sexta-feira, 25 de março de 2016

Quem quer vai…


Ora aqui está uma fábula muito conhecida
Sobre a necessidade de cada um de nós
Deitar mão à sua obra quando a obra é apetecida,
Ao invés de contar com a mão do vizinho
Geralmente encolhido no seu cantinho,
A menos que uma certa luva
Lhe cubra a mão com carinho.
Acho que essa anomalia
É mais comum hoje em dia:
Muita mão, muita luva, a definir
A amizade que cada um diz sentir,
Para se empenhar a ajudar
E ele próprio
Também poder progredir.
Será assim?
Eu, por mim,
Creio na amizade
Que se encontra na vida
E que da vida é beleza
Quando há sinceridade:
Amigo do seu amigo
É como se deve ser
De certeza.
Além disso a cotovia
Já o nosso Anto dizia,
Fala depressa demais,
É tagarela,
- Bem proveito para ela -
E Anto disse à Maria
Que pedisse à cotovia
“Que fale mais devagar
Não vá o João acordar”,
Em convite à preguicite.
António Nobre  o que devia
Era deixar a cotovia
Falar como ela queria
Para acordar o João
Do seu sono,
Como mais uma lição
Da cotovia,
A acrescentar à da fábula
De La Fontaine, e não
Deixar dormir o João
Como é nossa condição
De dorminhocos
Tontos.
A cotovia e os seus filhos com o dono dum campo
«Não contes senão contigo»: é um provérbio vulgar.
Eis como Esopo o pôs a crédito
Para a gente meditar:
As cotovias fazem seu ninho nos trigais
Quando estes estão tenros, ainda em erva,
Ou seja, cerca do tempo da semeadura,
Em que tudo no mundo ama e pulula demais,
Como  diz Lucrécio em “De Natura
Rerum”:
Monstros marinhos no fundo do mar,
Os tigres nas florestas, as cotovias nos campos
Sem nunca  fartar.
Mas uma destas últimas deixara passar
Os meados da primavera sem aproveitar
Dos amores primaveris o prazer.
Contrariada, ela  dispôs-se, todavia,
A imitar a natureza e a ser mãe como devia.
Constrói um ninho, choca os ovinhos, e faz  nascer
À pressa, segundo o melhor que podia.
Os trigos em volta, amadurecidos antes que a ninhada
Crescesse em força, para voar e se pisgar,
A cotovia, de  mil cuidados agitada,
Vai  procurar comida, avisa as crias
Para estarem alerta, de sentinela.
«Se o dono dos campos vier com o filho,
(Quando vier), diz ela,
Escutem bem: segundo o que ele disser,
Cada uma de nós  terá
Que daqui abalar.
Assim que a cotovia deixou a família sozinha
O dono do campo chegou com o seu filho.
«Estes trigos estão maduros, disse-lhe ele,
Ide chamar os nossos amigos,
Pedir-lhes que tragam as foices, ao raiar do dia
Para nos darem uma mãozinha.
No regresso, a cotovia,
Acha a ninhada alarmada.
Começa um: «Ele disse que, erguida a aurora,
Os amigos fossem chamados para o ajudarem….»
- Se não disse senão isso, nada nos apressa ainda
A mudar de lugar; mas é para amanhã
Que será preciso bem escutar acerca da sua vinda.
Entretanto, alegrai-nos ; eis aqui comida.
Enfartados, adormecem, as crias e a mãe também.
A madrugada nasce, e nenhum dos amigos à vista.
A cotovia a voar, vem o dono à sua ronda
A alma isenta de festa:
«Estes trigos não podiam, disse ele, estar de pé.
Os nossos amigos bem erram, como erra quem crê
Em preguiçosos tamanhos, tão lentos para trabalhar.
Meu filho, ide os parentes chamar,
Pedir-lhes a mesma coisa,
Sem tardar.»
O terror na ninhada é mais forte do que nunca.
“Ele disse os parentes, mãe, está na hora…
- Não, meus filhos, dormi em paz, não deixemos ainda o ninho.»
A cotovia estava certa, pois ninguém apareceu.
Pela terceira vez,  os campos veio ver o camponês:
«O nosso erro é extremo, disse ele iradamente,
Em esperar sobre os outros, quando ninguém
É mais amigo ou parente
Que cada um de si mesmo.
Aprendei bem a lição, filhos do meu coração:
Sabeis o que é preciso ? É que, com a nossa família, amanhã,
Cada um pegue na sua foice.
É o mais eficaz; e num repente
A nossa seara acabaremos, se assim fizermos.»
Assim que foi conhecida essa intenção 
Pela cotovia:
«É agora, filhos meus, que temos de partir»
E os pequenos, em revoada,
Caindo, volteando, sem trombeta,
Partiram pelos céus fora.»

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