As páginas 56 e 57 do Público, 1/07/2016 são preenchidas por 2 textos: O
primeiro, de Stewart Lloyd-Jones, sobre as consequências do Brexit para o Reino Unido, texto perfeitamente claro, o segundo de uma
escritora portuguesa – Hélia Correia – ao modo enviesado muito próprio
das confusas mentes lusas, começando por Camões, com as parangonas habituais do
nosso orgulho, que eu subscrevo (mas lembrando outros mais a merecer destaque).
E, já que fala em rosto e cauda, transcrevo o poema de Pessoa que, no seu
simbolismo animístico também constrói um estranho “bicho”, com um rosto fitando
– Portugal – fitando o mundo novo que iria descobrir - «o Ocidente futuro do passado» - embora cérebro e olhos se tenham ficado pela Grécia,
como mundo antigo, de poderosos princípios que todos quiseram seguir:
O DOS CASTELOS
A Europa jaz,
posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
O cotovelo
esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar esfíngico e
fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é
Portugal.
A cartilha patriótica de Hélia Correia prossegue,
incriminando Salazar como prato forte das nossas gerais recriminações, sem
reparar que a melhor forma de venerar o nosso épico cantor de heróis, mostrou-a
Salazar, defendendo o mundo por aqueles construído. Mas o seu texto era para
ser publicado na Áustria, convinha mostrar-se progressista como são todos os
europeus, que vivem em liberdade comandada, (autocomandada, talvez), gente
instruída da “Europa que jaz”, demonstrando que, ao contrário da
afirmação da “Mensagem”, Portugal lhe fica na cauda, com dizem as
estatísticas e Hélia Correia confirma, apesar de afirmar a igualdade entre os
nossos filhos e os deles, que brincam juntos, segundo a sua informação,
desconcertante dado o título do seu texto, pois raramente o rico brinca com o
pobre, e este, somos nós. Mau grado, pois, o esforço do paralelismo, que veio com o toque
de Midas, segundo refere Hélia Correia, num evidente exagero. Eu diria antes num
maná caído no nosso deserto, e por isso depressa esbanjado e sem direito a devolução, para alguns, maus devedores. Neste entrementes,
nós, que não criámos estruturas de sobrevivência, teremos que compartilhar com
os refugiados desse tal maná já extinto. E lemos que, servilmente, Hélia Correia
se propõe “agarrar no esfregão e na vassoura antes que algum refugiado lhos
cobice”. Concorda então com a expulsão dos refugiados, democrata como é? Uma
confusão de princípios.
1º Texto:
Uma semana depois do "Brexit", receio pelo futuro do meu país
Stewart Lloyd-Jones
Tópicos: Reino Unido, David Cameron, União Europeia, Irlanda do Norte, Inglaterra, Escócia, Jeremy Corbyn, País de Gales, Brexit
Estou
muito inquieto relativamente ao que está a acontecer no meu país, Escócia, e em
todo o Reino Unido, após o referendo de 23 de Junho, e à possibilidade de poder
vir a perder a minha cidadania europeia e, como consequência, o meu direito a
viver e trabalhar em Portugal, ou em qualquer um dos outros 27 estados membros
da União Europeia.
PUB
Politicamente, financeiramente, socialmente e economicamente, o Reino Unido
está um caos. Existe um vazio de poder em Londres e também a possibilidade da
Escócia e da Irlanda do Norte optarem por sair do Reino Unido para protegerem o
seu estatuto dentro da UE.
Entretanto,
os dois principais líderes da campanha “Leave”, Boris Johnson e Michael
Gove, assim como muitos dos seus apoiantes, parecem ter admitido
recentemente que nunca esperaram ou desejaram o resultado que obtiveram.
Afinal, aparece que a sua campanha tinha mais a ver com a vontade de afastar
David Cameron e George Osborne da liderança do Partido Conservador e
consequentemente do país. A renúncia do Primeiro-Ministro, na sexta-feira,
estragou a festa e deixou bem claro aos partidários do “Brexit” que os
problemas agora seriam seus para o resolver. Além da breve aparição de Boris
Johnson à saída da sua casa, afirmando que a moeda e os mercados ficariam
estáveis – precisamente no mesmo momento em que o valor da libra caía
fortemente em relação ao dólar e ao euro – nenhum dos principais líderes do
movimento “Leave” tem sido visto desde a sua conferência da imprensa bastante
discreta na manhã do dia 24. Os porta-vozes que surgiram, ou abstiveram-se de
falar ou recuaram nas promessas feitas durante a campanha, quer no que respeita
à imigração, investimento na saúde, acesso ao mercado único, quer até no que
respeita à importância do Reino Unido accionar o Artigo 50.º do Tratado de
Lisboa.
O
consenso geral é de que nenhum pedido formal para activar o Artigo 50.º será –
ou pode ser – efectuado, pelo menos até que o novo líder do Partido Conservador
seja escolhido (o que não acontecerá até Setembro). Em todo o caso é possível,
senão mesmo provável, que haja necessidade de realizar eleições legislativas
para dar legitimidade ao novo governo. Só nessa altura é que o novo
parlamento – a única instituição que pode adoptar leis constitucionais –
estará em posição de autorizar o governo a accionar o Artigo 50.º, o que pode
demorar até 7 a 8 meses. A complicar ainda mais as contas, está o facto de
alguns líderes da UE insistirem em que não haverá lugar a novas negociações,
formais ou não, até o Artigo 50.º ser formalmente activado; e a insistência de
Westminster de que não será possível autorizar o governo a iniciar o processo
de “Brexit”, sem que haja uma negociação prévia com as instâncias europeias
para esse efeito. Convém referir que o parlamento britânico tem actualmente
uma maioria de deputados a favor de UE, não existindo qualquer garantia que
esta situação se altere depois das eleições. É sempre possível que o parlamento
possa recusar a autorização, rejeitando assim o resultado do referendo. Sem
autorização parlamentar, o “Brexit” não passará de uma declaração de intenções.
Boris
Johnson, o ex-Mayor de Londres e ex-líder do “Leave”, disse que não há pressa
em sair da UE, e que a sua preferência é negociar mais concessões para o Reino
Unido, principalmente no que respeita ao direito de livre circulação de
cidadãos europeus. É importante lembrar que apenas 15 dias antes da sua entrada
na campanha “Leave”, Johnson escreveu na sua coluna no Daily Telegraph:
“Durante os últimos anos eu tenho dito que, globalmente, estaremos melhor
dentro de uma UE reformada”.
No
entanto, Johnson, que foi favorito para substituir David Cameron, desistiu da
corrida à liderança do Partido Conservador depois de uma troca de mensagens em
que o seu deputado Michael Gove disse que o não podia apoiar. Numa decisão que
apanhou quase todos por surpresa, Johnson declarou que ele próprio não é o
homem certo para liderar o país durante estes momentos difíceis. Há rumores de
que alguns apoiantes poderosos do “Brexit” não acreditavam que Johnson estava
totalmente empenhado na causa. No seu lugar como candidato surgiu Gove, com
a actual Ministra do Interior como principal adversária.
Quanto
ao Partido Trabalhista, os chamados ‘moderados’ levantaram-se contra o líder,
Jeremy Corbyn, pelo que é agora um partido em “guerra civil”. Corbyn fez
uma campanha muito medíocre em prol do “Remain”. Isto teve repercussões ao nível
eleitoral, e as regiões onde o Partido Trabalhista tradicionalmente tem mais
força – o noroeste, os Midlands e o nordeste de Inglaterra e o País de Gales
– enviaram-lhe uma mensagem de desafeição inequívoca e votaram em
massa para sair da EU. O voto a favor do “Leave” nestas regiões não foi
tanto a afirmação de uma vontade de sair da comunidade, como um voto de
protesto por se sentirem negligenciados durante anos e verem no referendo
uma oportunidade de manifestar o seu descontentamento para com a elite
política, talvez não estando sequer conscientes das potenciais consequências
desse mesmo acto.
O
golpe dos ‘moderados’ contra Corbyn é entendido como puro oportunismo político
e, em vez de se envolver em conflitos internos, o partido devia estar a explorar
o vazio político agora instalado para se posicionar como governo alternativo.
No entanto, restam poucas dúvidas de que um partido chefiado por Corbyn não
conseguirá vencer eleições. Uma sondagem recente revelou que até 29% dos
eleitores que votaram anteriormente no Partido Trabalhista não vão votar nele
na próxima vez.
No
entanto, mesmo que o “golpe” seja bem sucedido, com a esmagadora maioria dos
deputados do partido a votarem contra ele numa moção de confiança, é quase
garantido que Corbyn ganhará as primárias, pela simples razão de que há uma
desunião enorme entre os membros do partido (maioritariamente jovem e mais
radical) que elegem o líder, o eleitorado (na sua maioria da classe
trabalhadora, socialmente e economicamente conservador) e a elite partidária
(na sua maioria neoliberais e políticos de carreira).
A
situação na Irlanda do Norte está repleta de dificuldades. Aqui existe a
única fronteira terrestre entre o Reino Unido e a UE. O desmantelamento desta
fronteira “dura” foi crucial para o chamado “Acordo de Sexta-feira Santa” que
pôs fim a 70 anos de conflito e mortes, eufemisticamente conhecido como “The
Troubles”. Há um forte receio de que a reintrodução desta fronteira “dura”, com
pontos de verificação, controlo de passaportes, alfândegas, vedações e
patrulhas, possa resultar num retorno à violência. O resultado do referendo na
Irlanda do Norte, onde 56% de eleitorado votou a favor da UE, levou a pedidos
renovados para um “Border Poll”, ou seja, um referendo para remover a
fronteira com a República o que, no contexto do Brexit, significará a sua
reunificação com o sul.
Na
Escócia as coisas parecem bem mais claras, mas nem por isso menos difíceis. Os
escoceses votaram em força para permanecer na UE – com 62% do eleitorado a
votar para ficar. O governo do Scottish National Party (SNP) foi reeleito
em Maio, com quase 50% do voto popular depois de nove anos no poder, com um
programa que disse claramente que será realizado um referendo relativo à
independência do país caso a Escócia seja puxada para fora da UE contra a
vontade da maioria dos escoceses. Agora que isto está a acontecer, a
Primeira-Ministra, Nicola Sturgeon, disse que vai fazer o possível para
assegurar que a vontade do povo escocês seja respeitada, e que se não há
solução como parte do Reino Unido, haverá como país independente. Ela
deixou bem claro que um referendo sobre a independência é a última opção, mas
diz que vai avançar com os preparativos para assegurar que o país está pronto
para ter esse debate antes de o Reino Unido sair da UE. Actualmente a
Primeira-Ministra está envolvida em reuniões e discussões com líderes e altas
entidades da UE e dos estados-membros a fim de encontrar possibilidades para
que Escócia possa permanecer na UE.
Voltando
à Inglaterra. A UKIP e outros partidos de direita exploraram o descontentamento
e a impotência sentidos nas zonas desindustrializadas no norte da Inglaterra e
País de Gales, sugerindo que os problemas – salários baixos, elevadas taxas de
desemprego, escassez de casas económicas, entre outros – são em grande parte
causados pela imigração. Testemunhando a partir da Escócia o desenrolar dos
acontecimentos em Inglaterra, estou chocado com o quão desagradáveis estes se
tornaram. Há cada vez mais notícias de pessoas cuja aparência física não se
coaduna com o estereótipo do “britânico” a ser importunados e insultadas com
ameaças como “go home”, assim como turistas a serem incomodados na rua e
aconselhados a deixar o país.
Deste
modo, uma semana depois do referendo, ficamos numa terra de ninguém. Sem governo
a funcionar, sem plano B, com os dois partidos principais atolados em conflitos
internos, sem liderança, sem ninguém a assumir qualquer responsabilidade.
Receio pelo futuro do meu país, qualquer que seja o resultado.
Director, Contemporary Portuguese History Research
Centre, Universidade de Stirling, Escócia, Reino Unido
2º Texto
Fala
o pobre
Helia Correia
O bem mais precioso que existe em Portugal circula a céu
aberto, às mãos de todos. É o poema épico Os Lusíadas, escrito por
Camões no século XVI. A arrogância lusitana que o inspira apaga-se perante a
beleza dos versos e a claridade renascentista que o autor recebera por
instrução e vida. Curiosamente, os alemães de oitocentos dedicaram-lhe várias
traduções, admirando aquele modo grandioso e escorreito de fixar a memória e a
história da nação como se fossem uma e a mesma coisa. E, na verdade, sem um
texto assim, talvez nem existisse Portugal.
No
Canto III, é feita a apresentação geográfica do pequeno país: "Eis aqui,
quase cume da cabeça da Europa toda, o reino lusitano". E há, de facto, no
recorte litoral, o traçado de um rosto de perfil. E o corpo europeu sai,
deformado, da nobreza cimeira, onde começa o mar e a terra acaba.
De
há uns tempos para cá, porém, abundam títulos anunciando que Portugal se
encontra "na cauda da Europa". Como se entre o poema e os dias
de hoje o animal assim configurado se tivesse virado para o sentido oposto. Estamos
realmente, em tudo, atrás de todos. Um pouco mais desse recuo atiraria
connosco para fora do desenho.
Do
mal, o menos. Antes do 25 de Abril de 1974 nem sequer nos achávamos na cauda da
Europa: estávamos, sim, nos subterrâneos, sem a vermos. De vez em
quando, alguém a alcançava, fugindo às variadas instâncias de polícia que iam
mudando o nome mas não a crueldade. Assim, fugiram os judeus, fugiram sábios,
académicos, médicos, cientistas que, entre os altos espíritos da Europa, tomaram
com justiça os seus lugares. Escritores respiraram o ar fresco das grandes
literaturas românticas, realistas, e trouxeram de volta requintes e ideias. Em
Paris, onde tudo sucedia, poetas e pintores pousavam malas. A Europa era o
"lá fora" e era tudo.
Veio
o salazarismo e esmagou com os pés, durante cinquenta anos, todas as nucas que
tentassem levantar-se. Não eram pés calçados em botas cujo estrondo levava o
horror aos próprios buracos das toupeiras. O inquisidor usava sapatinhos de
padre ou de funcionário das Finanças que eram discretos na aproximação. Pensava
tanto no agrado da Igreja como na salvação do seu regime. Não tinha suficiente
teoria mas também não sentia a falta dela. Ao longo desse tempo prosseguiu a
viagem clandestina para a Europa. A elite política e intelectual, os camponeses
transformados em pedreiros, os desertores da guerra colonial: a mente
pensadora, o braço activo, tudo jorrando como jorra o sangue, sem uma esperança
de voltar à veia, construíam cidades uns, sonhos políticos os outros.
Gasto
mais de metade do meu espaço para falar do passado quando esperam que fale do
futuro. Mas tinha de explicar que nunca fomos plenamente europeus. E,
quando finalmente nos calhou a Europa em sorte, porque nos encontrávamos, já de
pleno direito, ao mesmo nível dela, pedimos a desforra da pobreza e como pobres
nos denunciámos. A excelência do projecto transformava-se no dom de Midas,
naquele excesso de ouro que impede o homem de se alimentar. A conta veio.
Não vem sempre a conta? Pois tudo se passava no domínio do crédito e da dívida.
E a gente sabe que isso acaba sempre exactamente como começou, se não até em
escravidão e suicídios: escravizada e auto-imolada está a Grécia.
A
Europa consegue este prodígio: sem existir, tem a existência ameaçada. Sem
homogeneidade que a defina, vê tremer o que nela é homogéneo, os direitos
humanos, a dignidade e a liberdade, já que da igualdade e da fraternidade
aguardamos ainda a vinda messiânica. Posta em desequilíbrio, impreparada para
dar combate aos velhos-novos inimigos que, sendo tudo aquilo que já fomos,
exterminadores a mando de palavras divinas, e sendo tudo aquilo que hoje somos,
internautas capazes de atravessar paredes, dificilmente se distinguem dos
vizinhos cujas crianças brincam com as nossas.
Desejos
que pareciam repugnantes como a expulsão daquele que é estranho ao nosso clã
sobem do cérebro reptiliano até à fronte e ali inscrevem novamente uma
brutalidade primitiva que, confessemos, preservou o género humano: o egoísmo da
sobrevivência. Pois é a vida, a física e do espírito, o que está a correr um
grande risco aqui.
A
ironia da História é que podemos fazer tudo o que sempre desejámos, manifestar,
falar, votar e debater, respeitar o diferente, instituir os cuidados gratuitos,
isto é, ser cidadão num Estado de confiança e representação. Festejámos demais,
dançámos muito, os que estavam na classe dos criados passaram num abuso para os
salões?
Dizem
que fomos nós, os preguiçosos, os gulosos do Sul, quem fez gorar o projecto da
coisa. Por mim, pequena portuguesa, dou o exemplo: vou buscar o
esfregão e a vassoura, antes que algum refugiado mos cobice.
Escritora
Este
texto, escrito a propósito da Europa, foi publicado originalmente no
diário austríaco Der Standard, na edição de
20 de Junho
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