quinta-feira, 17 de março de 2016

Um livro fabuloso




«Pai Nosso», de Clara Ferreira Alves.



 Chamar-lhe-ia epopeia / reportagem / policial / crónica/ tragédia clássica … do século XXI. Uma epopeia: Sem verso. Sem rima. Mas a frase tantas vezes estilhaçada e pontilhista, tantas vezes pontuada com frases ou versos como refrão simbólico - implica o verso de uma epopeia moderna, de acção ziguezagueante, ora de avanços ora de recuos – play, rewind, fast forward - de espaços múltiplos, Iraque, e as demais referências, de um Próximo e Médio Oriente a desfazer-se. O ponto de vista conceituoso acompanhando o narrado. O herói – uma heroína – eu diria duas, contando com a narradora-autora Beatriz, participante/receptora da confidência da heroína- Marie - e tantos outros heróis sui generis, com ou sem nobreza, mas com igual coragem dos que enfrentam o clima moderno de confronto, de ódio, de terror ou o provocam deliberadamente, tantos deles por fanatismo fundamentalista, ou por pura irracionalidade e amoralidade que definem uma actualidade de estertor – caso de Tariq um falso amigo, vivendo de expedientes, a preparar a sua participação futura nos actos de terrorismo inesperados. O deus da Bíblia ou do Alcorão que vai perpassando, da religiosidade e do medo e do fanatismo e da vingança representa os deuses humanizados e sempre presentes nas acções de batalha ou de reforço da acção humana das epopeias passadas. As frequentes invocações - não, é certo, da inspiração épica para o poeta, mas da súplica, do medo ou do arrependimento ou do ódio das personagens que narram a sua história ou alheia – ao Pai Nosso que estais no Céu, ao “Adonai” hebraico – lembram a consciência moderna da posição de fragilidade e subalternidade humanas na relação com o poder supremo, (de maior naturalidade na convicção clássica greco-latina, de pura imitação céptica na épica camoniana), que a situação de caos favorece. O espaço mediterrânico, com o Oriente Próximo, prolongado no Médio Oriente como palco principal, em viagens - terrestres, aéreas – que abrangem Lisboa e Londres e Paris e Norte de África, e Estados Unidos e muitas idas e retornos, lembrando Tróia e Ítaca, e o Lácio e os percursos dos heróis pelo Mediterrâneo; ou o percurso de ida inaugural pelo Atlântico e o Índico da epopeia lusíada - com direito também a recompensa na volta, como a que Odisseus teve na ilha de Calipso, ou Eneias na pausa de Cartago, junto da condenada Dido - em «Pai Nosso» sem direito a recompensa, que é de moderna intriga internacional policial, em suspense, a acção narrada. É, pois, a personagem principal, “Marie”, o “Fantasma”, fotógrafa galardoada de casos chocantes da guerra, que conta a sua história - como também o fizeram os heróis clássicos, incluindo o Gama,(em natural imitação) – à narradora/autora - espécie de alter-ego - na consciência do mundo e da história, no gosto de observação em acção de hediondez humana e sofrimento sem tréguas, de uma vida cada vez mais sem sentido, na irracionalidade dos que comandam os destinos do mundo, apelativa da irracionalidade dos que por ódio, vingança ou fanatismo semeiam o caos nesse mundo.
Uma história dos nossos tempos que a narradora Beatriz, estudiosa do Médio Oriente, é instigada a contar pelo editor, parco em recompensa, mas entusiasmado na ideia da pesquisa sobre o caso do “Fantasma” – Marie, a portuguesa fotógrafa nesse Iraque, (onde a procura Beatriz) - implicada num crime de terrorismo que não cometeu, inocente porque confiou a sua casa de Lisboa a uma suposta amiga americana, aparecida nesse espaço infernal de guerra e destruição e exiguidade de meios e terror – Bagdad - com personagens masculinas movendo-se estranhas ou protectoras, personagens de paixões também a quem Marie se entrega, ou a tal personagem feminina – Marci - tão meiga e insinuante, embora revoltada, não contra o Islão mas contra a religião católica – indício de futura participação terrorista, (em aliança com Tariq) - a quem confia, pois, a sua casa de Lisboa e apresenta aos seus amigos ricos de Lisboa – os Allen Carneiro, que ama deveras, e sobretudo Beatriz, uma menina rica e naturalmente afectuosa e generosa, casada com um diplomata – futuro ministro, tão semelhante a tantos dos nossos ministros ambiciosos – vivendo na luxuosa casa da Quinta da Marinha, com o pai banqueiro, a banal madrasta brasileira, o marido Eduardo, os filhos a estudar fora.
Uma história arrastada, na curiosidade de quem muito leu e viajou e muito conhece, e muito cita do palco extenso que percorreu Marie e a narradora Beatriz da introdução e da conclusão do enredo, pretexto para ir mostrando a extraordinária amplitude dos seus conhecimentos da política, da história, da geografia, da psicologia humana. Retrato de Clara Ferreira Alves, naturalmente. Infatigável observadora, indiferente a um discurso perfeitamente coerente, que exige retornos na leitura para se entender por vezes o fio da meada, ou quem é o quem de quem se trata, no enigmático do discurso em suspense, recheado de informação ou de conceito, ou de ironia, ou de frases em refrão. conotando sentimentos ou simbolizando intenções. E o final inesperado com a morte dos amigos portugueses de Maria, pela tal amiga americana a quem confiou a sua casa de Lisboa, a qual se fez explodir, matando a família e as pessoas em redor, incluindo os dois guarda-costas.
Uma obra brutal do nosso tempo brutal, uma obra poderosa, feita com muita arte, quer ao nível da escrita quer ao nível do conceito, quer ao nível do enredo e da sensibilidade. Creio que marca bem a nossa época, como peça indispensável nela - pese embora a megalomania de um improvável caso português. Pelo menos, assim o espero, o terrorismo entre nós centrado noutras esferas de actuação.

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