sexta-feira, 22 de maio de 2009

Os gestos da real grandeza

Habituei-me, na crise, a recorrer aos jornais gratuitos sintéticos, suficientes para a minha informação noticiarística também sintética, e, para meu recreio espiritual q.b., apenas às suas palavras cruzadas, por ter desistido do sudoku, que me faz entrar em despesas de borrachas, incompatíveis com aquela.
Foi assim que hoje, no Jornal Global, li a notícia de ontem sobre a comparticipação dos milionários alemães na extinção da crise, com 5% dos seus rendimentos.
Achei que nós, os da crise, não merecíamos tanto, mas senti-me grata, pois tenho a certeza de que se aplanará o problema de todos da UE, com tal bondade que vai gerar outros exemplos, não tenho dúvidas nenhumas. Cá no nosso país até já ouvi dizer que o Dr. Victor Constâncio, que tanto ganha, mais os da sua equipa, vão desistir do aumento que lhes estava destinado para este ano, e deve ter sido porque também ouviram a notícia que assim recuaram, que os exemplos superiores, sobretudo os de povos superiores, geram consequências positivas sobre o aperfeiçoamento espiritual dos povos inferiores.
A notícia especifica que o dinheiro dos milionários alemães pode ter n’importe quelle proveniência, pode ter sido herdado, ganho na lotaria ou nos negócios ou mesmo ter origem desconhecida. Como cá.
Mas lá, eles são pessoas informadas, que leram os seus autores, como o Rousseau, por exemplo, que nas suas “Confessions” conta pecadilhos de roubo e acusação que o fizeram arrepender-se e penitenciar-se por longos anos. Roubo mínimo, aliás, no caso do Rousseau, um simples laço que até era para oferecer à sopeirinha da Madame Warens, acusação que serviria para chamar a atenção daquela, em jeito talvez libidinoso que o Freud não deixaria de interpretar como só ele sabia, tendo tido, embora, excelentes seguidores. O certo é que toda a vida o pobre rapaz expiou o desacato da sua juventude, que teve como consequência a expulsão da triste moça do palácio, e a futura confissão do escritor, mais de enaltecimento próprio, é verdade, do que de auto-acusação vexatória.
Por saberem que é pouco ético ganharem muito quando outros andam às sopas, é que os milionários alemães se conluiaram, portanto, para revitalizar a economia, habituados que estão a trabalhar e a cumprir no país deles.
No nosso, onde não gostamos de confessar o que se nos afigura de inconfessável, e se trabalha e se cumpre de menos, e onde as sopas aumentaram na proporção do fortalecimento dos nossos milionários, atidos às origens menos confessáveis das suas fortunas, creio que nem o exemplo confessional do Rousseau serviria de romântico e cristão suporte, e menos ainda o exemplo dos milionários alemães, de solidariedade e desapego.
Até porque a nossa idiossincrasia traduz sempre uma profunda sensibilidade e um apego desvairado às coisas do nosso amor. Como no fado.

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