sexta-feira, 4 de março de 2016

Histórias barrocas



Parece que o termo «barroco» tem origem portuguesa, barroco significando, em joalharia, “pérola imperfeita”, e, em arte, foi aplicado inicialmente em sentido pejorativo, tendo em conta o exagero das formas, como já na Escolástica se aplicara ao raciocínio estapafúrdio. A mim parece-me uma bonita palavra, que originou um estilo literário burilado, não só ao nível do pensamento como ao nível da forma, de magnificências e retorcidos, em ânsias de uma precisão de contorno sublinhando, talvez, as aspirações a um infinito dolorosamente inalcançável que, na nossa poesia cultista engendrou os extraordinários sonetos de Francisco de Vasconcelos  sobre o efémero da vida e da beleza: “Esse baixel nas praias derrotado…”, “Esse jasmim que arminhos desacata” . Também o traduz o seguinte retrato de Fílis, do Padre Jerónimo Baía, feito de jogo - de metáforas, de hipérboles, de trocadilhos, de inversões, de antíteses, de anáforas, de iteração, de paralelismos e quiasmos, num preciosismo formal (cultismo) que será característica também do pensamento rebuscado, no conceito silogístico (conceptismo), o próprio nome do cancioneiro - «Fénix Renascida» - que os contém, sendo expressivo desse requinte a atingir. Requinte e complexidade também visível, naturalmente,   nas outras artes – “Belas”- do século XVII.
Exemplo de um discurso cultista (de Jerónimo Baía), de busca do termo progressivamente mais precioso que melhor exprima  o sentimento a traduzir:
Vi Fílis, a bela,
Lume dos meus olhos,
Olhos de minha alma,
Alma de meu corpo.
Vi-a, e logo amor.
Vi-a, e Febo logo
Quer que a pinte a cores,
Quer que a cante a coros.
Meti-me em debuxos,
E saí com tonos…….
Exemplo de um discurso conceptista (de Gregório de Matos, poeta nascido no Brasil): (A um braço achado de Jesus, numa escultura vandalizada):
O todo sem a parte não é todo;
A parte sem o todo não é parte;
Mas se a parte o faz todo sendo parte,
Não se diga que é parte, sendo todo……

Vem a explicação – do signo “barroco” - a propósito do artigo de Vasco Pulido Valente sobre um “herói” dos nossos tempos – o Dr. Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto – forjador de uma história que me parece barroca, não no sentido da arte, mas no capítulo da educação: pérola imperfeita, retorcidos os parâmetros do equilíbrio ético, em história de banalidade pretensiosa e tosca de um orgulho exasperado, paralela a outra que fez o nosso António Dinis da Cruz e Silva construir um poema herói-cómico – O Hyssope - de grande magnificência verbal e construção clássica em tom grotescamente épico sobre um motivo fútil - uma dissidência entre o deão Lara da Sé de Elvas e o seu bispo D. Lourenço – de visita à catedral para a missa dominical, a quem o primeiro retirou a cerimónia de aspersão com o hissope, como era uso, o que deixou este extremamente ofendido. Não resisto a transcrever-lhe a Proposição e a Invocação, ao modo épico, e imitando também “Le Lutrin” de Boileau, para em seguida se lançar na crítica a esse estilo de excesso lúdico, que o seu Século das Luzes setecentista tanto condenou, como o fez, para citar outro  exemplo célebre , o Padre Luís António Verney no seu «O verdadeiro Método de Estudar».

Eu canto o BISPO, e a espantosa guerra,
Que o HYSSOPE excitou na Igreja d’Elvas.
Musa, Tu, que nas margens aprazíveis,
Que o Sena borda de árvores viçosas,
Do famoso Boileau a fértil mente
Inflamaste benigna, Tu me inflama;
Tu me lembra o motivo; Tu, as causas,
Por que a tanto furor, a tanta raiva
Chegaram o Prelado, e o seu Cabido.

 Uma obra necessariamente emaranhada de saber e troça, mas engenhosamente urdida em grandiloquência irónica, de terminologia tantas vezes grosseira, por meio de figuras de ficção – abstracções: a Lisonja, a Senhoria, a Excelência, as Cortesias … - outras mais significativas do imaginário infantil no Conselho - não dos Deuses, mas de Génios da sutil Cabala” -  o Vampirismo, os Sortilégios, os Silfos, as Salamandras, as Ninfas, os Gnomos
E ao longo dos seus oito Cantos, por vezes traços definidores da idiossincrasia do povo português são visíveis, como no seguinte passo caracterológico, caracterização aplicável ainda hoje ao modo de estar e de ser português:
 
Ao pé de cada esquina, hoje, sem pejo,
Se tratam de Monsieur os portugueses.
Isto, senhor, é moda, e como é moda,
A quisemos seguir; e sobretudo,
Mostrar ao mundo que francês sabemos.

 Vasco Pulido Valente conta, no seu “canto” de habitual qualidade,  clareza, ironia e conhecimento de investigador e de humanista, embora refractário, naturalmente, a incursões imitativas no passado clássico, neste nosso século XXI da liberdade e da  independência criativa – conta satiricamente o caso do “Bispo D. Lourenço” da Câmara Municipal do Porto,  e a sua zanga épica que implicou a disputa “barroca” (em termos  éticos), com o “deão Lara” da “Sé” de Vigo, por conta das negociatas “aéreas” do Governo de António Costa.
O texto de Vasco Pulido Valente:

Um herói
 Esta semana, o dr. Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto, começou uma guerra e descobriu um novo princípio de governo. A guerra começou com um insulto ao alcaide de Vigo. Numa audaciosa metáfora que mal me atrevo a repetir, Rui Moreira declarou que o alcaide de Vigo se sentia como uma salsicha numa francesinha e que, além disso, Vigo tinha um aeroporto miserável. O espanhol, ou galego, como quiserem, não levou o comentário a bem e exigiu desculpas, que o bravo Moreira se recusou a dar. Pela continuação da história se verá a importância deste incidente fronteiriço. Mas, primeiro, é preciso dizer que o Porto borbulhava de ódio a Lisboa, que aparentemente não lhe fizera mal nenhum, a não ser o mal que Lisboa faz sempre ao Porto.
Só que neste caso havia uma razão particular para a fúria do Porto, e, claro, do Dr. Rui Moreira, seu defensor e condestável. Depois da renacionalização da TAP, se assim se pode chamar ao confuso negócio do dr. António Costa, com os senhores que o tinham comprado, o Estado ficou com 50 por cento da coisa; e não sei se com 50 por cento da dívida e dos poderes. Sucede que os privados desta nova espécie de parceria resolveram cortar ao Porto quatro carreiras, como se Rui Moreira não existisse. Ora Moreira existe e, como seria de esperar, ameaçou imediatamente Lisboa que se ela não usasse os seus 50 por cento, que pertencem também ao Porto, ele exerceria represálias. Ninguém percebeu como, porque não consta que o Porto, ou mesmo o Norte, tenham um exército privativo; e os mouros cá de baixo descansaram.
Erro deles. No dia seguinte, Rui Moreira revelou o seu plano. Iria esperar até que lhe saísse a sorte grande no Euromilhões. Com esse dinheiro comprava a TAP de fio a pavio e, a seguir, transferia as carreiras de Lisboa para o Porto. Todas, sem faltar uma. E assim, como ele explicou com um sorriso feroz, qualquer português que quisesse sair de Portugal, especialmente os políticos, seria obrigado para castigo a passar pelo Porto.
Estamos daqui a ver o Benfica no aeroporto do inimigo depois de um daqueles desastres vexatórios que lhe costumam suceder pelo estrangeiro e o sorriso subtil de Rui Moreira perante a vitória. Um César. Se ele conseguisse que Portugal inteiro jogasse regularmente no Euromilhões, talvez pagasse a dívida e pudesse mesmo marchar sobre Vigo e prender o alcaide. Isso sim.

Mas, segundo ouço distraidamente nas notícias da noite, parece que uma nova companhia, salvo erro italiana, fará as tais rotas de que o Porto precisa e que davam prejuízo à TAP.  Tout va bien qui finit bien. Como no Hyssope. Somos assim. Arruaceiros por orgulho ferido, mas de coração brando que aplaca as refregas para o bem-estar. Sobretudo quando o cargo público não é de desprezar

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