Encontrei entre as “Fables” de La Fontaine uma que me lembrou que Gil Vicente, mais de um século antes, já versara o mesmo tema de combate à astrologia. Por isso, me dispus a traduzi-la, para transcrever, seguidamente, com o patriotismo adequado à minha natureza lusitana, que defende ardorosamente as qualidades do seu clube, alguns passos do “Auto da Feira”, e finalmente concordar com ambos os autores, pelo desnecessário da adivinhação astrológica, qualquer um de nós bem ciente do futuro.
Diz La Fontaine em “L’Astrologue qui se laisse tomber dans un puits”:
Um dia, um astrólogo deixou-se cair
Ao fundo dum poço. Logo alguém disse, a sorrir:
- “Pobre tonto que não enxergas mais do que os teus pés
E pensas que por cima da tua cabeça lês.”
Esta aventura em si, sem irmos por diante,
Pode servir de lição à maioria da gente.
Entre aquilo que como humanos somos
Poucos há que não gostem de ouvir dizer
Que no livro do Destino os mortais poderão ler.
Mas esse livro que Homero e os seus pares cantaram
O que é senão o Acaso, na Antiguidade,
E a Providência, na Modernidade?
Ora, não existe essa ciência do Acaso!
Se existisse seria insanidade
Chamar-lhe Acaso ou Sorte ou Fortuna
Tudo coisas bem insanas
Quanto às vontades soberanas.
Aquele que tudo faz, e sempre intencionalmente
Quem as sabe senão Ele? Como ler na sua mente?
Teria ele impresso na fronte das estrelas
O que a noite dos tempos encerra em seu véu?
Com que fim? Para exercitar a mente
Dos que escreveram sobre a terra e o céu?
Para nos fazer precaver contra males inevitáveis,
Tornar-nos, no Bem, incapazes dos gozos inefáveis?
Convertendo em asco esses bens previstos
Transformá-los em males, antes de serem benquistos?
É erro, ou antes, crime, crê-lo.
O firmamento move-se, os astros seguem seu trilho,
O sol brilha diariamente.
Em cada dia a sua claridade segue a sua sombra escura
Sem que possamos disso algo mais inferir
Do que a necessidade de iluminar e luzir
De trazer as estações, as searas amadurecer a seu jeito,
Sobre os campos lançar o seu efeito.
De resto, em que responde ao destino, sempre diverso,
Este trem sempre igual da marcha do universo?
Charlatães, fabricantes de horoscópios,
Abandonai as cortes dos príncipes europeus
Levai convosco os alquimistas sandeus.
Mais do que esta gente, crédito não mereceis.
Estou a exaltar-me; voltemos à história do poço,
Desse especulador forçado a beber.
Além da vaidade da sua arte de mentira
Ele é espelho dos que procuram a quimera.
Entretanto, o perigo os espreita
A eles e aos negócios de visão tão estreita.
Trata-se, pois, de uma fábula séria, reveladora de um pensamento claro e filosófico, numa estruturação bem clássica, de rejeição das formas divinatórias centradas nos astros.
Não assim Gil Vicente, que, mais de um século antes, exprime, no seu “Auto da Feira”, na apresentação de Mercúrio, uma visão satírica, chocarreira e desmistificadora, por meio de verdades de M. de Lapalisse, ou de crítica anti-clerical, da mesma arte astrológica, já então posta em causa. Eis alguns passos:
Mercúrio:
“E porque a astronomia
Anda agora mui maneira,
Mal sabida e lisonjeira,
Eu à honra deste dia
Vos direi a verdadeira.
Muitos presumem saber
As operações dos céus,
E que morte hão-de morrer,
E o que há-de acontecer
Aos anjos e a Deus,
E ao mundo e ao Diabo.
E o que sabem têm por fé...
Porém quero-vos pregar,
Sem mentiras nem cautelas,
O que por curso d’estrelas
Se poderá adivinhar,
Pois no céu nasci com elas.
E se Francisco de Melo
Que sabe ciência avondo,
Diz que o céu é redondo,
E o sol sobre amarelo,
Diz verdade, não lho escondo.
Que se o céu fora quadrado,
Não fora redondo, senhor.
E se o sol fora azulado,
D’azul fora a sua cor,
E não fora assim dourado...
E assim os corpos celestes
Vos trazem tão compassados,
Que todos quantos nascestes,
Se nascestes e crescestes,
Primeiro fostes gerados.
E que fazem os poderes
Dos signos resplandecentes?
Fazem que todas as gentes
Ou são homens ou mulheres,
Ou crianças inocentes.
E porque Saturno a nenhum
Influi vida contínua,
A morte de cada um
É aquela de que se fina
E não doutro mal nenhum.
...
E que mais quereis saber
Desses temporais e disso,
Senão que, se chover
Está o céu para isso,
E a terra para a receber?
A lua tem este jeito:
Vê que clérigos e frades
Já não têm ao céu respeito,
Mingua-lhes as santidades
E cresce-lhes o proveito.
...
Escutai bem, não durmais,
Sabereis, por conjecturas
Que os corpos celestiais
Não são menos nem são mais
Que suas mesmas granduras.
E os que se desvelaram
Se das estrelas souberam,
Foi que a estrela que olharam
Está onde a puseram,
E faz o que lhe mandaram......”
Ambos os autores, como vemos, são contra todos os Paracelsos, embora nenhum deles tenha referido a careza das consultas.
Devo, pois, limitar-me às ciganas, que sempre levam mais barato a ler a sina quando estamos em baixa de forma, que elas ajudam a subir.
Mas a vidência, mesmo sem análise pelos astros, pelas conchinhas, pelas linhas da mão, ou outros requisitos, creio que todos a vamos tendo. Sem optimismo.
Diz La Fontaine em “L’Astrologue qui se laisse tomber dans un puits”:
Um dia, um astrólogo deixou-se cair
Ao fundo dum poço. Logo alguém disse, a sorrir:
- “Pobre tonto que não enxergas mais do que os teus pés
E pensas que por cima da tua cabeça lês.”
Esta aventura em si, sem irmos por diante,
Pode servir de lição à maioria da gente.
Entre aquilo que como humanos somos
Poucos há que não gostem de ouvir dizer
Que no livro do Destino os mortais poderão ler.
Mas esse livro que Homero e os seus pares cantaram
O que é senão o Acaso, na Antiguidade,
E a Providência, na Modernidade?
Ora, não existe essa ciência do Acaso!
Se existisse seria insanidade
Chamar-lhe Acaso ou Sorte ou Fortuna
Tudo coisas bem insanas
Quanto às vontades soberanas.
Aquele que tudo faz, e sempre intencionalmente
Quem as sabe senão Ele? Como ler na sua mente?
Teria ele impresso na fronte das estrelas
O que a noite dos tempos encerra em seu véu?
Com que fim? Para exercitar a mente
Dos que escreveram sobre a terra e o céu?
Para nos fazer precaver contra males inevitáveis,
Tornar-nos, no Bem, incapazes dos gozos inefáveis?
Convertendo em asco esses bens previstos
Transformá-los em males, antes de serem benquistos?
É erro, ou antes, crime, crê-lo.
O firmamento move-se, os astros seguem seu trilho,
O sol brilha diariamente.
Em cada dia a sua claridade segue a sua sombra escura
Sem que possamos disso algo mais inferir
Do que a necessidade de iluminar e luzir
De trazer as estações, as searas amadurecer a seu jeito,
Sobre os campos lançar o seu efeito.
De resto, em que responde ao destino, sempre diverso,
Este trem sempre igual da marcha do universo?
Charlatães, fabricantes de horoscópios,
Abandonai as cortes dos príncipes europeus
Levai convosco os alquimistas sandeus.
Mais do que esta gente, crédito não mereceis.
Estou a exaltar-me; voltemos à história do poço,
Desse especulador forçado a beber.
Além da vaidade da sua arte de mentira
Ele é espelho dos que procuram a quimera.
Entretanto, o perigo os espreita
A eles e aos negócios de visão tão estreita.
Trata-se, pois, de uma fábula séria, reveladora de um pensamento claro e filosófico, numa estruturação bem clássica, de rejeição das formas divinatórias centradas nos astros.
Não assim Gil Vicente, que, mais de um século antes, exprime, no seu “Auto da Feira”, na apresentação de Mercúrio, uma visão satírica, chocarreira e desmistificadora, por meio de verdades de M. de Lapalisse, ou de crítica anti-clerical, da mesma arte astrológica, já então posta em causa. Eis alguns passos:
Mercúrio:
“E porque a astronomia
Anda agora mui maneira,
Mal sabida e lisonjeira,
Eu à honra deste dia
Vos direi a verdadeira.
Muitos presumem saber
As operações dos céus,
E que morte hão-de morrer,
E o que há-de acontecer
Aos anjos e a Deus,
E ao mundo e ao Diabo.
E o que sabem têm por fé...
Porém quero-vos pregar,
Sem mentiras nem cautelas,
O que por curso d’estrelas
Se poderá adivinhar,
Pois no céu nasci com elas.
E se Francisco de Melo
Que sabe ciência avondo,
Diz que o céu é redondo,
E o sol sobre amarelo,
Diz verdade, não lho escondo.
Que se o céu fora quadrado,
Não fora redondo, senhor.
E se o sol fora azulado,
D’azul fora a sua cor,
E não fora assim dourado...
E assim os corpos celestes
Vos trazem tão compassados,
Que todos quantos nascestes,
Se nascestes e crescestes,
Primeiro fostes gerados.
E que fazem os poderes
Dos signos resplandecentes?
Fazem que todas as gentes
Ou são homens ou mulheres,
Ou crianças inocentes.
E porque Saturno a nenhum
Influi vida contínua,
A morte de cada um
É aquela de que se fina
E não doutro mal nenhum.
...
E que mais quereis saber
Desses temporais e disso,
Senão que, se chover
Está o céu para isso,
E a terra para a receber?
A lua tem este jeito:
Vê que clérigos e frades
Já não têm ao céu respeito,
Mingua-lhes as santidades
E cresce-lhes o proveito.
...
Escutai bem, não durmais,
Sabereis, por conjecturas
Que os corpos celestiais
Não são menos nem são mais
Que suas mesmas granduras.
E os que se desvelaram
Se das estrelas souberam,
Foi que a estrela que olharam
Está onde a puseram,
E faz o que lhe mandaram......”
Ambos os autores, como vemos, são contra todos os Paracelsos, embora nenhum deles tenha referido a careza das consultas.
Devo, pois, limitar-me às ciganas, que sempre levam mais barato a ler a sina quando estamos em baixa de forma, que elas ajudam a subir.
Mas a vidência, mesmo sem análise pelos astros, pelas conchinhas, pelas linhas da mão, ou outros requisitos, creio que todos a vamos tendo. Sem optimismo.
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