Na pacatez das nossas vidas por cá, sem história de
monta, mas com altissonância episódica q.b, reflexo de unidade linguística e de
postura afectiva bipolar (ora passiva – nas coisas da ponderação – ora
entusiástica – nas coisas do sentimento ou do visual concreto) – mal nos tínhamos
apercebido das dificuldades de gestão da palavra para orientação da política
económica e social pelos parlamentares europeus que têm esta a seu cargo, embora
calculássemos que sendo imprescindível uma hegemonia linguística, seria a
língua inglesa a eleita para o entendimento na comunicação europeia da União.
Com a saída, porém, do RU da UE, a adicionar aos problemas de ordem vária, para
britânicos e europeus, que tal saída provoca, não é de somenos importância este
da língua que se impõe na nova Babel construída, no desejo de alcance de um
novo céu – europeu - do qual ruirá, provavelmente, tal como a sua antecessora
hebraica, na confusão linguística e no caos dos egoísmos e dificuldades de toda
a ordem, sem uma língua comum, embora me pareça que a língua francesa não apresenta
dimensão inferior à da língua inglesa, no espaço cultural universal, se não optarem
pelo multilinguismo mais justo, com as respectivas tecnologias de linguagem auxiliares.
O
Reino Unido não teria, pois, talvez tanta razão de desistir, na superioridade
do seu posicionamento, quer económico, quer linguístico, quer por via da
deferência que por todos lhe foi sempre prestada. Mas desistiu, e nós
compreendemos isso, conhecendo minimamente o seu historial de fraca aderência ao
continente a que pertence, a não ser em ocasiões de crise, mesmo nas nossas
crises lusas, de povo há muito seu aliado, mas que até soube reconhecê-lo, não
só oferecendo-lhe Bombaim e Tânger mais o five o’clock tea do seu uso diário, único,
aliás, a manter-se, neste efémero mundanal, como cedendo-lhe outros
territoriozitos, e a outros povos, de resto, em tempos de domínio filipino, alguns
dos quais foram posteriormente
recuperados por heróis nossos, embora também a título provisório. Águas e
humilhações passadas. A verdade é que a sua insularidade sem fronteiras lhe
permitiu sempre dilatar-se pelo mar fora, impondo majestosamente a sua presença
não miscível e sempre sagaz na colheita dos recursos que com a sua arte e poder
obteve, sem custos fronteiriços de maior, mas deixando marcas vultosas da sua
presença imponente e distante, como verificamos nos filmes. O nosso Guerra
Junqueiro é que não se conformou na questão do Ultimato e barafustou com uma
iracúndia de todo o tamanho, que já transcrevi várias vezes mas torno a lembrar, num pequeno passo, de puro sadismo inofensivo:
Ó cínica Inglaterra, ó bêbeda impudente,Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão?
Chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente,
Repartindo por todo o escuro continente
A mortalha de Cristo em tangas d'algodão.
A tua bíblia! o teu Cristo!... A tua bíblia é uma agenda
Em que a virtude heróica a cifras se reduz.
E o teu Cristo londrino é um Deus de compra e venda,
Deus que ressuscitou para abrir uma tenda
De cortiça, carvão, álcool e panos crus!......
Mas leiamos o estudo seguinte, sobre as consequências
do Brexit ao nível linguístico, e as hipóteses de seguimento comunicativo na UE,
feito por uma série de professores universitários, como vem assinalado no final
da página, informação que transponho para o início do artigo:
Manuel
Célio Conceição, Universidade do Algarve
Astrid
von Busekist, Instituto de Estudos Políticos de Paris
Helder
De Schutter, Universidade Católica de Lovaina
Rob
Dunbar, Universidade de Edimburgo
François
Grin, Universidade de Genebra
Peter
A. Kraus, Universidade de
Augsburgo
Bengt-Arne
Wickström, Universidade Andrássy, Budapeste
Os
autores são coordenadores de equipas no consórcio europeu de investigação
"Mobilidade e Inclusão na Europa numa Europa Multilingue" (MIME, www.mime-project.org).
Os pontos de vista aqui apresentados são, no entanto, apenas seus.
As línguas na Europa: o que mudará com o “Brexit”?
Público,
01/07/2016
Há alguns meses que os media pesam
as vantagens e os inconvenientes do “Brexit”, para os britânicos e para a União
Europeia. Uma questão ficou, no entanto, claramente esquecida: o “Brexit”
provoca alguma alteração nas questões linguísticas do projecto europeu? O
inglês não fazia parte das línguas oficiais da comunidade fundadora com seis
membros (Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos) mas
tornou-se rapidamente numa língua dominante, ou mesmo hegemónica, das
instituições europeias depois da entrada do Reino Unido em 1973. O “Brexit”
alterará esta situação?
Não
se negando as vantagens da existência de uma língua franca, o domínio do inglês
levanta muitos problemas. Antes do “Brexit”, o inglês era a língua materna de
cerca de 14% dos cidadãos europeus, sendo que, dos restantes, apenas 8% eram
fluentes em inglês e 17% afirmavam ter um bom domínio desta língua. Isto
significa que cerca de 75% dos europeus têm conhecimentos limitados,
rudimentares ou não têm qualquer conhecimento da língua inglesa. Mesmo que
estas competências tivessem expressão maior, existiria um verdadeiro problema
de justiça. O domínio de uma língua, que é a língua materna de alguns no seio
de um grupo, de um país ou de conjunto de países (e aprendida a custo quase
nulo pelos seus falantes nativos), impõe um enorme custo de aprendizagem a
todos os outros que se vêem obrigados a dedicar tempo, dinheiro e
esforços consideráveis para a aprender. Ainda que haja grande empenho e
muito esforço, os não nativos só em casos excepcionais atingirão o nível de
competência próximo dos falantes nativos de inglês. Para aprender a
utilizar esta língua com plena fluência, estima-se serem necessárias entre 12
000 e 15 000 horas de estudo e de prática, o que está claramente acima do que é
expectável o europeu médio. Os nativos anglófonos e uma pequena minoria de
não anglófonos que falam verdadeiramente inglês como língua segunda terão
vantagens para qualquer emprego em que se exija proficiência nesta língua.
Além disso, por os referenciais culturais, crescentemente dominantes, serem
expressos nesta língua, os seus falantes nativos têm também vantagens de
natureza cultural. Este desequilíbrio simbólico entre uma língua hegemónica
e uma série de outras línguas, sempre marginalizadas, é, em si, perturbador
(sobretudo, mas não exclusivamente, para quem não tem a língua inglesa como
língua materna). Enfim, o domínio do inglês está, ano após ano, na base de
desigualdades consideráveis no plano dos recursos, da comunicação e dos
símbolos, entre os que não sabem inglês e os que têm esta língua como materna. E
esta desigualdade entre pessoas também se verifica entre países: por um lado os
países não anglófonos, por outro o Reino Unido (e marginalmente a Irlanda).
Pode
isto mudar agora? Tendo o Reino Unido optado pela separação, o inglês é uma
língua exterior à Europa, à excepção de cerca de 4,6 milhões de irlandeses e de
menos de meio milhão de malteses – aproximadamente 1,6% da população da União
pós-“Brexit”. O “privilégio” anglófono estará, a partir de agora,
reservado a uma pequena minoria de europeus. Por um lado, diríamos que o
privilégio se torna mais exorbitante mas, por outro, precisamente, porque os
números envolvidos são mais baixos, o montante total das transferências
efectuadas poderá ser insignificante. O inglês poderia, então, de forma mais
credível, ser considerado como “neutro” e, portanto, uma ferramenta mais justa
e apropriada para a condução dos negócios europeus, pois seria a língua materna
de muito poucos cidadãos dos 27 membros (à excepção de perto de 5 milhões de
irlandeses e malteses). Poderíamos, pois, concluir que o “Brexit” muda a
situação linguística, o inglês se torna numa opção mais aceitável e as reservas
que se pudessem ter sobre o seu domínio na Europa seriam consideradas
infundadas. No entanto, uma análise mais cuidada mostra que o “Brexit” não
torna a hegemonia do inglês menos problemática. Vejamos porquê.
Em
primeiro lugar os cidadãos britânicos não vão desaparecer repentinamente dos
serviços em que trabalham na União em Bruxelas. Ainda que, a termo, risquem de
perder os empregos, os tradutores e os intérpretes continuariam a ser
necessários se o inglês se mantivesse de facto a língua dominante da Europa.
Por conseguinte, os falantes nativos manteriam, na prática, a vantagem de poder
exercer na sua língua, e tendo todos os outros que a aprender e que se adaptar.
Em
segundo lugar, se o papel do inglês não for questionado, o Reino Unido
(tal como os anglófonos de outros países) continuará a beneficiar de
transferências sem compensação, uma vez que a utilização do inglês no seio da
União Europeia (UE) exigirá sempre um investimento muito significativo para
aprender esta língua. Tal confere aos falantes nativos, sem qualquer
contrapartida, uma vantagem considerável em mercados lucrativos: professores e
cursos de línguas, venda de material pedagógico, certificação, etc.
Em
terceiro lugar – e sobretudo – o inglês domina em vários outros contextos para
além das questões internas da União. Uma vez que a UE tem menos anglófonos
nativos, o inglês deveria, no seio interior, ser menos injusto mas os
desequilíbrios manter-se-iam fora da UE. A UE não é, nem será nunca, uma ilha
distante do resto do mundo, ainda pós-Brexit apenas tenha 6% da população
mundial. A globalização só acentua
este contraste. Nos planos económico, político e científico, o que conta não é
a UE mas o mundo. Mesmo na UE, áreas não relacionadas com o seu funcionamento
institucional, como o turismo, a edição científica ou os negócios, manter-se-ão
sob uma forte atracção do inglês. Assim sendo, em todo o mundo, os anglófonos
continuarão a beneficiar das mesmas vantagens materiais, culturais e
simbólicas.
Face
ao exposto, ainda que o “Brexit” possa reduzir a injustiça linguística no âmbito
das instituições europeias, em sentido estrito, não anulará as vantagens de que
os países anglófonos beneficiam unilateralmente – se o uso dominante do
inglês na UE não for posto em causa.
Para
quem não se sente incomodado com as transferências materiais e simbólicas atrás
referidas e para os defensores do uso do inglês como língua dominante na
Europa, o “Brexit” não deve ser fonte de inquietude, pelo menos por questões
de língua; a ordem linguística (se assim puder ser chamada) não será alterada.
Para quem, pelo contrário, se preocupa com o reconhecimento desigual das
línguas e com as transferências sem contrapartidas que a hegemonia de uma
língua provoca, e quem defenda a multipolaridade no mundo, o “Brexit” também
não será motivo de júbilo, pois a necessidade de defender activamente a
diversidade linguística continuará a ser tão imperiosa como o era. Claro que o
problema não é a língua inglesa ; o problema é uma hegemonia desprovida de
justificação política. As inquietudes que se possam ter a este respeito seriam
exactamente as mesmas se a língua dominante fosse o francês e houvesse um
“Frexit”.
Os
defensores do multilinguismo são, pois, favoráveis a uma
dosagem de estratégias adaptadas a diferentes situações, combinando a protecção
das línguas locais com a aprendizagem eficaz de línguas estrangeiras, o
desenvolvimento de competências receptivas em línguas próximas, um uso
optimizado da tradução e da interpretação, utilizações inovadoras das
tecnologias da linguagem, e, enfim, um uso mais equilibrado não apenas de uma
mas de várias lingue franche (entre as quais o inglês). Enfim, mais do que o
ilusório impacto de um “Brexit”, nesta área o que faz falta à Europa é uma
abordagem de política linguística que vá além da opção “por defeito” da simples
submissão à hegemonia e ao domínio do inglês. Esta abordagem do multilinguismo
só pode nascer de um debate aberto e democrático sobre o nosso futuro
linguístico enquanto europeus.
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