quarta-feira, 13 de julho de 2016

Morituri te salutant



«In vino veritas» é o que se poderá evocar, para responder à pergunta de uma inteligente e bem informada escritora portuguesa destes tempos de temor de um mundo cada vez mais espezinhador das noções éticas com o correspondente espezinhamento do homem que não participe nos esquemas habilitadores para o êxito das ambições, de acordo com as competências de cada um. Um mundo que se apercebeu do que a Ciência traz de alteração de conceitos, quer na astronomia, quer na geografia, na física, na gastronomia, na contagem do tempo, na arte, no ritmo da vida. Na ética. Mundo, ao que parece, já sem esperança, apesar das muitas telenovelas ou outras ficções de trabalho que vão empregando gente, de forma incerta, tantas vezes efémera. E um fosso abissal se estabeleceu entre o mundo da riqueza e o mundo da pobreza, o que tão bem é traduzido por essa espécie de besta-fera apoiada pelo povo americano para o maior cargo governativo dos Estados Unidos, Donald Trump, que ao poder económico se votou “sem parar”, o que lhe faculta a capacidade de investir contra tudo o que represente bom-senso e humanidade, os quais nunca deveriam ser desmerecidos pelo ser racional que surgiu do hominídeo em construção progressiva – com tantas dignas excepções – até aos tempos de hoje.
E Clara Ferreira Alves pergunta “quando é que os políticos vão começar a dizer a verdade” - aos novos, que “nunca terão a segurança de um emprego ou um salário decente” ou aos velhos, que “o mundo avança sem eles” e é tempo de baterem a bota, para favorecerem sobretudo os que disso não precisam.
Mais uma excelente crónica  – “Vamos ganhar sem parar” – expressão traduzida da de D. Trump, que assim chafurda na inqualificável prosápia de uma imbecilidade bem patente na sua figura, conquanto venerada por um povo que nos habituámos a admirar de longa data, na dimensão das suas realizações humanas.
Por isso, atendendo à subtileza do provérbio antigo – “In vino veritas” – poderemos esperar que os políticos talvez digam a verdade por alturas dos seus prândios bem regados, facilitadores de enternecimento e de confissões pungentes. Quanto à plebe que “manda durante uma fração de segundo e não entende o significado desse poder” não sei se isso é assim tão óbvio, como informa C. Ferreira Alves, pelo menos no que concerne o nosso povo. Dos tempos idos, lembro o povo de Fernão Lopes, que, com o incitamento de Álvaro Pais ou mesmo sem esse, tantas vezes ajudou à construção de uma viragem na regência do reino, impregnado de amor pela sua terra e ódio contra todos os que se lhe opusessem, como apoiantes de Castela. A diferença é que hoje, educado no desprezo pelos do mando e apenas na solicitação de favores para si próprio, por dirigentes industriosos que fingem venerá-lo para melhor se alcandorarem ao mando, o termo “terra” com o sinónimo de “pátria” já pouco lhe diz, a não ser por alturas dos feitos futebolísticos da sua predilecção. Mas esse povo mereceria mais atenção, desde sempre, por parte dos dirigentes do reino, no esforço de se elevar conscientemente. Nesse aspecto, os dirigentes de hoje participam, naturalmente, na sua formação, mais e melhor do que o fizeram os do passado. Todavia, a recuperação do atraso é sempre lenta, e o desprezo das classes superiores pela “gentinha”, com o seu paternalismo encoberto, não facilita o abrandamento da excitabilidade popular apoiada em sentimentos e  egoísmo, mais do que em reflexão.
Eis o excelente trabalho de Clara Ferreira Alves. Sem ilusão. Ciente da verdade:
«Vamos Ganhar sem parar» (Pluma Caprichosa)
E, 2/7/16
«We’re gonna win, win,/ Win and we will not stop»  Donald Trump
Quando é que os políticos vão começar a dizer a verdade? Quando é que vão começar a dizer a uma geração mais jovem, os millenials, e dotada do sentido da propriedade dos direitos adquiridos, que muitos deles nunca terão a segurança de um emprego ou um salário decente? Quando vão começar a dizer à geração de velhos, os baby-boomers incluídos, que o mundo avança sem eles e os que não se defenderam ou não têm uma posição privilegiada deixarão de ser protegidos? Num mundo de atenção instantânea e reação imediata, de espetadores que querem espetáculo e de atores que correm a todo o tempo o risco de se tornarem desempregados (é isto a política, hoje), como responder às ansiedades, medos, expetativas, emoções de uma sociedade que prescindiu do tempo de pensar? Uma das coisas que se ensinavam na escola do outro século é que se deve pensar antes de agir. Este axioma não tem qualquer valor. Não há tempo. Não há raciocínio. Não há paciência. No mundo digital e globalizado, infinitamente acelerado, o tempo, a duração foram as primeiras vítimas. A rede não suporta o tempo dilatado, não o tolera, é da sua essência, da essência do algoritmo, que sabemos velozmente, mais do que precisamos, link sobre link, e acabamos por não saber nada. A informação é destilada em sentimentos precários e impulsos instantâneos. Raiva, terror, suspeita, desconfiança, angústia, euforia, todas as paixões baixas se alinham quando a oportunidade surge. Quando encontram a sua voz pública, seja a voz das redes sociais ou a voz do demagogo. Seria bom reler o “Coriolano” de Shakespeare para perceber que a plebe pode mandar, sem dúvida mandou no referendo britânico, mas o mandato é breve. Só dura o tempo que a voz ou a “plataforma” do seu tribuno dura. A plebe, que inclui a gente que o desenvolvimento digital e o comércio global deixaram para trás, o grupo de inúteis de uma sociedade que exclui os desajeitados, os pobres, os iletrados, os desempregados, velhos e novos, manda durante uma fração de segundo e não entende o significadpo desse poder. O demagogo mente, como aliás o resto dos políticos, mas mente com uma invenção sua, a de fazer crer à plebe que diz a verdade. Na plebe não estão apenas os destituídos de dinheiro, talento, privilégio. Estão também os membros ilustres de uma qualquer hierarquia a que este capitalismo retirou poder. Na Grã-Bretanha, muitos aristocratas votaram “Brexit”. O grande vencedor foi Nick Farage, o homem certo no lugar certo, o homem do pub que chegou ao Parlamento Europeu e disse aos deputados aquilo que a plebe diz no pub. “Vocês nunca trabalharam um dia das vossas vidas”. A conversa de taberna elevada a proposição política. Trump navega nas mesmas “verdadeiras” águas, e o sucesso destes dois, ou de Marine Le Pen com a sua “primavera dos povos”, tão parecida com os amanhãs que cantam, é o sucesso da voz que dá corpo à vingança. Quando o mundo nos falha, nos põe de lado, é preciso arranjar um inimigo. Sacrificar um animal e beber-lhe o sangue. Isto é válido para os excluídos e também para terroristas desempregados, fanáticos enfurecidos, reformados proletarizados, fascistas desalinhados, esquerdistas mentirosos, ditadores ociosos, seres odiosos. O Trump e o Farage dizem “a verdade”. Isto é mentira mas não há tempo para pensar nisso. Como disse o comediante Ricky Gervais, os ricos continuarão ricos, os pobres continuarão pobres, e continuaremos a culpar os estrangeiros de tudo. É provável que os pobres continuem mais pobres, porque não são os europeus e os refugiados e migrantes os culpados de tudo. E não são os vencedores do referendo que irão negociar os termos da saída. Os negociadores são os de sempre, a classe inteligente, bem educada e bem preparada. Os que têm e continuarão a ter o poder dentro de uma sociedade próspera que não se pode dar ao luxo de salvar os que ficaram para trás. Uma vez ouvi um político indiano dizer a verdadeira “verdade”.  Dizia ele que Dharavi, a favela de Mumbai, nunca deixaria Dharavi. Que, para a Índia avançar a favela ficaria para trás, entregue a si mesma, e só poderia beneficiar indiretamente  da prosperidade dos que fariam avançar a Índia. Nunca poderia ser salva por mecanismos estaduais ou subvenções sociais. E rematou: “É assim, é injusto e inevitável. Era uma conversa privada. Em público, o político sem escrúpulos poderia dizer uma de duas coisas. Que iria salvar a favela, o que apregoam desonestamente os da extrema-esquerda, ou que iria vingar a favela, o que apregoam desonestamente os da extrema-direita. A verdade é que o capitalismo e a tecnologia que o sustenta avançam sem a favela, que não beneficiou da democracia liberal e não precisam assim tanto dos políticos democráticos. Recrutam-nos, mobilizam-nos, pagam-lhes. Aturam-nos. Os negociadores salvar-se-ão e salvarão o mundo em que vivemos, no sossego dos gabinetes, longe do rumor da plebe, quando a plebe se tiver esquecido, amanhã, que venceu. É assim. E se não for assim, é o caos.

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