Vasco Pulido Valente, na sua
crónica de 28/2 refere vários nomes de
escritores oitocentistas que focaram os desmandos vários da nossa organização
política e social e tive vontade de os revisitar, em leituras de “Farpas”
- mais impiedosas as de Ramalho, de uma sátira mais alegremente humorística as
de Eça. Lembrei os conselhos e as críticas políticas das Viagens de Garrett,
não me acheguei a Herculano, tão sério e rígido, detive-me sim, no A Morgadinha
dos Canaviais, que esse, levemente, enquadra as personagens da sua intenção
simpaticamente crítica, em descritivo ou actuação das próprias que nos dão uma
graciosa mas um tanto repulsiva visão da panorâmica social da nossa tradição aldeã.
Assim, o senhor Joãozinho das Perdizes, é um desmazelado morgado de uma boémia tosca, o brasileiro Seabra é uma
espécie de novo rico abrasileirado, o mestre Pertunhas uma espécie de factótum corrupto e ridículo, a taberna do
Canadas, local onde se processa a política caciquista da terra, e onde todos aqueles
terão o seu papel no acto eleitoral que se processará na aldeia minhota, espaço
do romance, como minúsculo retrato robot muito nosso ainda hoje, sem deixar de
ser universal.
Outros escritores irão mais ao
encontro da tese de Vasco Pulido Valente acerca da “base de apoio popular”
de que se servem os caciques do actual “arco
da governação” para a sua sustentabilidade no poder, dirigindo para eles a
sua generosidade ambígua. Pulido Valente os desmistifica. Eu transcrevo o
discurso do Brasileiro Seabra, contra um popular que se queixou de que as
estradas lhe cortavam as terras. O discurso pedante e entaramelado do brasileiro nos serve
também, às nossas ânsias de distracção em retrato de equiparação, Garrett
surgindo como corolário moralista deste feitio da nossa alarvidade e astúcia.
Uma
tradição nacional
Público, 28/02/2016
Rui Ramos diz que o PS, o
Bloco e o PC não se definem pela sua preocupação com “os mais desfavorecidos”,
mas por tentarem fazer dos “dependentes do Estado” a sua “base de apoio”. Ora
esta acusação, além de ser ambígua, foi até agora – e com toda a razão –
dirigida aos três partidos do chamado “arco de governação”, que dominaram o
regime e as benesses que dele podiam derivar desde o “25 de Novembro”. O PC está
hoje reduzido a algumas fortalezas no Alentejo e aos sindicatos dos serviços
públicos; e o Bloco, coitado, não manda seriamente em coisa nenhuma. Mas não
deixa de ser curioso que Rui Ramos, um historiador, se preocupe com as
clientelas da esquerda, seguindo a mais velha tradição política portuguesa. É
como se voltasse um filme a preto e branco que já vimos muitas vezes.
Desde a consolidação da monarquia liberal que o
jornalismo e a literatura bramiram contra a compra do eleitorado por “favores”
do governo, empregos, dinheiro e privilégios. Desde Herculano e Júlio Dinis,
que sempre se esquece, até Ramalho, Eça, Fialho e, claro, os “neogarrettianos”,
não houve cão nem gato que não condenasse os partidos por se alimentarem de
“dependentes do Estado”. Os milhares de páginas que se escreveram contra esta
ficção ou, se quiserem, contra esta fraude constituem a mais longa e coerente
tradição política portuguesa. A República com a sua violência e o seu compadrio
confirmou com vigor tudo aquilo em que o país piamente acreditava. E Salazar,
ao contrário da lenda, assentou a sua ditadura num apetite geral de um “pulso
forte” que servisse a “nação” e desfizesse as clientelas.
Curiosamente a nova democracia de 1976 levou muito
pouco tempo a reconstituir a tradição do liberalismo e da República. Por um
lado, apareceram espontaneamente à volta das câmaras grupos de interesse ou de
pressão, que já existiam no terreno ou se criaram por força das necessidades da
época, e esses grupos acabaram por se ligar aos partidos políticos, às vezes de
maneiras sem explicação ou confissão. E, por outro lado, a televisão e os
jornais começaram imediatamente a imprecar contra a imoralidade dos partidos na
administração central e local: as “bases” do PSD e os “boys” do PS destaparam o
formigueiro e o que se viu não foi bonito. Hoje, atribuir clientelas de Estado
ao Bloco e ao PC não parece uma grande contribuição para o debate político. O
pior são as consequências naturais dessa premissa.
O
discurso do Brasileiro Seabra:
-- Isso não é assim -- atalhou o Brasileiro, tomando uns ares catedráticos, cheios de gravidade. -- Vossemecê é ignorante e por isso é que fala desse modo.
-- Eu digo... -- tartamudeou,
intimidado, o lavrador.
-- Pois sim: mas não deve
meter-se a falar em coisas que não entende. As estradas não servem para nada!
As estradas são meios de comunicação e... facilitam o... o... o tráfego
comercial e aumentam por conseguinte a riqueza das nações... Porque o trabalho
representa um capital... sim, senhores, mas... mas um capital... sim... um capital
morto... quero dizer... um capital que... não vive... Quero dizer... sim...
suponhamos: o crédito por exemplo... O crédito... sim... aí está o crédito...
Pois que é o crédito?... O crédito é... é o crédito... depende de muitas
coisas... Por outra, suponhamos... se nós não tivéssemos estradas... Uma
suposição... Partamos de um princípio. A produção excede o consumo... Quero
mesmo que o consumo exceda a produção... Sim, quero mesmo isso... Muito
bem... Daí que resulta? Está claro que um desequilíbrio. E depois?... Depois,
boas noites... Não havendo estradas... Aí está que se diz por aí que a livre
exportação, que tal, que sim senhores... mais isto, mais aquilo... Pois não é
assim. É preciso que se atenda também às condições económicas dos povos. Sim...
eu digo: O comércio deve ser livre... Muito bem... Em termos já se sabe...
Mas... o comércio livre... a livre troca... entendamo-nos... É preciso clareza
de ideias... Quando eu digo que... Ora suponhamos... suponhamos que não
havia estradas... Os transportes eram mais difíceis e portanto mais caros... E,
se, além disso, os géneros fossem escassos, e... Diz vossemecê: para que
servem as estradas? Ora diga-me uma coisa, Sr. Manuel: suponhamos que... os
impostos indirectos... não precisamos de ir mais longe... os impostos
indirectos... Sempre queria que me dissesse o que havia de fazer?
-- Impostos, Deus me livre deles!
-- murmurou o lavrador, cujos instintos trepidaram à palavra «impostos».
-- Isso também não é assim...
Deus me livre! Não se diz «Deus me livre», porque a riqueza... a riqueza...
sim, a riqueza não está na terra... isto é, a riqueza está na terra... mas é
preciso o capital para a exploração... Percebe?... Ou... suponhamos... por
exemplo... Não... vamos cá por outro lado... Há um défice num orçamento...
desce o preço das inscrições... Ora bem... Mas... suponhamos que há boas
estradas, etc... A riqueza tende a aumentar... e... e... Enfim, lá que as
estradas são úteis, isso é que não tem questão.
Toda esta lengalenga económica
foi escutada pelo auditório com profunda atenção.
O Brasileiro, assinante e leitor infalível de vários periódicos políticos, conseguira, à força de leitura, fixar na memória certas frases do artigo de fundo, e acabara por convencer-se de que possuía grandes noções de ciência política. Em ocasiões como esta dava uma sacudidela ao intelecto, e aquelas frases, como os variados objectos do interior de um caleidoscópio, tomavam uma disposição tal ou qual, mais ou menos regular, e assim lhe saía uma dissertação, como essa que viram. Em permanente indigestão económica vivia este portento. A doença não é das mais raras entre políticos.
O Brasileiro, assinante e leitor infalível de vários periódicos políticos, conseguira, à força de leitura, fixar na memória certas frases do artigo de fundo, e acabara por convencer-se de que possuía grandes noções de ciência política. Em ocasiões como esta dava uma sacudidela ao intelecto, e aquelas frases, como os variados objectos do interior de um caleidoscópio, tomavam uma disposição tal ou qual, mais ou menos regular, e assim lhe saía uma dissertação, como essa que viram. Em permanente indigestão económica vivia este portento. A doença não é das mais raras entre políticos.
E um cheirinho conclusivo moralista do nobre Garrett,
liberal segundo o ideário rousseauniano, sem tanta fé, é certo, na sanidade
popular que apregoa. O povo, desde sempre enleado numa marginalidade cultural
própria de políticas educativas elitistas, que o tornavam submisso, adquire
repentinamente a convicção da sua liberdade e dos seus direitos que as
políticas da esquerda lhe fazem sentir, mas fomentadas no ódio pelos da
governação, tornando-se barulhento e agora só reivindicativo, sem se deixar
intimidar pelos brasileiros com as suas luzes entarameladas, dos tempos da “Morgadinha”.
E o mulherio é atrevido e beijoqueiro, numa de promiscuidade saloia, que a
televisão grotescamente nos faz chegar:
«Em
Portugal não há religião de nenhuma espécie. Até a sua falsa sombra, que é a
hipocrisia, desapareceu. Ficou o materialismo estúpido, alvar, ignorante,
devasso e desfaçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cínica no meio das
ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito...
Uma
nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor tempo, apesar desta
paralisia que lhe pasma a vida da alma na mais nobre parte de seu corpo. Mas
uma nação pequena, é impossível; há-de morrer.
Mais
dez anos de barões e de regímen da matéria, e infalivelmente nos foge deste
corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espírito. Creio isto
firmemente.
Mas
ainda espero melhor todavia, porque o povo, o povo está são: os corruptos
somos nós os que cuidamos saber e ignoramos tudo.»
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