sábado, 16 de maio de 2009

Flores, folclore, cultura

Pôs-se o problema da cultura. Extremavam-se as opiniões. Houve quem achasse linda a festa das flores na Madeira, assistida por muitos turistas bem dispostos, houve quem objectasse que melhores ainda eram os Carnavais do Brasil ou de Veneza, como elementos de profunda criatividade ou cultura, e geradores de financiamento turístico, houve quem achasse um encanto o folclore português, e a diversidade das suas danças e cantares que opunham minhotos a algarvios, pauliteiros a fandangueiros, cantares alentejanos aos da Beira, os fados de Coimbra aos de Lisboa. Também se falou de gastronomia como elemento de cultura, factor de distinção regional. E de tauromaquia.
E os doces, os doces que tanto da tradição religiosa exemplificaram, provando como os mosteiros não eram só retiros de mortificação e dedicação à glória do Senhor, bem compensados os padecimentos com as guloseimas da tradição e do regalo cristão das doces freirinhas.
Oh! os ovos moles de Aveiro, oh! os travesseiros e as queijadas de Sintra, oh! os Dons Rodrigos algarvios! e os pastéis de Belém e também as queijadas de cerveja de lá ao pé! E os pastéis folhados de Vouzela! Nessa cultura, sim, eu alinho com gosto!
Nas touradas, não alinho. Já dizia o meu pai que a tourada é um espectáculo desleal e indigno de gente civilizada, no confronto desigual entre o homem e a fera. Há quem lhe sinta a beleza, contudo, talvez pelos meneios elegantes dos toureiros e dos cavalos. Para mim, ele justifica a insensibilidade com que enjaulamos os animais que vão para abate, além de outras brutalidades da nossa cultura.
Mas cultura é, em minha opinião, sobretudo algo que nos levasse a respeitar o civismo e as pessoas, as obras arquitectónicas, picturais e todas as que resultaram da evolução intelectual e da modernização gradual dos homens, e nos tornasse a nós um povo apto, dedicado ao trabalho e não sorna e desleixado, um povo a quem os poderes sucessivos da nossa história tivessem permitido conservar os dentes da nossa vergonha nacional, mais a capacidade de ler e de admirar quem escreveu e contribuiu para a evolução das ideias. Algo que nos levasse a desenvolver o turismo pela conservação dos nossos museus, criando cicerones capazes e não, como eu já vi, ou os sem viço, desfiando, monocordicamente, os pobres dados do seu pobre saber, ou os que fazem do seu trabalho uma arte de gozo, misturando dados circunstanciais da sua história a relevo anedótico, sem respeito nem amor pela arte nem pela sua profissão.
Mais do que a procissão das lindas flores na Madeira, mais do que as nossas marchas populares, como eu gostaria que se fizessem entre nós espectáculos idênticos ao de Julien Lepers, cujo programa – Questions pour un Champion - bem disposto, mas sem o folclore subjectivo das intervenções dos nossos apresentadores em programas similares – tanto tem contribuído para a difusão cultural, com incidência sobre milhões de assistentes que, em França, Bélgica, Suíça, criaram clubes idênticos, que participarão anualmente no programa. Tal como se fazem os campeonatos entre as escolas universitárias, ou até entre os juniores! E é belo assistir à participação e alegria inteligente dos jovens estudantes, batendo-se por alcançar o troféu final da Vénus de bronze, mas alcançando, sem dúvida, sempre inúmeras obras para seu enriquecimento cultural.
Ultimamente, contudo, o sentido do termo cultura desviou-se por caminhos ínvios, de tal maneira que, para elevarmos o nosso nível cultural no confronto com os outros povos europeus, se fabricam à pressa diplomas de cursos de pura mistificação, atentatória da nossa dignidade como povo, e atropeladora de todos os valores, sobretudo dos que seguiram honestamente os seus cursos. É a nossa cultura de pacotilha, a que nos permitiu atropelar as regras da língua, com um Acordo Ortográfico de pacotilha.

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