«Marcelismo, dia terceiro», um artigo de Fernanda Câncio, jornalista do DN, que
conta as últimas proezas de Marcelo Rebelo de Sousa – ou as suas primeiras como
Presidente da República – ele que, ao que se conta, na Internet – vantagens das
pessoas de fama, a propalação das suas biografias na Internet – tem a sua vida
recheada de episódios de humor burlesco, porque se não exime de fazer graçolas
à custa dos “amigos”, imune à sentença popular de que mais vale perder um bom
dito do que um bom amigo. Fernanda Câncio o define, em argumentação que parece
justa – tanto na expressão de um carácter que há muito se vem definindo como de
bailarina esquiva, nos seus múltiplos contorcionismos de menino brincalhão em “saídas”
de jocosidade perversa, como na expressão de uma adequada crítica a esse
carácter, de uma leveza pouco condizente com o que se exige de um Presidente da
República em seriedade e bom senso.
Um retrato perfeito, em minha opinião. Um PR de
irrequietude exibicionista, que, apesar de tudo, era a única opção como
presidente. Pode ser que acalme, atingido o auge das suas ambições. Afinal,
inteligência não lhe falta, nem saber, para perceber que o papel de Arlequim
não condiz com a dignidade do seu cargo.
«Marcelismo, dia terceiro»
Fernanda Câncio
DN, 11/3/16
No jantar de despedida da Faculdade de Direito,
contaram-me, Marcelo discursou lembrando a "senhora do PBX, que era quem
nos punha a par dos mexericos; quando se reformou deixou no lugar dela o
professor Y". O professor Y, por acaso vivo e até presente no jantar,
ficou naturalmente para morrer. Vermelho dos pés à cabeça, perguntava:
"Eu? Mas porquê?" Quem conta sorri e abana a cabeça: "Que
necessidade tinha ele, Marcelo, de fazer aquilo? Bem tenta portar-se bem, mas
não resiste. Não consegue estar sossegado."
Sim: não há quem (exceto o visado, claro) não sorria
com este episódio que, como as famosas histórias vichyssoise e lelé da cuca,
tão bem define o Marcelo inventivo e trocista, imprevisível e rebelde,
descontraído e inconveniente que vai a pé tomar posse criando um momento
mediático de "simplicidade" e proximidade com o povo à la Papa
Francisco, mas igualmente perverso - o gesto vinca também, com eficácia mortal,
a distância face a um Cavaco crispado, cerimonial, obcecado com a segurança,
cujo aparente elogio no discurso de posse é um prodígio de veneno -, maldoso,
não confiável e irresponsável. Para fazer uma piada, o Presidente eleito não
hesitou em envergonhar um colega à frente de toda a escola, sem atender à
desproporção de poder e muito menos à evidência de que, conhecida a sua própria
vocação para a intriga e o diz-que-diz, o herdeiro óbvio da senhora do PBX era
mesmo ele.
Este lado temerário, irresponsável e tão pouco cristão
de Marcelo, há décadas a fazer as delícias do jornalismo dito
"político" (o qual, não esqueçamos, integrou nos primórdios do Expresso)
e patente no descaramento com que renega declarações e ações anteriores,
deveria deixar toda a gente com o mínimo de informação com um ou mesmo os dois
pés atrás. Em vez disso, o que vemos são declarações de amor, baba e comoção, e
o verberar autoritário dos partidos que "ousaram", recusando palmas
na posse e no discurso, não aderir ao unanimismo marcelista. De "falta de
educação" a "preconceito ideológico" (é suposto partidos não
serem ideológicos?), os apodos abatem-se sobre BE, PCP e Verdes enquanto se
louva um discurso que por exemplo o Público reputa de "notável", e de
"dizer tudo o que é essencial".
Tudo bem, ver Cavaco pelas costas é um alívio. E
Marcelo puxa à festa, literal e metaforicamente. Mas se há algo de notável
naquele discurso é ser uma camisola tamanho universal a que não falta sequer o
bafio da exaltação da "alma tuga" - ali em "indomável
inquietação criadora que preside à nossa vocação ecuménica" - e da "grandeza",
a terminar numa espécie de grito de Nun'Álvares: "Pelo Portugal de
sempre!" Tem piada: na aula, essa sim notável, que deu, em campanha, num
liceu de Cascais, Marcelo certificou que o Portugal absolutista, Antigo Regime,
supostamente derrotado pelos liberais, veio a ressurgir no salazarismo cem anos
depois - e ainda por aí anda, resistindo à democracia. Sabe tanto, professor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário