terça-feira, 27 de outubro de 2009

A gente boa

O comentário de Braamcamp Mancellos implicando natural indignação contra as injustiças – sobretudo as portuguesas, acompanhadas por um carisma de egoísmo e incompetência governativa – e uma carinhosa piedade pelo povo humilde de Inhambane, com referência ao irmão mais velho de mais quatro órfãos de quem aquele se encarregou, informando na reportagem televisiva da Sic nada precisar da vida – atitude que, segundo Mancellos, revela uma lição de vida para a sociedade portuguesa desligada de princípios - lembrou-me um texto escrito em 74, justificativo do meu cepticismo a respeito da bondade ou do desinteresse do homem primitivo, ideia romântica fortalecida pela teoria do “bom selvagem” de Rousseau, que há muito, desde os meus primórdios infantis, a lembrança terrífica de crimes cometidos na aldeia por um pedaço de água nas regas contestou, quando com ela me confrontei.
O que leva o jovem irmão a responder que de nada precisa, aceitando embora a hipótese de grande dignidade e de boa formação moral arreigada pelo sofrimento, e ressalvada a marca de “terra da boa gente” da tradição de Inhambane, é provavelmente a inconsciência e o desconhecimento dos seus direitos e das coisas boas da vida que leva o jovem a negar a necessidade delas. Caso as conhecesse, caso tomasse consciência do seu posicionamento no mundo, como ser humano, segundo uma norma de igualdade defensora dos direitos humanos, o sentimento da injustiça e o apetite do bem-estar que é distribuído aos outros, logo o fariam responder de outro modo. E com pleno direito o faria.
Em Moçambique trabalhei, dei aulas nocturnas a muitos homens que desejavam alcançar outra posição na vida e admirei a coragem de muitos deles, que depois do trabalho iam ainda estudar, alguns cabeceando com sono. Admirei a dignidade de um criado meu – o Finias – que se preparou para o exame da quarta classe. Não dava erros no ditado, acertava todos os problemas, mas a história e a geografia não eram o seu forte. E no dia do exame recusava-se a ir, com a consciência da sua imperfeição em algumas matérias. Levei-o no carro, mau grado a recusa, e fui com ele até à sala do exame. E no fim, foi a glória de um excelente resultado. Mas essa dignidade do Finias nunca mais a esqueci, sobretudo quando em confronto com a situação aqui, de alunos nocturnos das “Unidades Capitalizáveis” que debandavam logo na primeira semana de aulas. Tinham-se matriculado para terem redução nos passes, não lhes interessavam as matérias em estudo, a maioria por incapacidade de as apreender, alguns por se julgarem acima, no conhecimento. E lembro os exames em que alunos se autopropunham “a ver se dava”! Quantos zeros nas pautas, à conta disso! Quanta indignidade, de oportunismo e farsa! Não, nem podemos condenar outros oportunistas dos muitos que singram bem. “Faz parte”, diria um actor brasileiro cujo nome esqueci, que acentuava a injustiça da sua condição de empregado, alombando com as velhas, face ao patrão jovem a quem cabiam as raparigas esbeltas. No nosso caso, “faz parte” da nossa mentalidade – com as ressalvas de muitos, felizmente, ainda - o desinteresse pelo estudo, a inobservância das regras, a indignidade das manobras para a realização dos objectivos.
Mas, se Moçambique é hoje dos mais pobres países do mundo, deve ser porque, sendo “terra de boa gente”, esta aceita passivamente os atropelos dos seus governantes, que vão alinhavando os seus governos em velhos termos conhecidos, do oportunismo pessoal dos seus políticos, sem ter em conta direitos nem teorias de igualdade. E, sem esperança na vida, deixam-se condenar pela sida, já condenados pela própria miséria..
Porque não é lição de vida, sr. Braamcamp Mancellos, o dizer-se que nada se deseja da vida, satisfeitos com o que se possui e se construiu, mas na carência de tanto. Só a ignorância – ressalvada a dedicação ou a inércia religiosa dos dedicados a Deus – é que nos pode levar a fazer uma tal afirmação. Mas dêem-se-lhe oportunidades – devem dar-se-lhe oportunidades, para mais agora, que foi chamada a atenção para o seu caso e de tantos outros de Inhambane e não só – e o jovem lutará por mais. Com todo o seu direito.
Se quiser, leia o texto infra, dos tempos pós 25 de abril de 74, quando o medo e o desespero de ver a pátria soçobrar nos afundava num sofrimento grande, mas ainda de esperança de que tudo não passasse de pesadelo. O livro “Pedras de Sal”, donde é extraído o texto, são a prova de uma inútil luta de esperança, antes da fatal declaração pronunciada por Spínola, concedendo a independência às colónias e que assinalei nesse livro desta forma:

«A DATA HISTÓRICA
27 de Julho de 1974
FIM DO IMPÉRIO ULTRAMARINO PORTIUGUÊS
“DITOSA PÁTRIA QUE TAIS FILHOS TEM!”»

O texto que segue, de (pseudo) tomada de consciência, pertence ainda à luta, não à desistência que o anterior traduz, terminando o livro com o texto seguinte – “Colonos” - que já revelei neste blog. A partir desse, tratei dos papéis – meus e dos filhos – para o nosso retorno à Pátria que nos tinha atraiçoado, na pessoa dos seus muitos heróis.

«Greves
Vi hoje magotes de gente vinda das bandas do governo. Parece que tinham ido fazer reivindicações. Levou tempo a escoar-se pois eram vários milhares.
Eu encontrava-me junto do meu espada em segunda mão e receei que mo reivindicassem também. Mas era gente ordeira naquela altura, ou porque tivessem notado os buracos da chaparia, ou porque realmente apenas queriam o aumento dos seus salários. Passaram dois, bastante gordos, muito animados. Dizia um deles: “Não é justo uns ter fome e outros não”. Fiquei a magicar se, ao apontar os esfomeados, se quereria referir a mim, que ultimamente apresento aspecto debilitado, mas não me ofendi e continuei a observar.
Deu-me satisfação verificar que o nosso povo se está assim consciencializando, ou, mais propriamente autodeterminando, e recordei a carta de uma amiga que, de uma aldeia metropolitana me dá conta da actual convicção do nosso povo eufórico, de que vai ganhar mais e trabalhar menos.
Contaram-me ainda o caso de dois sapateiros sócios, sentados à porta da sua garagem alugada, a fazer greve, já que toda a gente a fazia. Momentaneamente cheguei a temer que os patrões das várias empresas se lembrassem de os imitar, por espírito de camaradagem democrática, mas afastei a ideia importuna, imobilizadora de energias e potencialidades a nível nacional.
Alguns grevistas, pouco hábeis em contas, pediam 900$00 diários, a saber, 2700$00 mensais. Outros, ainda menos hábeis, que ganhavam 100$00, desejavam 90$00 diários, sem dúvida por terem notado que o 9 é superior ao 1 em valor absoluto. A alguns, com 40$00 diários, foram prometidos 100$00. Protestaram, queriam 100% mais. Custou a convencê-los da indiscutível vantagem da primeira oferta.
Cá em casa também vivi angústias, receando greve do Salvador, mas foi só enquanto se não definiu a posição do seu vitorioso Sporting. Desde essa definição tem-se mostrado feluiz, graças a Deus, e trabalha em glória e dinamismo, desejoso de imitar o pontapé certeiro do Yazalde. Quanto à Marta, não dá problemas. É amiga dos pequenos e além disso ela própria se beneficia de tempos a tempos com uns aumentos muito peculiares e desculpáveis por razões étnicas hereditárias.
Mas com efeito, também as mulheres se têm mostrado muito enérgicas a reivindicar salários justos, e além disso, igualdade e liberdade em relação aos seus homens. Esqueceram-se apenas de invocar a “fraternidade” dos nossos irmãos da Revolução Francesa,
Todavia, para o caso tanto faz, pois tal fraternidade não obstou a que a História da França ficasse para sempre manchada com uma longa página sangrenta de terror e de loucura devastadora

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