sexta-feira, 18 de março de 2016

Le bourdon



Nos dias de calor, era frequente ouvir-se e ver-se, em torno das flores, uns insectos ruidosos, zumbindo, zumbindo, levando pólen, polinizando, infatigavelmente. Pareciam abelhas mas eram zângãos, zumbindo, polinizando, enchendo o ar de ruído, livres, enquanto a rainha das abelhas se acamava na sua colmeia, rodeada pelas obreiras que dela nasciam e logo a serviam. Não sei se as condições climáticas actuais ainda permitem, como na minha infância, esta música celestial dos insectos polinizadores. A vida nas cidades distrai-nos da natureza, que nos é agora transportada já transformada -  encanada, entubada, enfrascada, ensacada, engarrafada.
Lembrei-me do zângão a propósito da “Quadratura do Círculo”, ouvindo Pacheco Pereira, ou do texto que segue, «Ó tempo, volta para trás"lendo-o. Sempre, desde que Passos Coelho foi governo, P. Pereira o desancou à sua maneira erudita, sem querer ver mais do que via, sem reconhecer os esforços nem os sacrifícios, nem as humilhações por que ele devem ter passado, nos tempos em que a Troika esteve aqui assente, nem, afinal, a força moral de quem tem dois dedos de vergonha na cara, propondo-se, prioritariamente, livrar o país de uma dívida desonrosa. Inexplicável rancor de quem, como ele e outros, até se filiou num idêntico clube partidário, mas mais não fez que tentar liquidar o seu líder, zângão zumbindo e batendo as asas, não para fecundar a colmeia mas para a destruir.
E da minha memória não mais se extinguirá aquela Quadratura em que ele, Pacheco Pereira, pegando num utensílio de escrita, desenhou a posição do país em direita e esquerda, aliando o PS à esquerda, para ter direito a governar, embora, sozinho, tendo perdido para o PaF, o que deixou Lobo Xavier interdito pela, suponho, ausência de escrúpulo revelada pelo companheiro de programa, Jorge Coelho, aliás (o terceiro homem), mantendo a sua impassibilidade, como quem se não rala com tais ausências. Mas o alvitre pegou, o PS aí está, vencedor tendo perdido, agarrado a uma esquerda para poder esbanjar, agarrado a uma Europa  para o poder fazer.
Pacheco Pereira devia estar contente, mas não é assim. Livrou-se de Passos Coelho, que, embora manco, vai continuando a lutar, não diria por um lugar que perdeu fraudulentamente, mas para, caso a Europa não seja bem servida por um PS de dois rostos e o seu governo se desfizer por incumprimento dos compromissos, ele possa novamente  tentar livrar o país do naufrágio sobe-e-desce do nosso afundamento contínuo de há quatro décadas.
Talvez não seja preciso, todos nós – e Passos Coelho também, com certeza – só desejamos que António Costa chegue ao fim dos seus objectivos, e a sua arrogância, nas contínuas pedradas a Passos Coelho – a sua intifada - mostram que está seguro disso.
Por isso mesmo não se compreende a obstinação de Pacheco Pereira em continuar a dirigir as suas flechas contra Passos Coelho, zumbindo ameaçador sobre a colmeia deste, quando o que devia fazer era zumbir protectoramente sobre a colmeia de Costa, no sentido da construção por este dirigida. Ou será que a Pacheco Pereira não importam mesmo as colmeias mas apenas só o seu próprio zumbido auto-recreativo?
O receio de uma Europa de direita contra um Costa pendurado na sua esquerda auxiliar, conquanto caprichosa, não passa de pura especulação vaidosa, da sua sensibilidade toda apetrechada contra Passos, na passerelle de erudição em que se move, fingindo acreditar piamente nos apoios nacionais e estrangeiros de Passos, bem ciente da sua demonstração em tempos de uma esquerda superior à direita em tamanho, tendo, sub-repticiamente na altura, Tartufo traiçoeiro, orientado a escolha fraudulenta do país nesse sentido?

Ó tempo, volta para trás
Público, 05/03/2016
Quem veja nestes dias um noticiário da televisão sem som parece que o tempo andou para trás. Passos Coelho passeia-se por feiras e encontros de empresários, “inaugura” escolas em autarquias do PSD, tratado como primeiro-ministro, com a postura oficial de um primeiro-ministro, com a bandeira da lapela usada pelos membros do seu Governo e que continua a usar para não deixar dúvidas que se considera ele próprio o primeiro-ministro com direito ao cargo, que outros usurparam numa espécie de golpe de Estado.
O mais interessante é que faz todas estas coisas no âmbito de uma campanha eleitoral interna para a liderança de um partido político, ou seja, uma questão mais do interior do foro partidário não há. Nem sequer é como líder do PSD, logo da oposição, mas como candidato numa eleição interna de um partido. António Costa ao lado dele, informal e com comitivas mais ou menos caóticas, com a clara má vontade dos seus acompanhantes empresariais, parece, esse sim, um candidato em passeio eleitoral. De um lado a pompa do Estado e da função, do outro o aspirante esforçado a um qualquer cargo eleitoral de uma autarquia.
A expressão que usei várias vezes de “primeiro-ministro no exílio” popularizou-se e escapou ao autor, mas corre o risco de ser vista de um só lado, o do bizarro primeiro-ministro que não o é, e não do lado do exílio. Que terra de exílio é esta que se parece tanto com o Portugal do passado recente, como se fosse uma viagem no tempo? Ou não será mesmo o passado e o tempo deixou de se mover e a seta da entropia encravou? Por que razão é que a “velha” política custa tanto a desaparecer?
Esta é uma reflexão urgente, porque um certo facilitismo e complacência que surgiram à esquerda com a vitória política da formação do Governo não correspondem a uma alteração significativa das condições prevalecentes nas vésperas das eleições legislativas. Ou seja, Passos Coelho está bem onde está e é Costa que está numa terra de ninguém que ainda não foi efectivamente ocupada e que corre o risco de nunca o vir a ser. Voltemos à pergunta: por que razão é que a “velha” política custa tanto a desaparecer?
Há várias respostas a esta pergunta e todas complementares. Primeiro, porque existe um considerável apoio popular e eleitoral à política do ex-PaF, há muita bipolarização agressiva. O PaF teve um bom resultado eleitoral no contexto das eleições em 2015 e, em particular, o PS perdeu-as. A legitimidade da maioria que resultou dos acordos PS-BE-PCP é inquestionável como a afirmação de que uma maioria dos portugueses queria mudar em 2015 e votou contra o Governo anterior do PaF. Mas se tudo isto é verdade, nem por isso se transforma numa grande vantagem política, se der origem a um governo defensivo que se comporta como estando sitiado e a forças políticas que o apoiam mais olhando para o seu umbigo do que para a conjuntura geral.
Segundo, porque o PS, permanecendo no terreno da ortodoxia europeia, não se consegue libertar para fazer a política que pretende. Com algumas pequenas concessões e menos rigorismo europeu, podia, mas ninguém lhe fez essas concessões não porque elas significassem uma qualquer revolução na política económica, que continuaria dominada pelo défice, mas pelo facto de hoje a “Europa” ser um instrumento político crucial de apoio aos governos da direita radical, como o PSD-CDS em Portugal, e o PP em Espanha, e como os tempos estão de crise para essa direita, não se pode dar ao luxo de permitir uma débil experiência de que “há alternativa”.
Terceiro, e este é um ponto fundamental que explica a paisagem patronal (mais do que empresarial) dos passeios de Passos Coelho, é que existe uma poderosa coligação de interesses à volta do PSD e do CDS, mais do primeiro, porque é maior, e que esses interesses viveram num paraíso nos últimos cinco anos e estão com síndroma de abstinência do tempo em que o governo lhes pertencia.
Por isso, o país, apesar de ter tido uma revolução política, está longe de sair do terreno da “velha política”, e as enormes pressões nacionais e internacionais, que todos os dias fazem marcação ao Governo lembram-lhe que “não há alternativa”. Todos os dias um relatório nacional ou internacional diz ao Governo de Costa que o “caminho” conduz ao “desastre”, que eles sabem muito bem que ajudam a acontecer com tais “prevenções”. Eu mato-te e digo-te todos os dias que vais morrer.
O Governo anterior também tinha documentos do mesmo teor, só que eram repreensões amáveis, muito mitigadas, porque o Governo era dos “deles”. Quando, em vésperas de eleições, o FMI começou a mudar de tom e a pôr em causa a “obra” do Governo PSD-CDS, o ministro da Economia esnobou do relatório, que, disse, nem merecia ser lido. Seria interessante saber o que é que o FMI diria do PaF se cumprisse o seu programa eleitoral, o que obviamente nunca iria acontecer.
Com o PS este clamor quase diário de declarações e ameaças é para irem à jugular do Governo e acabar com ele. E, para acabar com ele, basta colocá-lo entre os controleiros de Bruxelas e as agências de rating, de um lado e do outro os seus aliados à esquerda que se colocaram imprudentemente atrás de várias linhas vermelhas que sabem muito bem que o Governo pode ter de atravessar. Sim, porque o PS entre a “Europa” e os seus aliados vai sempre escolher a “Europa”.
Por isso, a estratégia de Passos Coelho tem sentido do ponto pessoal e partidário. Não é por acaso que Passos Coelho alimenta a esperança de eleições a curto prazo, mesmo que, por conveniência, o disfarce — aliás, bastante mal. Passos conta com a superficialidade do discurso jornalístico para dizer numa entrevista que não quer eleições e os títulos tomarem-no a sério, quando tudo o que ele faz e diz só tem sentido para o curto prazo. E, no curto prazo, não é uma estratégia irrealista, bem pelo contrário. Passos tem tudo a seu favor a curto prazo e tudo contra a médio. E conta com a União Europeia para derrubar o Governo de Costa e com os múltiplos ecos da política do “ajustamento” que ainda ecoam alto e bom som por todo o lado.
O debate final do Orçamento e algumas declarações recentes de responsáveis do Bloco, do PCP e da CGTP já mostravam maior consciência do problema. Mas a chave está no PS. O PS sabe muito bem o que aí vem e que precisa de ter uma resposta política concertada face às exigências “europeias” e que estão longe de poder ser acomodadas por um qualquer pacífico plano B. O que lhe vai ser pedido pode ser apenas um “sinal”, como agora se diz, mas esse “sinal” será sempre de rendição — obrigar o Governo a fazer a política do “ajustamento”, e, mais do que isso, com os alvos habituais do “ajustamento”: trabalhadores, funcionários públicos, pensionistas, classe média.
É suposto haver uma seta do tempo. Ela explica por que razão só com um enorme esforço e energia se é capaz de fazer a pasta dos dentes regressar ao interior da bisnaga. Mas o que a situação actual revela é que há demasiados dedos a tapar a pasta para não sair, e a pasta precisa de muito mais força para os contornar. O tempo pode voltar para trás, porque ainda não andou decisivamente para a frente.

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