«In
vino veritas» é o que se poderá evocar, para responder à pergunta de uma
inteligente e bem informada escritora portuguesa destes tempos de temor de um
mundo cada vez mais espezinhador das noções éticas com o correspondente
espezinhamento do homem que não participe nos esquemas habilitadores para o
êxito das ambições, de acordo com as competências de cada um. Um mundo que se
apercebeu do que a Ciência traz de alteração de conceitos, quer na astronomia, quer
na geografia, na física, na gastronomia, na contagem do tempo, na arte, no
ritmo da vida. Na ética. Mundo, ao que parece, já sem esperança, apesar das
muitas telenovelas ou outras ficções de trabalho que vão empregando gente, de
forma incerta, tantas vezes efémera. E um fosso abissal se estabeleceu entre o mundo
da riqueza e o mundo da pobreza, o que tão bem é traduzido por essa espécie de
besta-fera apoiada pelo povo americano para o maior cargo governativo dos
Estados Unidos, Donald Trump, que ao poder económico se votou “sem parar”, o
que lhe faculta a capacidade de investir contra tudo o que represente bom-senso
e humanidade, os quais nunca deveriam ser desmerecidos pelo ser racional que
surgiu do hominídeo em construção progressiva – com tantas dignas excepções –
até aos tempos de hoje.
E
Clara Ferreira Alves pergunta “quando é que os políticos vão começar a dizer
a verdade” - aos novos, que “nunca terão a segurança de um
emprego ou um salário decente” ou aos velhos, que “o mundo avança
sem eles” e é tempo de baterem a bota, para favorecerem sobretudo os que
disso não precisam.
Mais
uma excelente crónica – “Vamos
ganhar sem parar” – expressão traduzida da de D. Trump, que assim
chafurda na inqualificável prosápia de uma imbecilidade bem patente na sua figura,
conquanto venerada por um povo que nos habituámos a admirar de longa data, na
dimensão das suas realizações humanas.
Por
isso, atendendo à subtileza do provérbio antigo – “In vino veritas” –
poderemos esperar que os políticos talvez digam a verdade por alturas dos seus
prândios bem regados, facilitadores de enternecimento e de confissões pungentes.
Quanto à plebe que “manda durante uma fração de segundo e não entende o
significado desse poder” não sei se isso é assim tão óbvio, como informa C.
Ferreira Alves, pelo menos no que concerne o nosso povo. Dos tempos idos, lembro
o povo de Fernão Lopes, que, com o incitamento de Álvaro Pais ou mesmo sem
esse, tantas vezes ajudou à construção de uma viragem na regência do reino,
impregnado de amor pela sua terra e ódio contra todos os que se lhe opusessem,
como apoiantes de Castela. A diferença é que hoje, educado no desprezo pelos do
mando e apenas na solicitação de favores para si próprio, por dirigentes industriosos que
fingem venerá-lo para melhor se alcandorarem ao mando, o termo “terra” com o
sinónimo de “pátria” já pouco lhe diz, a não ser por alturas dos feitos
futebolísticos da sua predilecção. Mas esse povo mereceria mais atenção, desde
sempre, por parte dos dirigentes do reino, no esforço de se elevar
conscientemente. Nesse aspecto, os dirigentes de hoje participam, naturalmente,
na sua formação, mais e melhor do que o fizeram os do passado. Todavia, a
recuperação do atraso é sempre lenta, e o desprezo das classes superiores pela “gentinha”,
com o seu paternalismo encoberto, não facilita o abrandamento da excitabilidade
popular apoiada em sentimentos e
egoísmo, mais do que em reflexão.
Eis
o excelente trabalho de Clara Ferreira Alves. Sem ilusão. Ciente da verdade:
«Vamos Ganhar sem
parar» (Pluma Caprichosa)
E, 2/7/16
«We’re gonna win, win,/ Win and we
will not stop» Donald Trump
Quando
é que os políticos vão começar a dizer a verdade? Quando é que vão começar a
dizer a uma geração mais jovem, os millenials, e dotada do sentido da
propriedade dos direitos adquiridos, que muitos deles nunca terão a segurança
de um emprego ou um salário decente? Quando vão começar a dizer à geração de
velhos, os baby-boomers incluídos, que o mundo avança sem eles e os que não se
defenderam ou não têm uma posição privilegiada deixarão de ser protegidos? Num mundo
de atenção instantânea e reação imediata, de espetadores que querem espetáculo
e de atores que correm a todo o tempo o risco de se tornarem desempregados (é
isto a política, hoje), como responder às ansiedades, medos, expetativas,
emoções de uma sociedade que prescindiu do tempo de pensar? Uma das coisas que
se ensinavam na escola do outro século é que se deve pensar antes de agir. Este
axioma não tem qualquer valor. Não há tempo. Não há raciocínio. Não há
paciência. No mundo digital e globalizado, infinitamente acelerado, o tempo, a
duração foram as primeiras vítimas. A rede não suporta o tempo dilatado,
não o tolera, é da sua essência, da essência do algoritmo, que sabemos
velozmente, mais do que precisamos, link sobre link, e acabamos
por não saber nada. A informação é destilada em sentimentos precários e
impulsos instantâneos. Raiva, terror, suspeita, desconfiança, angústia,
euforia, todas as paixões baixas se alinham quando a oportunidade surge. Quando
encontram a sua voz pública, seja a voz das redes sociais ou a voz do demagogo.
Seria bom reler o “Coriolano” de Shakespeare para perceber que a plebe pode
mandar, sem dúvida mandou no referendo britânico, mas o mandato é breve. Só dura
o tempo que a voz
ou a “plataforma” do seu tribuno dura. A plebe, que inclui a gente que o
desenvolvimento digital e o comércio global deixaram para trás, o grupo de
inúteis de uma sociedade que exclui os desajeitados, os pobres, os iletrados,
os desempregados, velhos e novos, manda durante uma fração de segundo e não
entende o significadpo desse poder. O demagogo mente, como aliás o resto dos
políticos, mas mente com uma invenção sua, a de fazer crer à plebe que diz a
verdade. Na plebe não estão apenas os destituídos de dinheiro, talento,
privilégio. Estão também os membros ilustres de uma qualquer hierarquia a que
este capitalismo retirou poder. Na Grã-Bretanha, muitos aristocratas votaram “Brexit”.
O grande vencedor foi Nick Farage, o homem certo no lugar certo, o homem do pub
que chegou ao Parlamento Europeu e disse aos deputados aquilo que a plebe diz
no pub. “Vocês
nunca trabalharam um dia das vossas vidas”. A conversa de taberna elevada a
proposição política. Trump navega nas mesmas “verdadeiras” águas, e o sucesso
destes dois, ou de Marine Le Pen com a sua “primavera dos povos”, tão parecida
com os amanhãs que cantam, é o sucesso da voz que dá corpo à vingança. Quando
o mundo nos falha, nos põe de lado, é preciso arranjar um inimigo. Sacrificar um
animal e beber-lhe o sangue. Isto é válido para os excluídos e também para
terroristas desempregados, fanáticos enfurecidos, reformados proletarizados,
fascistas desalinhados, esquerdistas mentirosos, ditadores ociosos, seres
odiosos. O Trump e o Farage dizem “a verdade”. Isto é mentira mas não há tempo
para pensar nisso. Como disse o comediante Ricky Gervais, os ricos
continuarão ricos, os pobres continuarão pobres, e continuaremos a culpar os
estrangeiros de tudo. É provável que os pobres continuem mais pobres, porque
não são os europeus e os refugiados e migrantes os culpados de tudo. E não são
os vencedores do referendo que irão negociar os termos da saída. Os negociadores
são os de sempre, a classe inteligente, bem educada e bem preparada. Os que
têm e continuarão a ter o poder dentro de uma sociedade próspera que não se
pode dar ao luxo de salvar os que ficaram para trás. Uma vez ouvi um político
indiano dizer a verdadeira “verdade”. Dizia
ele que Dharavi, a favela de Mumbai, nunca deixaria Dharavi. Que, para a Índia
avançar a favela ficaria para trás, entregue a si mesma, e só poderia
beneficiar indiretamente da prosperidade
dos que fariam avançar a Índia. Nunca poderia ser salva por mecanismos
estaduais ou subvenções sociais. E rematou: “É assim, é injusto e
inevitável. Era uma conversa privada. Em público, o político sem escrúpulos
poderia dizer uma de duas coisas. Que iria salvar a favela, o que apregoam
desonestamente os da extrema-esquerda, ou que iria vingar a favela, o que
apregoam desonestamente os da extrema-direita. A verdade é que o
capitalismo e a tecnologia que o sustenta avançam sem a favela, que não
beneficiou da democracia liberal e não precisam assim tanto dos políticos
democráticos. Recrutam-nos, mobilizam-nos, pagam-lhes. Aturam-nos. Os negociadores
salvar-se-ão e salvarão o mundo em que vivemos, no sossego dos gabinetes, longe
do rumor da plebe, quando a plebe se tiver esquecido, amanhã, que venceu. É
assim. E se não for assim, é o caos.
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