Na última página do Público
de 4 de Março, na epígrafe cimeira “Escrito na Pedra” para
meditarmos, vem uma frase de Séneca - (4 a. C – 65 a. D), filósofo e escritor
da Roma Antiga - «Procura a satisfação de veres morrer os teus vícios antes
de ti». Creio que ninguém faz isso, “cada um é”, em expressão astuciosamente
caprichosa e céptica do adagiário popular, “como cada qual”, ninguém
estando muito interessado em se distinguir da norma, quando se trata de
reconhecer os erros próprios e alterar o seu próprio comportamento. Mas a frase
serve de corolário ao artigo “Uma questiúncula” de Vasco Pulido
Valente sobre a destituição, por João Soares, de António Lamas, do
cargo de director do CCB a favor do seu protegido Elísio Summavielle, de vasto currículo e amigo
da família.
Retiro da Internet que «João Soares afirmou não ter "a menor das
hostilidades do ponto de vista pessoal" com António Lamas – nomeado presidente
do CCB em 2014 -, mas lamentou "uma gestão pouco prudente", dando
como exemplo que "seis milhões [de euros] das reservas foram gastos nos
últimos tempos".
Mas vejamos o ponto de vista de Vasco Pulido Valente que
nos deixa mais um dos seus retratos da, ao que dizem, nossa “democracia”, com
as marcas de imperialismo tosco dos nossos moralistas de meia tigela, como me
parece ser João Soares – e António Costa, sem dúvida - em nada interessados em
reformular os seus comportamentos, segundo os avisos de Séneca, ou os “escritos
no mármore” de Pulido Valente:
Uma
questiúncula
Vasco Pulido Valente
Público, 4/3/2016
Como o dr. João Soares muito bem sabe, não tenho por ele
qualquer respeito nem como homem, nem como político. Houve pessoas – Teresa
Gouveia e José Manuel Fernandes – que, a propósito do “caso Lamas”, descobriram
agora a insignificância e a grosseria dessa lamentável personagem. Chegam
tarde. Claro que o ministro podia ter chamado discretamente o director do CCB
para o demitir, alegando, como está no seu direito, falta de confiança política
ou pessoal. Mas João Soares preferiu fazer do incidente um espectáculo público.
Ameaçou o dr. Lamas, exibiu os seus poderes (que lhe vêm exclusivamente do
cargo) e no fim ainda se foi gabar para a televisão. Não se percebe o motivo de
toda esta palhaçada, excepto se pensarmos que ele é no governo um
verbo-de-encher e que o PS o atura por simples caridade.
Infelizmente,
no meio desta cena de mau gosto não se ficou a saber ao certo o que na essência
separava o dr. Lamas do ministro. O dr. Lamas fizera uma obra extraordinária em
Sintra, restaurando monumentos, do palácio da Pena ao chalet da condessa de
Edla, reabilitando jardins, acabando com os crónicos prejuízos da parte
cultural da vila. Mas, transferido para o CCB em 2014, resolveu repetir a
receita e transformar a zona entre a Ajuda e Belém no seu segundo parque
turístico. Embora publicado na internet, nem a televisão, nem os jornais, que
discutem as mais sufocantes banalidades, discutiram o plano do dr. Lamas. Mesmo
o ministério da Cultura e a CML não se manifestaram. E quando o sr. Soares
desembarcou no governo decidiu liquidar a coisa sem uma palavra de explicação.
Isto
de mandar no povinho sem sequer o informar não é bonito. Sendo lisboeta, não me
apetece muito que entre a Ajuda e Belém apareçam durante o ano inteiro milhares
e milhares de turistas, tapando a vista e atravancando as ruas. Mas gostaria de
saber o que o dr. Lamas pensa sobre o assunto e já agora o que pensa, se pensa
alguma coisa, o sr. Soares. De resto, a mais preliminar consideração pelas
pessoas exige que os moradores do sítio sejam previamente consultados.
Reconheço que a vontade do país não é a grande preocupação do dr. Costa, mas
não custava muito ouvir as pessoas que, em última análise vão, ou não vão, ser
vítimas da fantasia urbanística do ministério da Cultura ou da CML.
Dissertações sobre a falta de maneiras do dr. João Soares não nos levam longe.
Leiamos também a defesa que faz José Manuel
Fernandes de António Lamas, no artigo citado por Pulido Valente, e
recuperemos assim memórias de uma Sintra que Lamas transfigurou. E atentemos no
PS: «PS. O mundo da cultura, tão fervilhante no tempo das
indignações à mínima unha encravada, está estranhamente silencioso.
Infelizmente não é nada que me surpreenda.» Isso mesmo nos define, o silêncio para as coisas que contam. Também
para o AO. Esta nossa rudeza de espírito já vem do tempo dos
celtiberos, que os romanos levaram mais tempo a domar, segundo leio no livro de
História do Bruno. Por isso pertencemos à cauda europeia.
Quero,
posso e mando. Chamo-me Soares. João Soares
José
Manuel Fernandes
Público, 1/3/2016
António
Lamas tinha um projecto para a zona monumental de Belém-Ajuda. Tinha ideias,
ambição e capacidade de gestão. João Soares não tem nada disso. Nem dinheiro.
Só despeito, amiguismo e má-criação.
Maio
de 2008. Mega Ferreira, então presidente do CCB, confessa-nos numa entrevista
que, ao avistar do janela do seu gabinete as filas de turistas que se formavam
para entrar nos Jerónimos, se lembrou de criar um programa de Verão pensando já
que, “tendo ali o público, se podia pensar não apenas em levar os turistas a
visitar aquele monumento, mas a passar o dia na zona de Belém e tendo
actividades complementares”.
Na
mesma altura, Maio de 2006, António Lamas estava no seu segundo ano como
presidente da administração da Parques de Sintra Monte da Lua. Em 2006, quando
recebera a empresa esta acumulava prejuízos e dívidas e pouco fizera pelo
magnífico património de Sintra e da sua serra.
Oito
anos depois, em 2014, António Lamas muda-se de Sintra para Lisboa, onde passa a
presidir ao Centro Cultural de Belém. Nesse período de tempo pouco acontecera
em toda essa zona da capital – ou melhor, acontecera apenas o enorme e
faraónico disparate do novo Museu dos Coches. Mas os parques de Sintra
tinham-se transfigurado.
Moro
na serra de Sintra, percorri a serra ainda criança, quando fui estudante
universitário andei livremente a recolher amostras no interior do que então
eram as ruínas de alguns dos seus palácios. Céptico por natureza, olhei com
alguma desconfiança para a ambição de António Lamas, mas vi com os meus olhos a
serra e os seus monumentos a transfigurarem-se durante o seu
mandato. Onde estavam ruínas, como em Monserrate ou no Chalet da
Condessa de Edla, estão hoje monumentos restaurados com exemplar cuidado. Os
parques, que estavam ao abandono, são hoje jardins tratados, porventura melhor
do que no tempo em que os reis ali passavam os seus verões. As obras de
restauro e recuperação beneficiaram também o Castelo dos Mouros, o Convento dos
Capuchos, o Palácio da Vila e, claro, a jóia da coroa, o Palácio da Pena. Os
muros que estavam derrubados há décadas foram reerguidos. O turismo foi
ordenado. Um inteligente sistema de bilhética faz com que quem aqui chega
visite sempre mais do que um monumento – e nunca falta, mesmo nestes dias
chuvosos e frios de Inverno, quem se acumule junto aos portões de entrada,
esperando que abram. A receita foi multiplicada várias vezes, os lucros
reinvestidos, o modelo de gestão acabou também por se alargar ao Palácio de
Queluz.
Conhecia
António Lamas desde o tempo em que, no então IPPC, promoveu a recuperação de
alguns dos principais museus nacionais, como o Grão Vasco de Viseu, o Abade de
Baçal de Bragança ou o Soares dos Reis do Porto, um processo a que historiadora
Raquel Henriques da Silva considerou ser “o mais extraordinário período de
obras de requalificação dos museus portugueses de todo o século XX”.
Acompanhei, como jornalista, a forma como pensou e promoveu o projecto do CCB.
Vi-o, mais tarde, ocupar outros lugares públicos de relevo, como presidente da
antiga Junta Autónoma das Estradas, no tempo de João Cravinho.
Foi,
por isso, com natural expectativa que vi a sua nomeação, em 2014, para a
presidência do CCB (e, ao mesmo tempo, confesso que com receio de que o seu
sucessor em Sintra pudesse estragar o que tão bem estava a ser feito). Sabia
que ele tinha um sonho, um projecto e uma determinação: conceber para a zona de
Belém e da Ajuda um projecto semelhante ao de Sintra – um projecto bem mais
ambicioso que uns concertos para turistas como os imaginados por Mega Ferreira
ao olhar para a porta dos Jerónimos.
Não
conheço os detalhes do que estava a ser imaginado e projectado, apenas o que já está em discussão
pública, mas sei duas coisas: primeiro, que faz todo o sentido
pensar em conjunto a área monumental mais visitada do país e que compreende
monumentos e equipamentos tão importantes como o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre
de Belém, o Padrão dos Descobrimentos, o Palácio Nacional da Ajuda, museus como
o dos Coches, o de Arqueologia, o da Marinha e o Etnografia, e ainda jardins
como o Tropical e o Botânico da Ajuda; segundo, que no desenvolvimento deste
projecto o próprio António Lamas teve reuniões com a vereadora da Cultura de
Lisboa, Catarina Vaz Pinto, e sobretudo com o vereador do urbanismo, Manuel
Salgado, havendo responsáveis técnicos do município destacados para acompanhar
o projecto. Tudo isto depois de o próprio António Lamas ter falado com António
Costa quando este ainda era presidente da câmara de Lisboa, já que queria que o
projecto para Belém-Ajuda não fosse desenvolvido como sendo do anterior governo
ou partidarizado.
António
Lamas tem uma personalidade forte e não é do estilo bajulador, mas tudo o que
sei sobre a Ajuda-Belém indicava que estávamos perante o homem certo para o
projecto de que o conjunto monumental daquela zona da cidade necessita.
Aqui
chegado verifico que me estendi um pouco. Mas o necessário, creio, para se
perceber melhor a forma grosseira e autoritária utilizada pelo ministro da
Cultura, João Soares, para o demitir. Usando um pretexto falso – o alegado
desconhecimento da Câmara do que estaria em curso – tratou de impor o seu
“posso, quero e mando” sem se coibir de enxovalhar e apoucar um servidor da
causa pública e da cultura como muitas e valiosas provas dadas.
Tem
o ministro um projecto alternativo? Não se conhece. Elaborou o ministro um só
crítica substantiva ao conteúdo do projecto? Se o fez, foi só para ele.
Ou
seja, em nenhum momento a perseguição a António Lamas foi outra coisa senão uma
perseguição pessoal, ad hominem, sem sustentação, apenas justificável por o seu
projecto lhe poder dar um protagonismo que fizesse sombra ao autor de romances eróticos que, para nossa
desgraça, é hoje o responsável máximo do Ministério da Cultura. A ele ou a
Fernando Medina, que também teve um comportamento lamentável neste processo,
sobretudo quando tinha vereadores e técnicos a par do que se estava a projectar
para a zona monumental de Belém e da Ajuda.
Já
sabíamos que este era e é um país pequenino e de capelinhas, onde quem pensa
com um pouco mais de ambição e já deu provar de ser capaz de transformar as
boas ideias em melhores realizações nunca merece aplauso, mais depressa suscita
invejas. Não duvido que naquelas casas todas que citei atrás deve haver muitos
directores e directorzinhos que, fechados nas suas conchas, queixando-se
eternamente de falta de verbas, protegem o seu reduto e desconfiam da ambição.
Sempre houve, pelos visto sempre haverá.
Sem
um chavo para mandar cantar um cego, sem uma ideia séria para a cultura que vá
para além da analfabeta obsessão com os Mirós, João Soares voltou a mostrar que
há um terreno onde dificilmente é ultrapassado: o da grosseria.
Desta
vez nem se incomodou muito com explicações. Limitou-se ao quero, posso e mando.
Um quero, posso e mando que foi mesmo além do que é habitual nos nossos
socialistas – este foi o quero, posso e mando de quem se chama Soares. João
Soares.
PS.
O mundo da cultura, tão fervilhante no tempo das indignações à mínima unha
encravada, está estranhamente silencioso. Infelizmente não é nada que me
surpreenda.
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