Nos dias de calor, era frequente ouvir-se e ver-se, em
torno das flores, uns insectos ruidosos, zumbindo, zumbindo, levando pólen,
polinizando, infatigavelmente. Pareciam abelhas mas eram zângãos, zumbindo,
polinizando, enchendo o ar de ruído, livres, enquanto a rainha das abelhas se
acamava na sua colmeia, rodeada pelas obreiras que dela nasciam e logo a serviam.
Não sei se as condições climáticas actuais ainda permitem, como na minha
infância, esta música celestial dos insectos polinizadores. A vida nas cidades
distrai-nos da natureza, que nos é agora transportada já transformada - encanada, entubada, enfrascada, ensacada, engarrafada.
Lembrei-me do zângão a propósito da “Quadratura do
Círculo”, ouvindo Pacheco Pereira, ou do texto que segue, «Ó tempo, volta para trás"lendo-o. Sempre,
desde que Passos Coelho foi governo, P. Pereira o desancou à sua maneira
erudita, sem querer ver mais do que via, sem reconhecer os esforços nem os sacrifícios,
nem as humilhações por que ele devem ter passado, nos tempos em que a Troika
esteve aqui assente, nem, afinal, a força moral de quem tem dois dedos de
vergonha na cara, propondo-se, prioritariamente, livrar o país de uma dívida
desonrosa. Inexplicável rancor de quem, como ele e outros, até se filiou num idêntico
clube partidário, mas mais não fez que tentar liquidar o seu líder, zângão zumbindo
e batendo as asas, não para fecundar a colmeia mas para a destruir.
E da minha memória não mais se extinguirá aquela Quadratura
em que ele, Pacheco Pereira, pegando num utensílio de escrita, desenhou a
posição do país em direita e esquerda, aliando o PS à esquerda, para ter
direito a governar, embora, sozinho, tendo perdido para o PaF, o que deixou Lobo
Xavier interdito pela, suponho, ausência de escrúpulo revelada pelo companheiro
de programa, Jorge Coelho, aliás (o terceiro homem), mantendo a sua
impassibilidade, como quem se não rala com tais ausências. Mas o alvitre pegou,
o PS aí está, vencedor tendo perdido, agarrado a uma esquerda para poder
esbanjar, agarrado a uma Europa para o poder fazer.
Pacheco Pereira devia estar contente, mas não é assim.
Livrou-se de Passos Coelho, que, embora manco, vai continuando a lutar, não
diria por um lugar que perdeu fraudulentamente, mas para, caso a Europa não
seja bem servida por um PS de dois rostos e o seu governo se desfizer por
incumprimento dos compromissos, ele possa novamente tentar livrar o país do naufrágio sobe-e-desce
do nosso afundamento contínuo de há quatro décadas.
Talvez não seja preciso, todos nós – e Passos Coelho
também, com certeza – só desejamos que António Costa chegue ao fim dos seus
objectivos, e a sua arrogância, nas contínuas pedradas a Passos Coelho – a sua
intifada - mostram que está seguro disso.
Por isso mesmo não se compreende a obstinação de
Pacheco Pereira em continuar a dirigir as suas flechas contra Passos Coelho,
zumbindo ameaçador sobre a colmeia deste, quando o que devia fazer era zumbir
protectoramente sobre a colmeia de Costa, no sentido da construção por este
dirigida. Ou será que a Pacheco Pereira não importam mesmo as colmeias mas
apenas só o seu próprio zumbido auto-recreativo?
O receio de uma Europa de direita contra um Costa
pendurado na sua esquerda auxiliar, conquanto caprichosa, não passa de pura
especulação vaidosa, da sua sensibilidade toda apetrechada contra Passos, na
passerelle de erudição em que se move, fingindo acreditar piamente nos apoios
nacionais e estrangeiros de Passos, bem ciente da sua demonstração em tempos de
uma esquerda superior à direita em tamanho, tendo, sub-repticiamente na altura,
Tartufo traiçoeiro, orientado a escolha fraudulenta do país nesse sentido?
Ó
tempo, volta para trás
Público, 05/03/2016
Quem veja nestes dias um noticiário da televisão sem som
parece que o tempo andou para trás. Passos Coelho passeia-se por feiras e
encontros de empresários, “inaugura” escolas em autarquias do PSD, tratado como
primeiro-ministro, com a postura oficial de um primeiro-ministro, com a
bandeira da lapela usada pelos membros do seu Governo e que continua a usar
para não deixar dúvidas que se considera ele próprio o primeiro-ministro com
direito ao cargo, que outros usurparam numa espécie de golpe de Estado.
O
mais interessante é que faz todas estas coisas no âmbito de uma campanha
eleitoral interna para a liderança de um partido político, ou seja, uma questão
mais do interior do foro partidário não há. Nem sequer é como líder do PSD,
logo da oposição, mas como candidato numa eleição interna de um partido.
António Costa ao lado dele, informal e com comitivas mais ou menos caóticas,
com a clara má vontade dos seus acompanhantes empresariais, parece, esse sim,
um candidato em passeio eleitoral. De um lado a pompa do Estado e da função, do
outro o aspirante esforçado a um qualquer cargo eleitoral de uma autarquia.
A
expressão que usei várias vezes de “primeiro-ministro no exílio” popularizou-se
e escapou ao autor, mas corre o risco de ser vista de um só lado, o do bizarro
primeiro-ministro que não o é, e não do lado do exílio. Que terra de exílio é
esta que se parece tanto com o Portugal do passado recente, como se fosse uma
viagem no tempo? Ou não será mesmo o passado e o tempo deixou de se mover e a
seta da entropia encravou? Por que razão é que a “velha” política custa tanto a
desaparecer?
Esta
é uma reflexão urgente, porque um certo facilitismo e complacência que surgiram
à esquerda com a vitória política da formação do Governo não correspondem a uma
alteração significativa das condições prevalecentes nas vésperas das eleições
legislativas. Ou seja, Passos Coelho está bem onde está e é Costa que está numa
terra de ninguém que ainda não foi efectivamente ocupada e que corre o risco de
nunca o vir a ser. Voltemos à pergunta: por que razão é que a “velha” política
custa tanto a desaparecer?
Há
várias respostas a esta pergunta e todas complementares. Primeiro, porque
existe um considerável apoio popular e eleitoral à política do ex-PaF, há muita
bipolarização agressiva. O PaF teve um bom resultado eleitoral no contexto das
eleições em 2015 e, em particular, o PS perdeu-as. A legitimidade da maioria
que resultou dos acordos PS-BE-PCP é inquestionável como a afirmação de que uma
maioria dos portugueses queria mudar em 2015 e votou contra o Governo anterior
do PaF. Mas se tudo isto é verdade, nem por isso se transforma numa grande
vantagem política, se der origem a um governo defensivo que se comporta como
estando sitiado e a forças políticas que o apoiam mais olhando para o seu
umbigo do que para a conjuntura geral.
Segundo,
porque o PS, permanecendo no terreno da ortodoxia europeia, não se consegue
libertar para fazer a política que pretende. Com algumas pequenas concessões e
menos rigorismo europeu, podia, mas ninguém lhe fez essas concessões não porque
elas significassem uma qualquer revolução na política económica, que
continuaria dominada pelo défice, mas pelo facto de hoje a “Europa” ser um
instrumento político crucial de apoio aos governos da direita radical, como o
PSD-CDS em Portugal, e o PP em Espanha, e como os tempos estão de crise para essa
direita, não se pode dar ao luxo de permitir uma débil experiência de que “há
alternativa”.
Terceiro,
e este é um ponto fundamental que explica a paisagem patronal (mais do que
empresarial) dos passeios de Passos Coelho, é que existe uma poderosa coligação
de interesses à volta do PSD e do CDS, mais do primeiro, porque é maior, e que
esses interesses viveram num paraíso nos últimos cinco anos e estão com
síndroma de abstinência do tempo em que o governo lhes pertencia.
Por
isso, o país, apesar de ter tido uma revolução política, está longe de sair do
terreno da “velha política”, e as enormes pressões nacionais e internacionais,
que todos os dias fazem marcação ao Governo lembram-lhe que “não há
alternativa”. Todos os dias um relatório nacional ou internacional diz ao
Governo de Costa que o “caminho” conduz ao “desastre”, que eles sabem muito bem
que ajudam a acontecer com tais “prevenções”. Eu mato-te e digo-te todos os
dias que vais morrer.
O
Governo anterior também tinha documentos do mesmo teor, só que eram repreensões
amáveis, muito mitigadas, porque o Governo era dos “deles”. Quando, em vésperas
de eleições, o FMI começou a mudar de tom e a pôr em causa a “obra” do Governo
PSD-CDS, o ministro da Economia esnobou do relatório, que, disse, nem merecia ser
lido. Seria interessante saber o que é que o FMI diria do PaF se cumprisse o
seu programa eleitoral, o que obviamente nunca iria acontecer.
Com
o PS este clamor quase diário de declarações e ameaças é para irem à jugular do
Governo e acabar com ele. E, para acabar com ele, basta colocá-lo entre os
controleiros de Bruxelas e as agências de rating, de um lado e do outro os seus
aliados à esquerda que se colocaram imprudentemente atrás de várias linhas
vermelhas que sabem muito bem que o Governo pode ter de atravessar. Sim, porque
o PS entre a “Europa” e os seus aliados vai sempre escolher a “Europa”.
Por
isso, a estratégia de Passos Coelho tem sentido do ponto pessoal e partidário.
Não é por acaso que Passos Coelho alimenta a esperança de eleições a curto
prazo, mesmo que, por conveniência, o disfarce — aliás, bastante mal. Passos
conta com a superficialidade do discurso jornalístico para dizer numa
entrevista que não quer eleições e os títulos tomarem-no a sério, quando tudo o
que ele faz e diz só tem sentido para o curto prazo. E, no curto prazo, não é
uma estratégia irrealista, bem pelo contrário. Passos tem tudo a seu favor a
curto prazo e tudo contra a médio. E conta com a União Europeia para derrubar o
Governo de Costa e com os múltiplos ecos da política do “ajustamento” que ainda
ecoam alto e bom som por todo o lado.
O
debate final do Orçamento e algumas declarações recentes de responsáveis do
Bloco, do PCP e da CGTP já mostravam maior consciência do problema. Mas a chave
está no PS. O PS sabe muito bem o que aí vem e que precisa de ter uma resposta
política concertada face às exigências “europeias” e que estão longe de poder
ser acomodadas por um qualquer pacífico plano B. O que lhe vai ser pedido pode
ser apenas um “sinal”, como agora se diz, mas esse “sinal” será sempre de
rendição — obrigar o Governo a fazer a política do “ajustamento”, e, mais do
que isso, com os alvos habituais do “ajustamento”: trabalhadores, funcionários
públicos, pensionistas, classe média.
É
suposto haver uma seta do tempo. Ela explica por que razão só com um enorme
esforço e energia se é capaz de fazer a pasta dos dentes regressar ao interior
da bisnaga. Mas o que a situação actual revela é que há demasiados dedos a
tapar a pasta para não sair, e a pasta precisa de muito mais força para os
contornar. O tempo pode voltar para trás, porque ainda não andou
decisivamente para a frente.
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