segunda-feira, 18 de maio de 2009

A crença no milagre

Falámos sobre rituais. Rituais religiosos que a nossa parcimónia de entendimento rejeita, em rebeldia que vem dos primórdios da nossa adolescência. Complementámos, é certo, os nossos protestos, com referências eruditas, recordando a discussão altissonante entre o padre Amaro e o cónego Dias, a respeito do tipo de reverência à cruz - simples ou profunda - na sacristia e durante a missa - banalidade que, pela voz sardónica de Eça de Queirós, vem esmiuçada em vários doutores da Igreja, segundo a opinião do padre Amaro expressa triunfalmente perante a sua amada Ameliazinha, o cónego Dias em knock-out argumentativo.
Foi a propósito das vozes de falsete com que a maioria dos padres entoa a sua missa, pela rádio, aos domingos, e não só.
Achámos que esses rituais, formalistas e teatrais, se desviam da simplicidade que deveria presidir à utilização de uma qualquer religião, e logo se confrontou o nosso catolicismo com o protestantismo, mais concordante este com a pureza do Cristianismo, na simplicidade, harmonia e compreensão do acto praticado, pelo conhecimento da Bíblia e dos Evangelhos, que não se exige tanto entre nós.
Já, de resto, Antero explicara, nas “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”, que uma das causas dessa decadência fora, precisamente, a transformação da organização católica, pelo Concílio de Trento - o protestantismo tendo seguido a Reforma, o catolicismo dos povos peninsulares tendo seguido a Contra-Reforma que os fez sujeitarem-se ao seu carácter “dogmático, autoritário, despersonalizante, desinformado, hermético, fechado ao movimento cultural dos outros povos europeus”.
Nós precisamos de procissões com crianças mascaradas de anjinhos, que sirvam para fortalecer visualmente a convicção do povo sobre as realidades ou irrealidades esotéricas, anuladas as leituras que poderiam fortalecer mais racionalmente a nossa fé. E daí, as vozes cantadas, os gestos medidos, a teatralidade, a falta de naturalidade e de simplicidade com que os sacerdotes impõem os seus dogmas aos seus fiéis – rebanho obediente, a quem o milagre sensibiliza.
A minha amiga não acredita no milagre, nem sequer no das rosas, tão expressivo de santidade, desconstruindo as notícias da história milagreira com impertinentes contraposições detectivescas.
Mas eu, mais crédula, acho que estamos todos a precisar de mais um milagre, entre os muitos que ocorreram ao longo da nossa história e não se me dava que ele sucedesse, à falta dos jazigos de petróleo definitivamente arrumados. Lembrei até que poderia assim ser considerado o da senhora que veio cá para depositar milhões na nossa banca e que se desvaneceu sem deixar rasto. Acho que foi isso porque a banca, que tem os seus próprios milagres, correu com ela, sem nos dar cavaco, por não precisar de favores alheios. Mas bem poderia partilhar.
Por isso eu insisto que nos convinha a presença da tal senhora dos milhões, mesmo maculada, e não seria para dez aeroportos de Lisboa ou cinco linhas de combóio de alta velocidade, porque não precisamos de tantos. Mas as sobras, sem milagre, não iriam cair no saco roto dos necessitados. A banca se encarregaria disso.

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