sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A Grande Marcha

Recebi hoje um e-mail com textos em verso que não resisto a transcrever. Todos eles focam a forma subreptícia com que nos vamos deixando enrolar, graças ao nosso medo e ao nosso egoísmo, pelos tentáculos, inicialmente débeis, mas gradualmente mais poderosos dos que contribuem, com as suas políticas da prepotência e da desumanidade – quando não da monstruosidade – para semear a destruição, com os favoritos da sua viagem.
Eis o texto do e-mail:

1º: «- De Maiakovski (poeta russo “ suicidado” após a revolução de Lenine... escreveu ainda no início do século XX):

“Na primeira noite eles aproximam-se
E colhem uma flor do nosso jardim.
E não dissemos nada.

Na segunda noite já não se escondem
Pisam as flores, matam o nosso cão
E não dissemos nada.

Até que um dia, o mais frágil deles, entra
Sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua,
E conhecendo o nosso medo,
Arranca-nos a voz da garganta.

E porque não dissemos nada,
Já não podemos dizer nada.”

Depois de Maiakovski:

2º - De Bertold Brecht (1898-1956):

“Primeiro levaram os negros,
Mas não me importei com isso,
Eu não era negro.

Em seguida levaram alguns operários,
Mas não me importei com isso,
Eu também não era operário.

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável.

Depois agarraram uns desempregados,
Mas como tenho o meu emprego,
Também não me importei.

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.”

3º De Martin Niemoller, 1933 – símbolo da resistência aos nazistas:

“Um dia vieram e levaram o meu vizinho que era judeu.
Como não sou judeu não me incomodei.

No dia seguinte, vieram e levaram o meu outro vizinho que era comunista.
Como não sou comunista, não me incomodei.

No terceiro dia vieram e levaram o meu vizinho católico.
Como não sou católico não me incomodei.

No quarto dia vieram e levaram-me;
Já não havia mais ninguém para reclamar...”

4º- De Cláudio Humberto, em 9/2/2007
“Primeiro eles roubaram nos sinais, mas não fui vítima;
Depois incendiaram os autocarros, mas eu não estava neles;
Depois fecharam ruas, onde não moro;
Fecharam então o portão da favela, que não habito;
Em seguida arrastaram até à morte uma criança, que não era meu filho...”

5º- Texto (anónimo):

Sócrates logo no dia da posse atacou os farmacêuticos.
Eu não disse nada porque não sou farmacêutico.

A seguir atacou os magistrados, também nada disse porque não sou magistrado.

Depois foi aos médicos e enfermeiros. Também nada disso é comigo.

A seguir congelou as carreiras dos funcionários públicos,
Quero lá saber, eu não sou manga de alpaca.

Maltratou os polícias, os militares, os professores... os padres também não escaparam.

Aumentou os impostos,
Aumentou a idade da reforma, a insegurança nas ruas, nas escolas e até nas nossas casas.

Ah! Mas criou as “Novas Oportunidades”, o “divórcio”,
A insegurança, o crime, a violência, os “canudos”
Facilmente obtidos, de férias e domingos.

Hoje bateu à minha porta com a Lei da Imobilidade
E atirou-me para o desemprego. Já gritei e ninguém me ouve, até parece que a coisa só me afecta a mim.

O que os outros disseram foi, depois de ler Maiakovski:
“Incrível é que, após mais de cem anos, ainda nos encontremos tão desamparados, inertes, e submetidos aos caprichos da ruína moral dos poderes governantes, que vampirizam o erário, aniquilam as instituições, e deixam aos cidadãos os ossos roídos e o direito ao silêncio: porque a palavra, há muito se tornou inútil...
Até quando?»

Como afirmam, pois, os textos, relativamente recentes, é à nossa inércia, tantas vezes, que se deve o evoluir dos povos, inércia em oposição com as ambições, mascaradas sob a capa da solidariedade, dos vampiros conquistadores que derrubam governos ou as estruturas dos próprios governos.
Mas o que está na origem psicológica dos activismos desmoronadores, já os clássicos o explicaram.
Do poema herói-cómico “O Hissope”, a que já me referi, de António Diniz da Cruz e Silva - Elpino Nonacriense na sua designação como Árcade - lemos um excerto do diálogo travado entre o deão Lara e um douto Reverendo que, ao conduzir aquele pelo jardim do convento de Elvas, lhe vai explicando, entre outros temas de sátira, o significado das estátuas da mitologia clássica, entre elas a de Páris, filho de Príamo e de Hécuba que, ao atribuir a Vénus o pomo de ouro da beleza, seria o causador fatal da destruição de Tróia, ao raptar a grega Helena, por desígnio da gratidão de Vénus. Vejamos, pois, a estrofe:

“- Já nesse pleito ouvi, (se bem me lembro)
E no pomo falar: (lhe volve o Lara)
Mas o tal monsieur Páris foi um asno;
(Perdoe a sua ausência). Se na causa
De ser juiz a sorte me coubera,
Daria mal, ou bem minha sentença,
Conforme o meu bestunto me ajudasse,
Sem em nada gravar a consciência:
Mas a maçã havia de eu papá-la,
Pelas custas, por certo; e quando muito,
Daria à Vencedora, dela as cascas.”

Sim, todos esses de quem se tratou nos textos, condutores – por vezes carrascos - que vitimizam tantos dos rebanhos que se propuseram guardar, levados pelo brilho do “pomo de ouro” da sua liderança, fazem como o bom Lara: papam a maçã e vão lançando as cascas aos incautos inertes.

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