Estávamos
a falar na chegada de Marcelo às escadarias do Palácio, a pé, parece que deixara
o Mercedes longe, e comentávamos a aparente modéstia na fuga ao protocolo,
quando a nossa amiga soltou o aviso da sua preocupação pelo bem-estar da massa
anónima que sofre os caprichos dos patrões - «Os guardas-costas qualquer dia dá-lhes um AVC» -
que nos fez rir, embora eu achasse que os guardas, no entrementes, até tivessem
a oportunidade de fumar o seu cigarrito para disfarçar a tensão. De muitas coisas se falou nessa manhã, na
preocupação em que nos movemos, com receio da borrasca que o governo diz que não
vem e a oposição diz que vem, mas também nos rimos com a graça dos DDT no seu
sketch sobre a vitalidade de Marcelo contrastando com o ar extenuado dos
actores aquando da festa em homenagem ao infatigável Presidente. E aqui vamos,
rindo para disfarçar, não mais cantando, que o «tronco em flor” já não
estende os ramos “à mocidade que passa” do hino antigo, e são muitas as
razões – o que nos assusta.
Mas
sejamos felizes quando lemos coisas bem argumentadas pelos jovens de agora,
como este de João Miguel Tavares, ainda sobre o Presidente e o seu
discurso no dia da eleição – discurso de banalidade, nas promessas de moderação
e isenção, a que o estado catastrófico das finanças portuguesas não permite atribuir
grande credibilidade. Discordo do que diz de Tino de Rans, cujo comentário
sobre as afinidades do povo com o Presidente não passam de evidente patetice,
próprias de um representante do Zé Povinho atrevido e finório. Mas transcrevo o
apelo de J. M. Tavares à responsabilidade do trabalho, e ao abandono das
fantasias nos discursos da nossa retórica exibicionista: «Se nos julgássemos menos singulares, mais iguais a
toda a gente, e arregaçássemos as mangas para trabalhar com os outros, era tão,
mas tão mais útil.»
A
crónica de João Miguel Tavares:
O
presidente de tooooodos os portugueses
Público, 09/03/2016
Quanto
ao discurso de Marcelo, sejamos claros: não teve interesse nenhum. Foi redondinho
como uma bola de bilhar e com duas caras como Janus. Prometeu justiça social e
apoio à iniciativa privada. Um poder económico subordinado ao poder político
mas não um Estado dirigista. Disse que iria “apoiar aqueles que a mão invisível
apagou” sem descurar as “finanças sãs”. Elogiou o Estado social de direito e a
reforma das instituições desajustadas e ineficientes. Distribuiu cartas à
esquerda e à direita. Manteve-se fiel ao centro. Foi um discurso para todos os
portugueses. E quando digo todos, é mesmo toooodos.
Em resumo, foi uma chatice. Paulo Portas elogiou a
qualidade literária do discurso de Marcelo. Mentiu. Marcelo sempre foi
infinitamente melhor a falar do que a escrever – é o típico professor de
Direito. Nem sequer faltou a habitual citação foleira de Miguel Torga, que
passou incessantemente nos rodapés das televisões: “Valemos muito mais do que
pensamos ou dizemos.” A sério? Valemos? Mais do que pensamos e mais do que
dizemos? Pelo amor da santa. Nada tenho contra discursos de miss Universo, mas
tenho alguma coisa contra os discursos que insistem em sublinhar a
singularidade portuguesa e a sua “vocação ecuménica”, como lhe chamou Marcelo.
É mais uma derivação do Quinto Império e desta mania do povo eleito, que apenas
serve para promover uma vida com a cabeça em nuvens sebásticas. Se nos
julgássemos menos singulares, mais iguais a toda a gente, e arregaçássemos as
mangas para trabalhar com os outros, era tão, mas tão mais útil. Aguardo
ansiosamente por um Presidente da República que troque as citações de António
Lobo Antunes e Miguel Torga pelas de Adília Lopes e Luiz Pacheco. Este país tem
fragas a mais e atrevimento a menos.
Mas esqueçamos tudo isso, porque o Marcelo que importa
não é aquele que discursou no Parlamento sem dizer coisa alguma, mas aquele que
decidiu vir a pé desde sua casa até à tomada de posse cumprimentando toda a
gente pelo caminho. Não é por acaso que Tino de Rans pediu ao novo Presidente
para não se esquecer das pessoas que estavam na sétima fila – a fila que o
protocolo lhe reservou para assistir à tomada de posse. Tino, homem eleito pelo
povo, não apreciou que estivessem tantos não-eleitos (seis filas deles) à sua
frente, mas não culpou Marcelo por isso: “O candidato mais parecido comigo é
Marcelo Rebelo de Sousa.”
Em verdade vos digo: foi o maior elogio que o novo
presidente escutou durante todo o dia. Ali estava a representação do verdadeiro
homem do povo a considerar como sendo dos seus, do povo-povo, um senhor-bem da
elite lisboeta. Tino tem toda a razão. Nesse aspecto, Marcelo faz milagres, e
nos dias de hoje ele é o único político português que consegue relacionar-se
com as pessoas que estão na primeira fila, na sétima fila e na septuagésima
fila. Esse é, sem dúvida alguma, o mais precioso capital simbólico que transporta
consigo para o Palácio de Belém.
O seu discurso foi um discurso de não-escolhas, quando
fazer política é o contrário disso – é escolher, e escolher dolorosamente. Mas
se Marcelo tiver conseguido, ao fim de cinco anos de mandato, encurtar as
distâncias entre o “nós” (o povo) e o “eles” (os políticos), e envolver a
sociedade portuguesa na política, então a sua eleição já terá valido a pena.
Consiga ele isso e eu perdoo-lhe tudo. E até pode voltar a citar Miguel Torga
em 2021.
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