sexta-feira, 29 de maio de 2009

A Justiça na balança

Fala-se muito em Justiça. Muito, em casos de justiça e sobretudo de injustiça. A Justiça está na berra. Não só ela, em todo o caso.
Mas sempre esteve. A nossa história é um repositório de injustiças sociais a cada passo sofridas, e nem sempre resolvidas com equanimidade.
Dantes, no caso das mães solteiras - um dos casos sociais muito chocantes na sociedade puritana de então - eram elas que criavam os seus filhos, arrostando com os convencionalismos ao nível familiar, social, ou mesmo de emprego e de direitos médicos.
Mas isso foi já recentemente. Porque em séculos anteriores, usava-se a roda para os enjeitados, por conta de uma sociedade ainda mais justiceira. O próprio Rousseau, por defensor que foi das normas para uma sociedade mais justa e pura, não deixou de confessar ter abandonado nos “Enfants Trouvés”, os cinco filhos que teve da humilde Thèrèse Levasseur, para que vivessem sem as privações que teriam, no caso de ser ele a criá-los.
Entretanto, e voltando à actualidade dos anos setenta, o pai do filho ilegítimo permanecia acomodado na sombra do anonimato que iria transferir ao seu filho, protegido pela tal sociedade puritana em relação à mulher, conquanto menos relativamente ao homem, a quem se aceitavam, com simpatia, os desmandos marialvescos e outros, reveladores da sua força física. Todavia, podia-se rosnar a ocultas.
Nos anos iniciais de 70, colaborei na “Página da Mulher” do Notícias, dirigida pela escritora Irene Gil, que me contava muitos dos casos que a sua pena justiceira vibrantemente condenava. Foi um desses casos, referentes à condição feminina a ganhar direitos com a evolução social, pela obrigatoriedade de perfilhação, ao anterior progenitor anónimo, que transformei no texto que segue, contido em “Prosas Alegres e Não”:

Perguntas Minuciosas
Quando se põe uma pergunta com brilho, os espíritos das pessoas em geral deslumbram-se. As casas onde se fazem mais perguntas deste género, além das escolas, onde a maior parte das vezes, por natural timidez, elas ficam sem resposta, são os tribunais onde, pelo contrário, cada pergunta recebe duas e mais respostas, todas demonstrativas da infinita variedade de interpretações humanas.
É por esse facto, certamente, que em alguns casos onde a maioria preferiria reserva, se usa de uma desmedida prolixidade, para que se admire a argúcia nos interrogatórios a que se expõem as pessoas visadas.
É, por exemplo, o caso da legitimação de filhos a que determinados papás de facto pretendem furtar-se por direito. As felizes mães – felizes porque em muito destaque então – são sujeitas a um interrogatório em forma, em sala onde entra quem quer, ouve e observa quem quer e mesmo quem não quer, embora estes últimos em minoria, dada a natural e sempre fecunda curiosidade humana.
Certas mães recusam-se a responder, entendendo que para se provar a legitimidade de um filho há pormenores escusáveis.
Mas essas mães estão erradas. Porque tudo interessa a quem interroga. Para formar a tese sobre a possível filiação da criança, factos, detalhes, atitudes, caracteres, romance naturalista em suma, tem um interesse infinito. Quantos mais argumentos encadeados sabiamente, mais o caso terá probabilidades de êxito, e a criança em questão terá então o seu pai, após a perfeita humilhação da sua mãe.
Chama-se dialéctica a esta arte feliz dos argumentos e para isso não houve outro como o nosso Padre Vieira embora sobre outros motivos, que também deram que falar. Mudam-se os tempos, e como já não temos índios nem cristãos-novos a defender, usamos a dialéctica a defender as crianças, o que é sempre uma atitude de enternecer, conquanto os meios usados o sejam menos, segundo alguns pensadores severos.
Cristo mandou que as criancinhas se chegassem a ele, é certo, mas também obstou a que a Madalena levasse pedradas. Possivelmente só o primeiro gesto de Cristo é conhecido, ignorando-se o das pedradas.
É por se ignorar isso, com certeza, que alguns interrogatórios se fazem tão minuciosamente.”

Reportando-nos ao presente, temos, actualmente, a distinção entre os pais biológicos e os pais afectivos, e vários casos se contam de injustiças flagrantes.
Salomão deu o menino das duas mães à que cedia o filho, para o não dividir ao meio – segundo ameaça fictícia do rei detective. Só essa poderia ser a mãe verdadeira.
No entanto, com tantos casos de crimes que se contam, cometidos por pais biológicos, a verdade pode bem ser alterada. Cumpre aos juízes decidir, mas porque são humanos ou ineptos, não decidem bem. E ninguém acode.

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