sábado, 12 de março de 2016

Isto é um supônhamos



Vasco Pulido Valente, na sua crónica  de 28/2 refere vários nomes de escritores oitocentistas que focaram os desmandos vários da nossa organização política e social e tive vontade de os revisitar, em leituras de “Farpas” - mais impiedosas as de Ramalho, de uma sátira mais alegremente humorística as de Eça. Lembrei os conselhos e as críticas políticas das Viagens de Garrett, não me acheguei a Herculano, tão sério e rígido, detive-me sim, no A Morgadinha dos Canaviais, que esse, levemente, enquadra as personagens da sua intenção simpaticamente crítica, em descritivo ou actuação das próprias que nos dão uma graciosa mas um tanto repulsiva visão da panorâmica social da nossa tradição aldeã. Assim, o senhor Joãozinho das Perdizes, é um desmazelado morgado  de uma boémia tosca, o brasileiro Seabra é uma espécie de novo rico abrasileirado, o mestre Pertunhas uma espécie de  factótum corrupto e ridículo, a taberna do Canadas, local onde se processa a política caciquista da terra, e onde todos aqueles terão o seu papel no acto eleitoral que se processará na aldeia minhota, espaço do romance, como minúsculo retrato robot muito nosso ainda hoje, sem deixar de ser universal.
Outros escritores irão mais ao encontro da tese de Vasco Pulido Valente acerca da “base de apoio popular” de que se servem os caciques do  actual “arco da governação” para a sua sustentabilidade no poder, dirigindo para eles a sua generosidade ambígua. Pulido Valente os desmistifica. Eu transcrevo o discurso do Brasileiro Seabra, contra um popular que se queixou de que as estradas lhe cortavam as terras. O discurso pedante e entaramelado do brasileiro nos serve também, às nossas ânsias de distracção em retrato de equiparação, Garrett surgindo como corolário moralista deste feitio da nossa alarvidade e astúcia.

Uma tradição nacional  
Público, 28/02/2016
Rui Ramos diz que o PS, o Bloco e o PC não se definem pela sua preocupação com “os mais desfavorecidos”, mas por tentarem fazer dos “dependentes do Estado” a sua “base de apoio”. Ora esta acusação, além de ser ambígua, foi até agora – e com toda a razão – dirigida aos três partidos do chamado “arco de governação”, que dominaram o regime e as benesses que dele podiam derivar desde o “25 de Novembro”. O PC está hoje reduzido a algumas fortalezas no Alentejo e aos sindicatos dos serviços públicos; e o Bloco, coitado, não manda seriamente em coisa nenhuma. Mas não deixa de ser curioso que Rui Ramos, um historiador, se preocupe com as clientelas da esquerda, seguindo a mais velha tradição política portuguesa. É como se voltasse um filme a preto e branco que já vimos muitas vezes.
Desde a consolidação da monarquia liberal que o jornalismo e a literatura bramiram contra a compra do eleitorado por “favores” do governo, empregos, dinheiro e privilégios. Desde Herculano e Júlio Dinis, que sempre se esquece, até Ramalho, Eça, Fialho e, claro, os “neogarrettianos”, não houve cão nem gato que não condenasse os partidos por se alimentarem de “dependentes do Estado”. Os milhares de páginas que se escreveram contra esta ficção ou, se quiserem, contra esta fraude constituem a mais longa e coerente tradição política portuguesa. A República com a sua violência e o seu compadrio confirmou com vigor tudo aquilo em que o país piamente acreditava. E Salazar, ao contrário da lenda, assentou a sua ditadura num apetite geral de um “pulso forte” que servisse a “nação” e desfizesse as clientelas.
Curiosamente a nova democracia de 1976 levou muito pouco tempo a reconstituir a tradição do liberalismo e da República. Por um lado, apareceram espontaneamente à volta das câmaras grupos de interesse ou de pressão, que já existiam no terreno ou se criaram por força das necessidades da época, e esses grupos acabaram por se ligar aos partidos políticos, às vezes de maneiras sem explicação ou confissão. E, por outro lado, a televisão e os jornais começaram imediatamente a imprecar contra a imoralidade dos partidos na administração central e local: as “bases” do PSD e os “boys” do PS destaparam o formigueiro e o que se viu não foi bonito. Hoje, atribuir clientelas de Estado ao Bloco e ao PC não parece uma grande contribuição para o debate político. O pior são as consequências naturais dessa premissa.

O discurso do Brasileiro Seabra:

-- Isso não é assim -- atalhou o Brasileiro, tomando uns ares catedráticos, cheios de gravidade. -- Vossemecê é ignorante e por isso é que fala desse modo.
-- Eu digo... -- tartamudeou, intimidado, o lavrador.
-- Pois sim: mas não deve meter-se a falar em coisas que não entende. As estradas não servem para nada! As estradas são meios de comunicação e... facilitam o... o... o tráfego comercial e aumentam por conseguinte a riqueza das nações... Porque o trabalho representa um capital... sim, senhores, mas... mas um capital... sim... um capital morto... quero dizer... um capital que... não vive... Quero dizer... sim... suponhamos: o crédito por exemplo... O crédito... sim... aí está o crédito... Pois que é o crédito?... O crédito é... é o crédito... depende de muitas coisas... Por outra, suponhamos... se nós não tivéssemos estradas... Uma suposição... Partamos de um princípio. A produção excede o consumo... Quero mesmo que o consumo exceda a produção... Sim, quero mesmo isso... Muito bem... Daí que resulta? Está claro que um desequilíbrio. E depois?... Depois, boas noites... Não havendo estradas... Aí está que se diz por aí que a livre exportação, que tal, que sim senhores... mais isto, mais aquilo... Pois não é assim. É preciso que se atenda também às condições económicas dos povos. Sim... eu digo: O comércio deve ser livre... Muito bem... Em termos já se sabe... Mas... o comércio livre... a livre troca... entendamo-nos... É preciso clareza de ideias... Quando eu digo que... Ora suponhamos... suponhamos que não havia estradas... Os transportes eram mais difíceis e portanto mais caros... E, se, além disso, os géneros fossem escassos, e... Diz vossemecê: para que servem as estradas? Ora diga-me uma coisa, Sr. Manuel: suponhamos que... os impostos indirectos... não precisamos de ir mais longe... os impostos indirectos... Sempre queria que me dissesse o que havia de fazer?
-- Impostos, Deus me livre deles! -- murmurou o lavrador, cujos instintos trepidaram à palavra «impostos».
-- Isso também não é assim... Deus me livre! Não se diz «Deus me livre», porque a riqueza... a riqueza... sim, a riqueza não está na terra... isto é, a riqueza está na terra... mas é preciso o capital para a exploração... Percebe?... Ou... suponhamos... por exemplo... Não... vamos cá por outro lado... Há um défice num orçamento... desce o preço das inscrições... Ora bem... Mas... suponhamos que há boas estradas, etc... A riqueza tende a aumentar... e... e... Enfim, lá que as estradas são úteis, isso é que não tem questão.
Toda esta lengalenga económica foi escutada pelo auditório com profunda atenção.
O Brasileiro, assinante e leitor infalível de vários periódicos políticos, conseguira, à força de leitura, fixar na memória certas frases do artigo de fundo, e acabara por convencer-se de que possuía grandes noções de ciência política. Em ocasiões como esta dava uma sacudidela ao intelecto, e aquelas frases, como os variados objectos do interior de um caleidoscópio, tomavam uma disposição tal ou qual, mais ou menos regular, e assim lhe saía uma dissertação, como essa que viram. Em permanente indigestão económica vivia este portento. A doença não é das mais raras entre políticos.

E um cheirinho conclusivo moralista do nobre Garrett, liberal segundo o ideário rousseauniano, sem tanta fé, é certo, na sanidade popular que apregoa. O povo, desde sempre enleado numa marginalidade cultural própria de políticas educativas elitistas, que o tornavam submisso, adquire repentinamente a convicção da sua liberdade e dos seus direitos que as políticas da esquerda lhe fazem sentir, mas fomentadas no ódio pelos da governação, tornando-se barulhento e agora só reivindicativo, sem se deixar intimidar pelos brasileiros com as suas luzes entarameladas, dos tempos da “Morgadinha”. E o mulherio é atrevido e beijoqueiro, numa de promiscuidade saloia, que a televisão grotescamente nos faz chegar:

«Em Portugal não há religião de nenhuma espécie. Até a sua falsa sombra, que é a hipocrisia, desapareceu. Ficou o materialismo estúpido, alvar, ignorante, devasso e desfaçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cínica no meio das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito...
Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor tempo, apesar desta paralisia que lhe pasma a vida da alma na mais nobre parte de seu corpo. Mas uma nação pequena, é impossível; há-de morrer.
Mais dez anos de barões e de regímen da matéria, e infalivelmente nos foge deste corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espírito. Creio isto firmemente.
Mas ainda espero melhor todavia, porque o povo, o povo está são: os corruptos somos nós os que cuidamos saber e ignoramos tudo.»

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