«Pai
Nosso», de Clara Ferreira Alves.
Chamar-lhe-ia epopeia / reportagem / policial
/ crónica/ tragédia clássica … do século XXI. Uma epopeia: Sem verso. Sem
rima. Mas a frase tantas vezes estilhaçada e pontilhista, tantas vezes pontuada
com frases ou versos como refrão simbólico - implica o verso de uma epopeia moderna,
de acção ziguezagueante, ora de avanços ora de recuos – play, rewind, fast forward
- de espaços múltiplos, Iraque, e as demais referências, de um Próximo e Médio
Oriente a desfazer-se. O ponto de vista conceituoso acompanhando o narrado. O
herói – uma heroína – eu diria duas, contando com a narradora-autora Beatriz,
participante/receptora da confidência da heroína- Marie - e tantos outros
heróis sui generis, com ou sem nobreza, mas com igual coragem dos que enfrentam
o clima moderno de confronto, de ódio, de terror ou o provocam deliberadamente,
tantos deles por fanatismo fundamentalista, ou por pura irracionalidade e
amoralidade que definem uma actualidade de estertor – caso de Tariq um falso
amigo, vivendo de expedientes, a preparar a sua participação futura nos actos
de terrorismo inesperados. O deus da Bíblia ou do Alcorão que vai
perpassando, da religiosidade e do medo e do fanatismo e da vingança representa
os deuses humanizados e sempre presentes nas acções de batalha ou de reforço da
acção humana das epopeias passadas. As frequentes invocações - não, é
certo, da inspiração épica para o poeta, mas da súplica, do medo ou do
arrependimento ou do ódio das personagens que narram a sua história ou alheia –
ao Pai Nosso que estais no Céu, ao “Adonai” hebraico – lembram a consciência
moderna da posição de fragilidade e subalternidade humanas na relação com o poder supremo, (de
maior naturalidade na convicção clássica greco-latina, de pura imitação céptica
na épica camoniana), que a situação de caos favorece. O espaço mediterrânico,
com o Oriente Próximo, prolongado no Médio Oriente como palco principal, em viagens
- terrestres, aéreas – que abrangem Lisboa e Londres e Paris e Norte de África,
e Estados Unidos e muitas idas e retornos, lembrando Tróia e Ítaca, e o Lácio e os percursos dos
heróis pelo Mediterrâneo; ou o percurso de ida inaugural pelo Atlântico e o
Índico da epopeia lusíada - com direito também a recompensa na volta, como a
que Odisseus teve na ilha de Calipso, ou Eneias na pausa de Cartago, junto da
condenada Dido - em «Pai Nosso» sem direito a recompensa, que é de moderna
intriga internacional policial, em suspense, a acção narrada. É, pois, a
personagem principal, “Marie”, o “Fantasma”, fotógrafa galardoada de
casos chocantes da guerra, que conta a sua história - como também o fizeram os
heróis clássicos, incluindo o Gama,(em natural imitação) – à narradora/autora -
espécie de alter-ego - na consciência do mundo e da história, no gosto de
observação em acção de hediondez humana e sofrimento sem tréguas, de uma vida
cada vez mais sem sentido, na irracionalidade dos que comandam os destinos do
mundo, apelativa da irracionalidade dos que por ódio, vingança ou fanatismo
semeiam o caos nesse mundo.
Uma história dos nossos tempos que a narradora
Beatriz, estudiosa do Médio Oriente, é instigada a contar pelo editor, parco em
recompensa, mas entusiasmado na ideia da pesquisa sobre o caso do “Fantasma”
– Marie, a portuguesa fotógrafa nesse Iraque, (onde a procura Beatriz) - implicada
num crime de terrorismo que não cometeu, inocente porque confiou a sua casa de
Lisboa a uma suposta amiga americana, aparecida nesse espaço infernal de guerra
e destruição e exiguidade de meios e terror – Bagdad - com personagens
masculinas movendo-se estranhas ou protectoras, personagens de paixões também a
quem Marie se entrega, ou a tal personagem feminina – Marci - tão meiga e
insinuante, embora revoltada, não contra o Islão mas contra a religião católica
– indício de futura participação terrorista, (em aliança com Tariq) - a quem
confia, pois, a sua casa de Lisboa e apresenta aos seus amigos ricos de Lisboa – os Allen
Carneiro, que ama deveras, e sobretudo Beatriz, uma menina rica e naturalmente
afectuosa e generosa, casada com um diplomata – futuro ministro, tão semelhante
a tantos dos nossos ministros ambiciosos – vivendo na luxuosa casa da Quinta da
Marinha, com o pai banqueiro, a banal madrasta brasileira, o marido Eduardo, os
filhos a estudar fora.
Uma história arrastada, na curiosidade de quem muito
leu e viajou e muito conhece, e muito cita do palco extenso que percorreu Marie
e a narradora Beatriz da introdução e da conclusão do enredo, pretexto para ir
mostrando a extraordinária amplitude dos seus conhecimentos da política, da
história, da geografia, da psicologia humana. Retrato de Clara Ferreira Alves,
naturalmente. Infatigável observadora, indiferente a um discurso perfeitamente
coerente, que exige retornos na leitura para se entender por vezes o fio da
meada, ou quem é o quem de quem se trata, no enigmático do discurso em
suspense, recheado de informação ou de conceito, ou de ironia, ou de frases em refrão. conotando
sentimentos ou simbolizando intenções. E o final inesperado com a morte dos
amigos portugueses de Maria, pela tal amiga americana a quem confiou a sua casa
de Lisboa, a qual se fez explodir, matando a família e as pessoas em redor,
incluindo os dois guarda-costas.
Uma obra brutal do nosso tempo brutal, uma obra
poderosa, feita com muita arte, quer ao nível da escrita quer ao nível do
conceito, quer ao nível do enredo e da sensibilidade. Creio que marca bem a
nossa época, como peça indispensável nela - pese embora a megalomania de um improvável caso
português. Pelo menos, assim o espero, o terrorismo entre nós centrado noutras esferas de actuação.
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