segunda-feira, 14 de março de 2016

Amadorismo



A crónica de Alberto Gonçalves sobre a eleição de Marcelo Rebelo de Sousa dá-nos o retrato perfeito de uma tomada de posse do novo PR, que se pretende um ser carismático e aliciador de consensos. Um ser que se pretende menos convencional nas formalidades protocolares, tal o papa Francisco, em aparente modéstia na indiferença pelas normas do “savoir faire”, o que é falso em termos de humildade, ao denotar antes um pretensiosismo de independência e originalidade distanciadoras, que demonstram, quanto a mim, uma tola vaidade de ser diferente. De facto, se fosse assim modesto, começaria por não concorrer ao cargo que o alcandora no posto superior da nação. Como, de resto, o papa Francisco da bondade universal que vemos continuamente abençoando as multidões que nele se revêem, na familiaridade dos acolhimentos. Mas o mundo está cada vez mais instável e cruel, e o mesmo se passa neste nosso de pechisbeque, e, apesar de tudo, desejado por todos os que o disputam.
Mas temos que convir que o posto de PR é difícil, num país de uma população não muito educada e numa governação atravancada de dificuldades e onde o tal cargo de PR tem uma dimensão de reduzida eficácia, ao que se sabe, servindo sobretudo como figura de motejo ou de indiferença, já, bem me lembro, nos meus tempos juvenis, onde, todavia, o comedimento verbal era superior ao de agora. Um país espezinhado no seu passado, mas igualmente no seu presente, os do governo aparentando certezas positivas, os da oposição demonstrando certezas negativas. Não será fácil para Marcelo, que se afirma de todos, numa expansão de universal simpatia. Mas, segundo escreve Alberto Gonçalves, a esquerda não o apoiou, apesar da dádiva desse amor universal de Marcelo.
É que nem o próprio Cristo nos amou a todos, nem mesmo o Jeová, bastamente se exemplificou na Bíblia, há momentos de decisão que não admitem ambiguidades. A própria Florbela o denunciou, ao referir as suas ânsias de conquista, embora, é certo, o seu amor tivesse conotações de sensualidade, que não se presumem na simpatia universal do presidente Marcelo:
«Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente…
Amar! Amar! E não amar ninguém!»
Com efeito, quem diz que a todos ama, provavelmente não amará ninguém com muito afinco. A não ser, claro, a si próprio.

Foi para isto que se elegeu Marcelo?
Alberto Gonçalves
DN,13/3/16
Até ver, o único momento apreciável da presidência de Marcelo revelou-se logo após a tomada de posse, quando as bancadas parlamentares do PCP e do BE recusaram aplaudir-lhe o juramento. Não foi grande demonstração da cultura democrática alegadamente adquirida após a alegada queda do alegado muro. Mas a aversão da extrema-esquerda é sempre uma medalha ou, no mínimo, uma carta de recomendação.
Infelizmente, os sinais positivos ficaram-se por aí. O dr. Costa, apetrechado de uma procuração que não me lembro de lhe ter passado, afirmou que "todos nos podemos reconhecer" nas palavras de Marcelo. O dr. Ferro dissertou acerca de um chefe de Estado "sintonizado com o país" e "promotor das convergências de que Portugal tanto necessita". O dr. César dos Açores garantiu que todo o PS "teve prazer" em aplaudir Marcelo. E as televisões encheram-se de "personalidades" maiores e menores, todas eufóricas, todas empenhadas em exaltar o novo presidente por comparação com o velho. O "politólogo" José Adelino Maltez, uma esperança adiada do pensamento pátrio, resumiu a coisa: "Marcelo é uma espécie de anti-Cavaco, psicologicamente falando".
Psicologicamente falando, isto não me caiu bem. Os encómios de destacadas calamidades do regime "colam" Marcelo aos mais repugnantes vícios do dito e, por si só, não auguram maravilhas. Caberia a Marcelo desmenti-los. Para cúmulo, Marcelo aparentemente decidiu confirmá-los: em pouquíssimos dias, o "anti-Cavaco" acumulou uma sucessão de embaraços que só uma criança, ou o nível médio da opinião publicada, tomaria por aquilo que o representativo Pedro Santana Lopes chama "boa onda" e "bom astral".
O embaraço começa no discurso inaugural, que o Público considerou ter dito "tudo o que é essencial". De facto, não disse nada, excepto um caldo de lugares-comuns e fezadas absurdas capazes de envergonhar quem ainda consegue sentir vergonha. Marcelo exortou-nos a afirmar o "amor-próprio" e exaltou a "dignidade da pessoa humana" (distinta, suponho, da pessoa desumana incapaz de se deleitar com lirismos assim). Marcelo prometeu guardar os "valores" da Constituição e ajudar a construir "uma comunidade convivial e solidária". Marcelo saudou a emigração que "vive a criar Portugais" e o mar, o fatal mar que é "prioridade nacional" e "vocação universal" (por infelicidade, esqueceu-se do sol). Marcelo convocou, mediante citação, Torga e Lobo Antunes. Marcelo deseja conciliar a "criatividade da iniciativa privada" com o "relevante sector social". Sobretudo Marcelo quer "unidade, pacificação e reforçada coesão nacional", no pressuposto de que as divergências políticas e as visões conflituais do mundo são meros tiques nervosos, resolúveis entre um almoço e dois abraços. Marcelo, em suma, sonha com o tipo de beatitude descrito pelas candidatas a Miss Universo. Para um simples presidente, parece-me ambição excessiva. E embaraço idem.
Desgraçadamente, a ambição não se ficou por aí. O embaraço também não. Depois de um espectáculo com cançonetistas ligeiros, a que assistiu de manta e que provou a proximidade do presidente dos "afectos" ao povo (no sentido, presumo, em que o povo pagou a festarola), Marcelo correu a pendurar no site da presidência umas pertinentes divagações sobre como "nós, portugueses, continuamos a minimizar o que valemos". Pelos vistos, "valemos muito mais do que pensamos ou dizemos", na medida em que "o nosso génio - o que nos distingue dos demais - é a indomável inquietação criadora que preside à nossa vocação ecuménica". Fomos "grandes no passado". Seremos "grandes no futuro". O presente, repleto de inépcia, prepotência, falências, mendicidade e prosápia, é que é uma chatice, de resto insusceptível de integrar as preocupações do estadista que se preza.
Podíamos, é verdade, atribuir a arrepiante vacuidade acima aos entusiasmos do primeiro dia. Marcelo não permitiu. No segundo dia, chamou a António Guterres "o vulto mais brilhante da sua geração", sem que compreendêssemos se pretendia elogiar o ex-governante ou caluniar a geração. Ao terceiro dia no cargo, Marcelo subiu ao Porto, onde o deixam "ser saudavelmente rude", para entregar umas rimas de rap aos inquilinos dos bairros camarários: "Ouvi e gostei deste hip hop do Norte, Portugal será mais forte / Aqui no Bairro do Cerco e onde está a sua gente, estará sempre o Presidente." Ao quarto dia, anunciou uma "aplicação" para smartphones, talvez do tipo Angry Birds. Nem ouso imaginar o que fará ao quinto, sexto e sétimo dias, que bastaram para Deus criar a Terra e sobrarão para Marcelo se transformar num consumado artista de rua, com números de dança, trapézio e monociclo.
A estratégia, que tenta reproduzir o sucesso da campanha, é clara: ao abdicar de escolhas "difíceis" numa situação dificílima para o país, leia-se ao evitar ferir os sentimentos da esquerda, Marcelo toma por adquirido o apoio dos que o elegeram e procura conquistar os que o detestam. Mal termine a aclamação pasmada em curso, arrisca-se a perder uns e a falhar os outros. Mesmo descontada a retórica dos "consensos", um presidente da República não pode ser um penduricalho sorridente. Se for, pobre República.

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