O texto que segue foi-me mandado pelo Ricardo. Uma
defesa do livro de Henrique Raposo, por quem há tempos também Alberto
Gonçalves veio terçar armas, numa crónica de 6/3 – “Portugal Prometido”
- que incluí no meu blog, em 8/3 – (texto “Ter esperança”) - fustigando
o primitivismo ou a boçalidade dos que o atacaram. Rentes de Carvalho é
o autor do texto de Apresentação de «Alentejo Prometido», onde
igualmente condena a parolice dos que o criticaram altissonantemente, sendo esse
texto precedido de um “Rilhafoles” de desprezo. Um obrigada ao Ricardo.
Patrão da Barca: J.
Rentes de Carvalho
terça-feira, março 15
Há
por aí quem se aflija com o ódio, a estupidez, a inveja, os insultos de que
abarrotam as caixas de comentários, e o mais que a internet possibilita. Mas de
facto não há de quê, até é de agradecer, porque pouco importa que se mantenham
anónimos: eles e elas são os mesmos do sorrisinho pronto e do carinhoso abraço
com que no dia-a-dia nos cruzamos.
Por
isso sorria-lhes também e tenha caridade, porque é questão de tempo. Mais dia
menos dia enfrentam a própria raiva e acabam aos gritos numa cama de hospital ou
atrás das grades do Rilhafoles.
Apresentação
de Alentejo Prometido, de Henrique Raposo, Lisboa, 08.03.2016
Em
meados de Dezembro, o Henrique Raposo convidou-me para apresentar o seu livro.
Aceitei por duas razões, sendo a segunda a amizade que lhe tenho. A primeira é
a do respeito que me merece a sua inteligência, e a consequente e independente
maneira como defende as suas convicções.
Entretanto,
e infelizmente, o que seria apenas um corriqueiro convívio, transformou-se num
caso, acendendo paixões que não deveriam ter lugar numa sociedade civilizada e
democrática, onde o diálogo é a regra, antes pertencem à bandalheira de quando
muitos fazem muito barulho, criando para si próprios a quimera de que têm a
razão do seu lado.
Em
boa saúde mental, e por mais contrária que ela seja, a ninguém ocorrerá negar
ao outro o direito à sua opinião. Se lho nega, automaticamente se exclui do
quadro em que a democracia e a liberdade de expressão funcionam, dando preferência
ao insulto e à ameaça, o que, permitam-me que o diga, não abona o grau de
civismo de quem assim se comporta, como levanta dúvidas sobre as suas
intenções.
Curioso
de como ele expressaria a relação com as suas origens, quando recebi este livro
do Henrique sentei-me a ler, pondo de lado a falta de afinidade que tenho com o
Alentejo, o desalento que me causa aquela terra plana, a recordação dos calores
que lá suportei, e a estranha indiferença que por vezes sofri ao perguntar um
caminho ou pedir uma informação.
Tendo
colocado esse biombo entre mim e a obra, li de uma assentada – expressão que só
o Francisco José Viegas e eu ainda usamos, talvez também o Mário Cláudio – li
pois, de uma assentada, até à página vinte e cinco, parando então para me
recompor da inveja que senti, e iria aumentando até que parei.
A
ver se explico o que me levou a franzir o sobrolho no começo deste Alentejo
Prometido, e continuaria para lá da página vinte e cinco.
Acontece-me
ser filho único, único neto, os primos que tenho são daquela gente em quarto ou
quinto grau que, quando por acaso me recordam o parentesco, deixam a impressão
de estarmos a representar numa peça do teatro absurdo.
Ora
o Henrique Raposo, não pertence apenas a uma extensa família, tem à sua volta
uma verdadeira tribo, o que aos meus olhos de filho único, com primos que nada
me dizem, equivale à posse de certezas e seguranças comparáveis às que na Idade
Média garantiam os castelos.
Esse
sentimento de inveja manteve-se, mesmo naquelas passagens sobre os festejos do
casamento, em que, tivesse eu participado, me sentiria demais, e incapaz de
ceder a tão esfusiante alegria.
Li
até ao fim, deixei assentar, e comecei uma vagarosa segunda leitura que foi, de
facto, uma espécie de conversa, tentando compreender a visão do autor, e
fazendo o possível para que o escasso conhecimento que tenho do Alentejo, os
meus preconceitos, e a memória de um ou outro caso, não viessem interferir.
No
Verão de 1964, passados catorze anos de ausência, pude voltar a Portugal, e o
desejo de rever o país levou-me a Évora, depois ao litoral alentejano.
Recordo
Santiago do Cacém; a lagoa de Santo André; o diminuto porto de pesca que Sines
então era; a estranheza de Porto Covo, uma praia deserta. Em Vila Nova de
Milfontes achei que chegava de calor e solidão.
Em
Abril de 74, e nos meses seguintes, andei muito pelo Alentejo, tiraria dessa
experiência um romance, mas a época era de confusão e irrealidade, dando-me
ideia de testemunhar cenas de mau teatro, trágicos enganos e esperanças
mentidas.
Dez
anos depois, em busca de documentação para um guia de Portugal, percorri o
Alentejo durante quase um mês.
O
25 de Abril tinha feito alguma diferença, mas para mim, homem do norte, ficou a
recordação da planura, o sem-fim de sobreiros, azinheiras, aquele fogo do céu, o
retraimento de algumas das pessoas com quem lidei.
A
leitura de Alentejo Prometido veio confirmar alguns dos meus
preconceitos para com a província e os alentejanos, mas em vez de me considerar
apoiado, ressenti uma certa desconfiança em relação às proposições do autor, e
à furiosa maneira como ele desanca a sua terra e a sua gente.
É
que o Henrique, como se tivesse nas mãos uma daquelas mocas históricas de Rio
Maior, bate a torto e a direito, e quando chegamos ao fim, à página 103, resta
a impressão de que no Alentejo só se salvam as mulheres.
O
que me pareceu demasiado radical para me convencer. Fora que, pelo meio, e foi
isso que me deixou de pé atrás, canta ele um inesperado Laudamus ao norte de
Portugal.
Por
questões de genética, e porque se dá o caso das minhas raízes serem desses
lados, presto uma doentia atenção a tudo o que se afirma sobre a terra e o povo
nortenho.
Ora
o Henrique, que tão franca e fortemente varre os alentejanos à mocada, fica
todo de mimos quando se refere à minha gente.
Segundo
ele, lá pelo norte, de manhã até ao serão, e pelos vistos noite fora, os
nortenhos constantemente se abraçam e apertam, sorriem, querem-se bem, saúdam o
forasteiro.
Da
certeza desse carinhoso tratamento passa ele ao Douro, e é como se estivesse a
recitar as Geórgicas de Virgílio. Com tanto entusiasmo, aliás, que eu por
momentos me deixei convencer, dando por mim a olhar para as vinhas e as arribas
do Douro com a ingenuidade dos turistas que, espichados ao sol, vão rio acima
comendo e bebendo.
Deixem
que eu tente refrear o entusiasmo do Henrique sobre a minha gente a minha
terra.
Se
o alentejano tem essa trágica inclinação para, pelo suicídio, se libertar das
agruras da vida, o transmontano deita aos outros a culpa de tudo, raro lhe
passa pela cabeça enforcar-se. Em vez disso, pega na caçadeira ou na calagouça,
sai à rua e mata o vizinho.
Aquele
Douro bucólico que entusiasma o Henrique, com gente que se beija e abraça, hotéis
de cinco estrelas, barcos de luxo, não é o genuíno, o rude, pobre e atrasado
Douro, é uma realidade virtual para inglês ver, fabricada um pouco à maneira
das aldeias de papelão, com que Potemkin maravilhava a imperatriz Catarina da
Rússia.
Parafraseando
Bocage, este longo introito não foi eu que o fiz, mas o literato em mim,
tentando ganhar tempo para esconder a perturbação.
Porque
Alentejo Prometido me perturbou. É tudo menos um livro que convide ao
gracejo e à ligeireza. Estão nele os factos, as dolorosas estatísticas, as
confissões, a realidade crua de um viver pobre, a grande secura de bens e
afectos sob um céu apostado a calcinar com igual ferocidade o chão e a alma.
O
Henrique põe-se a si próprio, aos seus, aos alentejanos e ao Alentejo, num
palco para onde o espectador olha com um sentimento em que o medo de ver e a
curiosidade vão de mãos dadas.
Ao
mesmo tempo, porém, fica a dúvida: mau grado as estatísticas, as tragédias que
ele aponta, os testemunhos que partilha, não será a sua uma visão demasiado
unilateral? Haverá fidelidade no seu olhar, ou somente paixão?
Porque
é grande a discrepância entre o retrato que nos faz e, para só mencionar um, o
do tão acarinhado cenário de montes românticos, dos quartos de hotel que, com
tectos de vidro, oferecem o requinte de dormir ao relento sem o incómodo da
canícula, da bicharada, e não querendo mais dos alentejanos do que ouvir-lhes
ao longe o eco do cante.
Daí
posso concluir que de nada adianta fazer de advogado do Diabo, tão-pouco
importa concordar ou discordar do autor.
Um
alentejano nascido, criado e reformado em Mértola, vê outro Alentejo. Os muitos
holandeses que conheço e lá vivem, falam de uma terra paradisíaca, todo o
avesso dos pólderes encharcados. E o turista, venha ele de Lisboa, do Texas ou
da Suécia, irá lá menos para ver ou sentir, do que para se babar com as
platitudes debitadas pela indústria do turismo.
De
facto será sempre cada cabeça sua sentença, o juízo de cada um não fazendo mais
do que aclarar à sua maneira uma parcela da realidade. Ou, o que também
acontece, distorcer essa realidade, em função dos sentimentos exaltados
daqueles que apenas consideram justa a sua própria opinião, e pouca ou nenhuma
ideia têm do que seja o direito à liberdade da palavra. Para não falarmos do
que manda o civismo mais elementar: o respeito pelos outros.
É
que dá pena haver tanta democracia na boca e tão pouca no comportamento.
Retornando
ao livro.
Excelente
prosa. Pode isto soar a cumprimento de circunstância, mas está longe de sê-lo,
pois vai tempo desde que de um colega pude dizer o mesmo.
Esta
prosa do Henrique Raposo, não me dá apenas a satisfação de vê-la bem
cuidada, mas prova que não me devo afligir com a miséria dos temas, nem com as
enxurradas de má prosa, e os delírios de ignorância gramatical que, nos livros
e jornais, diariamente testemunho.
Não
me venham com o fadinho em ré menor, de que as escolas não ensinam e já ninguém
lê.
O
caso é que o geral das pessoas parece ter descambado e, pelas razões que todos
conhecemos – a histeria de querer marcar presença, um pouco à maneira dos
cachorros que vão dando mijadinhas em cada pneu de automóvel – em vez de ler
desataram a escrever.
Isso
importa ? Creio que não. Na nossa sociedade, mesmo nos tempos áureos do século
XIX e meados do século XX, já era frequente a queixa de que as pessoas não
liam. De facto assim era e assim é, e a absurda quantidade de livros editados,
e vendidos, pouco tem a ver com o fenómeno da leitura.
Porque
ler implica pensar, emocionar, sentir, dispor de tempo, actividades que
pressupõem um nível de existência que nem a todos é dado, mas também de que
muitos desdenham ou desconfiam, pois não tem som, nem cores, não dá fama, nem
proveito imediato.
Assim
sendo, arrisco-me a dizer que o Alentejo Prometido só irá cair nas
graças dos que sabem ler e se dão tempo para pensar.
Esses
tirarão o proveito de serem confrontados com a sinceridade de um autor que
investiga, estuda, e procura compreender as razões das suas origens, e do
desencontro dos sentimentos, que ora são de pertença, ora de rejeição.
Certo
de ter compreendido e encontrado, surpreende ele o leitor, afirmando:
"A
linhagem do velho Alentejo termina aqui o seu caminho. Não passará para as
minha filhas. Não quero que elas sejam alentejanas, porque eu próprio não me
sinto alentejano. Sou filho de uma migração que saiu do Alentejo, mas não sou
nem quero ser alentejano."
Fora
de dúvida que este desabafo é sincero e doloroso, mas confesso – e peço
desculpa – o Henrique apenas dá prova de juventude, de ter agora certezas que
um dia estranhará, julgando que pode escolher, que lhe cabe o poder de
abandonar.
É
compreensível que sinta a necessidade de gritar aos quatro ventos que não se
sente alentejano, que cortou as raízes, mas o grito que parece de revolta é
apenas de impotência.
A
impotência de nada poder remediar, a incapacidade de compor o que nasceu e
continuará torto, a tragédia de sentir que, no Alentejo, são sem conta os males
que não têm cura.
Digo
isto com um sentimento de comunhão e melancolia, porque também eu o gritei –
não a uma província, mas ao país inteiro – jurando que não queria pertencer,
que recusava o fardo.
Poderia
ter nascido daquela gente, naquele chão, mas a minha sede de viver não se
acomodava com aquele modo, nem aquela terra, pedia outros horizontes.
E
nem adeus disse. Um fim de tarde voltei-lhe as costas, pus entre nós a largura
do oceano e, cortando ainda mais fundo, cuidei de usar outras línguas,
quase esquecendo a minha.
Vivi
assim décadas, certo de que conseguira desprender-me e me encontrava a salvo.
Para
um dia, sem aviso, me dar conta de que tinha sido ilusão: o que eu julgara
laços fáceis de cortar, eram algemas. Invisíveis, é certo, mas fortes e
permanentes.
O
mesmo acontecerá ao Henrique.
Que
grite contra o Alentejo, que o encare e lhe faça um manguito. Que repita
quantas vezes quiser que vai embora, que não lhe quer pertencer.
O
Alentejo sorrirá. Porque o Henrique Raposo não é único, nem o primeiro que,
magoado e triste, definitivamente se quer exilado. Tão-pouco será ele o último.
Mas
em todos, nos que partem desencantados, como nos que se acomodam e ficam, pesa
igual a mesma realidade: a marca que os antepassados nos deixam na alma é
indelével.
Ilude-se
aquele que, indo embora, se julga capaz de poder descartá-la.
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