.” A sério? Valemos? Mais do que pensamos e mais do que dizemos? Pelo amor da santa. Nada tenho contra discursos de miss Universo, mas tenho alguma coisa contra os discursos que insistem em sublinhar a singularidade portuguesa e a sua “vocação ecuménica”, como lhe chamou Marcelo. É mais uma derivação do Quinto Império e desta mania do povo eleito, que apenas serve para promover uma vida com a cabeça em nuvens sebásticas. Se nos julgássemos menos singulares, mais iguais a toda a gente, e arregaçássemos as mangas para trabalhar com os outros, era tão, mas tão mais útil. Aguardo ansiosamente por um Presidente da República que troque as citações de António Lobo Antunes e Miguel Torga pelas de Adília Lopes e Luiz Pacheco. Este país tem fragas a mais e atrevimento a menos.
Mas esqueçamos tudo isso, porque o Marcelo que importa não é aquele que discursou no Parlamento sem dizer coisa alguma, mas aquele que decidiu vir a pé desde sua casa até à tomada de posse cumprimentando toda a gente pelo caminho. Não é por acaso que Tino de Rans pediu ao novo Presidente para não se esquecer das pessoas que estavam na sétima fila – a fila que o protocolo lhe reservou para assistir à tomada de posse. Tino, homem eleito pelo povo, não apreciou que estivessem tantos não-eleitos (seis filas deles) à sua frente, mas não culpou Marcelo por isso: “O candidato mais parecido comigo é Marcelo Rebelo de Sousa.”
Em verdade vos digo: foi o maior elogio que o novo presidente escutou durante todo o dia. Ali estava a representação do verdadeiro homem do povo a considerar como sendo dos seus, do povo-povo, um senhor-bem da elite lisboeta. Tino tem toda a razão. Nesse aspecto, Marcelo faz milagres, e nos dias de hoje ele é o único político português que consegue relacionar-se com as pessoas que estão na primeira fila, na sétima fila e na septuagésima fila. Esse é, sem dúvida alguma, o mais precioso capital simbólico que transporta consigo para o Palácio de Belém.
O seu discurso foi um discurso de não-escolhas, quando fazer política é o contrário disso – é escolher, e escolher dolorosamente. Mas se Marcelo tiver conseguido, ao fim de cinco anos de mandato, encurtar as distâncias entre o “nós” (o povo) e o “eles” (os políticos), e envolver a sociedade portuguesa na política, então a sua eleição já terá valido a pena. Consiga ele isso e eu perdoo-lhe tudo. E até pode voltar a citar Miguel Torga em 2021.

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