A crónica de Alberto Gonçalves
sobre a eleição de Marcelo Rebelo de Sousa dá-nos o retrato perfeito de uma
tomada de posse do novo PR, que se pretende um ser carismático e aliciador de
consensos. Um ser que se pretende menos convencional nas formalidades protocolares,
tal o papa Francisco, em aparente modéstia na indiferença pelas normas do “savoir
faire”, o que é falso em termos de humildade, ao denotar antes um pretensiosismo
de independência e originalidade distanciadoras, que demonstram, quanto a mim,
uma tola vaidade de ser diferente. De facto, se fosse assim modesto, começaria
por não concorrer ao cargo que o alcandora no posto superior da nação. Como, de
resto, o papa Francisco da bondade universal que vemos continuamente abençoando
as multidões que nele se revêem, na familiaridade dos acolhimentos. Mas o mundo
está cada vez mais instável e cruel, e o mesmo se passa neste nosso de
pechisbeque, e, apesar de tudo, desejado por todos os que o disputam.
Mas temos que convir que o
posto de PR é difícil, num país de uma população não muito educada e numa
governação atravancada de dificuldades e onde o tal cargo de PR tem uma
dimensão de reduzida eficácia, ao que se sabe, servindo sobretudo como figura
de motejo ou de indiferença, já, bem me lembro, nos meus tempos juvenis, onde,
todavia, o comedimento verbal era superior ao de agora. Um país espezinhado no
seu passado, mas igualmente no seu presente, os do governo aparentando certezas
positivas, os da oposição demonstrando certezas negativas. Não será fácil para
Marcelo, que se afirma de todos, numa expansão de universal simpatia. Mas, segundo
escreve Alberto Gonçalves, a esquerda não o apoiou, apesar da dádiva desse amor
universal de Marcelo.
É que nem o próprio Cristo nos
amou a todos, nem mesmo o Jeová, bastamente se exemplificou na Bíblia, há
momentos de decisão que não admitem ambiguidades. A própria Florbela o
denunciou, ao referir as suas ânsias de conquista, embora, é certo, o seu amor
tivesse conotações de sensualidade, que não se presumem na simpatia universal
do presidente Marcelo:
«Eu quero amar, amar
perdidamente!
Amar só por amar:
Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o
Outro e toda a gente…
Amar! Amar! E não amar
ninguém!»
Com efeito, quem diz que a todos ama, provavelmente
não amará ninguém com muito afinco. A não ser, claro, a si próprio.
Foi para isto que se elegeu
Marcelo?
Alberto Gonçalves
DN,13/3/16
Até
ver, o único momento apreciável da presidência de Marcelo revelou-se logo após
a tomada de posse, quando as bancadas parlamentares do PCP e do BE recusaram
aplaudir-lhe o juramento. Não foi grande demonstração da cultura
democrática alegadamente adquirida após a alegada queda do alegado muro. Mas a
aversão da extrema-esquerda é sempre uma medalha ou, no mínimo, uma carta de
recomendação.
Infelizmente,
os sinais positivos ficaram-se por aí. O dr. Costa, apetrechado de uma
procuração que não me lembro de lhe ter passado, afirmou que "todos nos
podemos reconhecer" nas palavras de Marcelo. O dr. Ferro dissertou
acerca de um chefe de Estado "sintonizado com o país" e
"promotor das convergências de que Portugal tanto necessita". O dr.
César dos Açores garantiu que todo o PS "teve prazer" em aplaudir
Marcelo. E as televisões encheram-se de "personalidades" maiores e
menores, todas eufóricas, todas empenhadas em exaltar o novo presidente por
comparação com o velho. O "politólogo" José Adelino Maltez, uma
esperança adiada do pensamento pátrio, resumiu a coisa: "Marcelo é uma
espécie de anti-Cavaco, psicologicamente falando".
Psicologicamente
falando, isto não me caiu bem. Os encómios de destacadas calamidades do regime
"colam" Marcelo aos mais repugnantes vícios do dito e, por si só, não
auguram maravilhas. Caberia a Marcelo desmenti-los. Para cúmulo, Marcelo aparentemente
decidiu confirmá-los: em pouquíssimos dias, o "anti-Cavaco" acumulou
uma sucessão de embaraços que só uma criança, ou o nível médio da opinião
publicada, tomaria por aquilo que o representativo Pedro Santana Lopes chama
"boa onda" e "bom astral".
O
embaraço começa no discurso inaugural, que o Público considerou ter dito
"tudo o que é essencial". De facto, não disse nada, excepto um
caldo de lugares-comuns e fezadas absurdas capazes de envergonhar quem ainda
consegue sentir vergonha. Marcelo exortou-nos a afirmar o
"amor-próprio" e exaltou a "dignidade da pessoa humana"
(distinta, suponho, da pessoa desumana incapaz de se deleitar com lirismos
assim). Marcelo prometeu guardar os "valores" da Constituição e
ajudar a construir "uma comunidade convivial e solidária". Marcelo
saudou a emigração que "vive a criar Portugais" e o mar, o fatal mar
que é "prioridade nacional" e "vocação universal" (por
infelicidade, esqueceu-se do sol). Marcelo convocou, mediante citação, Torga e
Lobo Antunes. Marcelo deseja conciliar a "criatividade da iniciativa
privada" com o "relevante sector social". Sobretudo Marcelo quer
"unidade, pacificação e reforçada coesão nacional", no pressuposto de
que as divergências políticas e as visões conflituais do mundo são meros tiques
nervosos, resolúveis entre um almoço e dois abraços. Marcelo, em suma, sonha
com o tipo de beatitude descrito pelas candidatas a Miss Universo. Para um
simples presidente, parece-me ambição excessiva. E embaraço idem.
Desgraçadamente,
a ambição não se ficou por aí. O embaraço também não. Depois de um espectáculo
com cançonetistas ligeiros, a que assistiu de manta e que provou a proximidade
do presidente dos "afectos" ao povo (no sentido, presumo, em que o
povo pagou a festarola), Marcelo correu a pendurar no site da presidência umas
pertinentes divagações sobre como "nós, portugueses, continuamos a
minimizar o que valemos". Pelos vistos, "valemos muito mais do que
pensamos ou dizemos", na medida em que "o nosso génio - o que nos
distingue dos demais - é a indomável inquietação criadora que preside à nossa
vocação ecuménica". Fomos "grandes no passado". Seremos
"grandes no futuro". O presente, repleto de inépcia, prepotência,
falências, mendicidade e prosápia, é que é uma chatice, de resto insusceptível
de integrar as preocupações do estadista que se preza.
Podíamos,
é verdade, atribuir a arrepiante vacuidade acima aos entusiasmos do primeiro
dia. Marcelo não permitiu. No segundo dia, chamou a António Guterres "o
vulto mais brilhante da sua geração", sem que compreendêssemos se
pretendia elogiar o ex-governante ou caluniar a geração. Ao terceiro dia no
cargo, Marcelo subiu ao Porto, onde o deixam "ser saudavelmente
rude", para entregar umas rimas de rap aos inquilinos dos bairros
camarários: "Ouvi e gostei deste hip hop do Norte, Portugal será mais
forte / Aqui no Bairro do Cerco e onde está a sua gente, estará sempre o
Presidente." Ao quarto dia, anunciou uma "aplicação" para
smartphones, talvez do tipo Angry Birds. Nem ouso imaginar o que fará ao
quinto, sexto e sétimo dias, que bastaram para Deus criar a Terra e sobrarão
para Marcelo se transformar num consumado artista de rua, com números de dança,
trapézio e monociclo.
A
estratégia, que tenta reproduzir o sucesso da campanha, é clara: ao abdicar de
escolhas "difíceis" numa situação dificílima para o país, leia-se ao
evitar ferir os sentimentos da esquerda, Marcelo toma por adquirido o apoio dos
que o elegeram e procura conquistar os que o detestam. Mal termine a aclamação
pasmada em curso, arrisca-se a perder uns e a falhar os outros. Mesmo
descontada a retórica dos "consensos", um presidente da República não
pode ser um penduricalho sorridente. Se for, pobre República.
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