quarta-feira, 20 de maio de 2009

“Dá-se-lhe uma e promete-se-lhe outra”

Era assim que a minha prima Celeste me encorajava na tarefa de passar a ferro a roupa da família, no tempo em que eu aliava as vastas tarefas domésticas aos não menos ponderosos trabalhos da minha participação no mundo profissional. O ferro! Que ferro! “Ó menina, não te canses tanto! Dá-se-lhe uma e promete-se-lhe outra”.
No início era mais escrupulosa. Os lençóis! Dobrados em dois e passados. Depois em quatro, nova passagem, e o tempo ia escorrendo no cansaço do corpo, que pretendia fazer bem aquilo a que não estava habituado, por ter tido quem lho fizesse. Agora tenho em frente, como imagem da minha identificação, embora sem a garrafa do vício, o quadro de Degas "Les Repasseuses". Mas sou menos preocupada com os vincos da roupa. Penso nas mulheres que trabalham e que aproveitam os domingos para pôr o trabalho da casa em dia, quando não, também, durante a semana. Devem saber defender-se, contudo, reduzindo os gestos, à maneira da minha prima Celeste. Ou então, recebendo a colaboração dos maridos, neste século da compreensão e da grande solidariedade conjugal, por conquista dos nossos direitos.
Mas a minha amiga das compras e dos cafés é muito irónica, vê-se que também não alinha nas tarefas caseiras repetitivas, e nunca perde a ocasião de explodir em rebeldias contra as roupas: “Como é possível que no século XXI ainda tenhamos que passar a ferro?” O problema de deixar acumular! Não passou a roupa anterior e agora tem lá mais. Não me ofereço para ajudar, pois também sou das que acumula.
Virtuosamente lembro os casos de real infelicidade que grassam por aí, e nos envolvem, através dos sons e das imagens, mais aqueles com que topamos no dia-a-dia. “Pois é, Nosso Senhor pode castigar-nos!” – confirma, com docilidade, embora lembre, seguidamente, a sua própria dose de castigos vividos, no receio de que não se tenham esgotado ainda. Mas todos vivemos nesses receios, para isso somos humanos, de curta passagem no tempo, por consequência, e num espaço físico que transmite pouca esperança de melhoria, excepto para os habituais, que nem precisam dela, por conivência e boa convivência com o Nosso Senhor.
Referi de novo o Candide, amistosamente. Os seus trabalhos foram bem mais dolorosos do que os nossos, embora com pequenas abertas, e nenhum deles referia o ferro da roupa, prova de que outros ferros foram, para ele, de efeito mais doloroso.
Quanto a nós, mulheres que passam, temos sempre o recurso da minha prima Celeste: “Dá-se-lhe uma e promete-se-lhe outra”.
Afinal, é também esse o recurso do nosso funcionamento a tempo inteiro, como nação de intermitências de actuações e adiamentos de conclusões. Com vincos, atrapalhadamente.

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