domingo, 24 de maio de 2009

Um texto antigo de um livro actual

O texto “Obra de Bénard da Costa” de Manuel A. Bernardo postado no “PortugalClub” e evocando dados do biografado menos honrosos, mereceu, entre outros comentários, o de J. Pires, frontal e objectivo, conquanto tolerante e justificativo dos desmandos de uma revolução folhetinesca. Mereceu ainda o comentário corajoso do cap. J. Verdasca, lembrando como a história dos homens resulta, tantas vezes, de avaliações marcadas por uniteralidades, interesses, servilismos, subjectividades, cobardias, faltas de senso e de perspectiva sobre as consequências das acções por aqueles praticadas.
Vivi em África a tormenta dessa revolução folhetinesca, julgando ingenuamente que a minha voz dissidente poderia travar, juntamente com outras vozes dissidentes e corajosas, aquilo que constituiu cataclismo inesperado para quem fora feliz ou menos feliz na vida que construíra, em terra que julgava sua e para cujo desenvolvimento contribuíra com a sua participação profissional, familiar e de intervenção crítica em vários níveis da temática das suas experiências, transpostas em Jornal, mais tarde em publicação de Autor.
Do livro “Pedras de Sal”, de 1974, extraio, pois, um dos muitos textos que dessa ingenuidade resultaram, como complemento aos comentários feitos ao texto referenciado de Manuel A. Bernardo, reveladores de critérios de semelhante ponderação crítica, para, desta forma, recordar tempos passados de iguais ousadias, contra uma enxurrada palavrosa, num tempo de indefinição ainda, mas igualmente assustador, na reviravolta política em que se tornou:

“Sabujice e Traição” e Democratas
“Democratas de Moçambique em Lourenço Marques, na sua folha informativa nº 41, de 21/7, pronunciam-se a respeito do panfleto “Sabujice e Traição” de Neves Anacleto. Encimam os seus dizeres com o título “A senilidade ao serviço da reacção”. Parece que Neves Anacleto não é jovem como Democratas de Moçambique em Lourenço Marques, por isso, com a elegância própria da sua juvenilidade, chamam-lhe senil, sem entretanto lhe citarem o nome, não sei se por pudor se por juvenil falta de coragem.
Afirmam D.D.M.E.L.M.: “Apareceu à venda na cidade um panfleto que constitui o produto mais acabado da debilidade mental do seu autor, ao mesmo tempo que é também a mais recente e refinada manifestação de engenho “de” que as camadas reaccionárias foram capazes de elaborar, até este momento”.
A acentuada juvenilidade de D.D.M.E.L.M. fê-los cair numa contradiçãozita de certo peso: Parecem-me perfeitamente antagónicas as expressões “debilidade mental” e “refinada manifestação de engenho” atribuídas à mesma pessoa. Se o Dr. Neves Anacleto é um débil mental, como se saiu com tanto engenho? Se possui tanto engenho, como se lhe chama débil mental? Ficamos aguardando que o engenho refinado do Dr. Neves Anacleto lhe permita decifrar o enigma ou que a sua debilidade mental o torne indiferente a ele.
Insurgem-se seguidamente D.D.M.E.L.M. contra o “autor do panfleto mais os cérebros organizados das camadas reaccionárias” que se abalançaram a “imprimir cerca de 75000 exemplares de prospectos, ou seja, quase um prospecto por cada habitante europeu residente no distrito de Lourenço Marques, no qual fazem a apologia do obscurantismo, e cometem a mais perigosa agressão ideológica depois do 25 de Abril”.
No período acima transcrito salienta-se, além da inadmissibilidade da compra do prospecto por habitantes não europeus e até mesmo de outros distritos, o respeito com que se referem aos “cérebros organizados das camadas reaccionárias”. Entre esses inclui-se, evidentemente, o “autor do panfleto” que o fez com muito cérebro, reconhecem-no respeitosamente D.D.M.E.L.M.
Quanto à acusação de panfleto apologético do obscurantismo, eu não vi lá nada disso, confesso. Até – antes de o mandar para a família na Metrópole, no que fui imitada por imensas pessoas interessadas em alargar as possibilidades de difusão do prospecto por mais distritos, o dei a ler ao meu Salvador, para ele ficar mais ciente dos factos, pois o “Notícias” e a “Tribuna” só vêem os problemas de uma maneira e eu acho que a gente deve sempre admitir várias hipóteses para estudar bem as teses e as respectivas consequências, e foi por isso que dei a ler um dos 75000 exemplares do Dr. Neves Anacleto ao meu Salvador, para ele se esclarecer melhor e não se deixar influenciar pela hipótese e tese sem consequência do “Notícias” e “Tribuna”.
Creio ainda que D.D.M.E.L.M. se referiram com inveja aos 75000 exemplares publicados. Nesse ponto acompanho-os. Quem me dera idêntica saída para as minhas “Pedras de Sal”, mas reconheço o escasso poder de absorção do meu “sal”, resultante da generalização da juvenilidade actual.
Continua a folha nº 41: “Referimo-nos, como é evidente, àquele papelinho ridículo, criminoso, que anda a ser afanosamente distribuído, onde se incita a população a não ler nada de nada, a pedir a demissão mental de todas as ideias e a ficar indiferente ao que quer que seja que aconteça debaixo do seu nariz. Isto mesmo. Sem disfarces. É o fascismo, finalmente, sem máscara, depois do 25 de Abril”.
Se anda a ser afanosamente distribuído, não sei. Comprei o meu numa livraria, sem me afadigar. Mas cuido que nesse aspecto D.D.M.E.L.M. deveriam desculpar, faz parte do processo de politização, já com precedentes jornalísticos.
Onde se incita a população a não ler nada de nada” – devem referir-se, não vejo outra hipótese, à sugestão do Dr. Neves Anacleto de se boicotar a compra do “Notícias”, em virtude do seu actual carácter partidarista pouco esclarecido, ridículo e criminoso. Ficaram ofendidos D.D.M.E.L.M., pois pela primeira vez eles estavam a ser muito lidos (por não aparecerem os escritores anteriores, confinados, segundo consta, em “museus de cera”, a “fazer recortes”). Compreensível é este desejo dos democratas de assim se promoverem. Entretanto, admitem que a tudo o que estiver por cima ou longe do nariz dos leitores do panfleto, já estes não ficarão indiferentes. Só ao que estiver por baixo. Tão vasta influência do prospecto (logo acima e longe do nariz) constitui, pois, factor extremamente positivo daquele.
O último parágrafo não está ao alcance da minha compreensão reaccionária embora bem organizada, confesso-o modestamente: “Talvez o panfleto não tenha sido suficientemente rendoso (impossível, com tantos exemplares fabricados!) e os jornais e as revistas estejam a concorrer (indirectamente) para a sua venda (“quomodo”?) ao mesmo tempo que estão a dar um exemplo, notável, de civismo, e de desprezo (“senão” mesmo de compaixão) por um panfletário que caiu no mais degradante dos exercícios anti-democráticos: a calúnia, a estupidez, a cobardia moral, a distorsão intencional dos textos”.
Civismo e desprezo, não enxergo em que o mostraram os jornais e as revistas. Em todo o caso não o mostram D.D.M.E.L.M. com a sua folha nº 41.
Compaixão com 75000 exemplares em venda, também não acho. Cá por mim afigura-se-me pura inveja e nesse sentimento eu alinho pesarosa. No entanto, compreendo que, visto “Notícias” nem “Tribuna” publicarem os seus artigos, o Dr. Neves Anacleto andou muito bem em tentar a via do panfleto.
Calúnia em “Sabujice e Traição”? Conviria demonstrá-lo, são inadmissíveis afirmações levianas. Eu só lá encontrei de facto factos e creio que o meu Salvador também.
Estupidez? Nova contradição dos democratas, em relação ao “engenho refinado” atribuído respeitosamente ao Dr. Neves Anacleto no primeiro parágrafo.
Cobardia moral, isso nem por sombras. Pelo contrário! Pareceu-me – e a toda a gente com quem contactei a esse respeito – que o panfleto foi muito corajoso, pois se atreveu a contrariar os panfletos “Notícias”, “Tribuna” e quejandos, que são em maior quantidade, além de que diária ou semanal, não há que ter inveja por esse lado. Por outro, a sedução exercida por eles sobre as pessoas de menos coragem ou de muita rapidez de absorção doutrinária, é-nos revelada diariamente pelo “Notícias”, ansioso por mostrar resultados definitivos, e por esse motivo, maior foi ainda a coragem do advogado Neves Anacleto, opondo-se à absorção geral.
Quanto à distorsão intencional dos textos, acho demasiado erudito para o fraco valor ideológico dos mesmos textos.
Não estranhei o ataque ao Dr. Neves Anacleto. Só estranhei a demora desse ataque. D.D.M.E.L.M. estiveram sem dúvida a ganhar balanço para se manifestarem.
Nisso o pintor Quadros antecipou-se ontem na “Tribuna” onde publicou um poema revelador de profundo jeito para pintar, tal como nos seus quadros revelará possivelmente extremo jeito para poetar.
Sempre assim foi, a crítica literária em Portugal, não iríamos mudar com o 25 de Abril: o insulto baixo e soez, a sátira verrinosa e sem nível, jamais a discussão válida, com argumentos lógicos e serenos.
Neves Anacleto, que se intitula democrata (real), aponta factos e argumentos lógicos no seu panfleto, verdades incontestáveis. E porque o são, os democratas (irreais) não as contestaram. Limitaram-se ao insulto baixo e soez, que outra coisa não é acessível à sua refinada juvenilidade mental.”

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