André Barata, Professor de Filosofia Política, na Universidade da Beira Interior, disserta sobre a
modernidade do Daesh, que a estupefacção geral, ante a barbárie com que reprimem
o prazer e elevam a destruição mortífera ao requinte do sadismo, aparentemente em
nome de princípios religiosos fundamentalistas, faz apontar para primitivismo próprio
de um medievo rigoroso na aplicação de penas e crucificações, e mais talvez uma
Idade Moderna fanaticamente inquisitorial, de combate às heresias (para extorsão
de riquezas dos povos judeus). Tese que o Professor de Filosofia Política contesta,
não só em nome da literariedade seguida pelo Estado Islâmico, que faz da
violência “acto e signo de si mesma”, violência, digamos, no
estado puro, violência porque sim, sem ambivalência, mas porque simultaneamente
ligada às pulsões freudianas de Eros e o de Thanatos, a primeira para a
repelir, como pulsão de vida e de prazer, a segunda, a pulsão da morte, para a aplicar,
sem entraves. E tudo isso é moderno hoje, como o fora nos tempos do holocausto
e dos campos de concentração e dos gulags, sem contemplações nem rebates de consciência,
num fascínio pelo Mal, pela destruição, literalmente
demonstrados, a sociedade assistindo, em cumplicidade, possibilitada pelos meios
tecnológicos.
Parece um excelente estudo. Arrepiante.
O
que tem de moderno o Daesh?
André Barata
08/06/2016
Na tentativa de entender o autoproclamado Estado Islâmico, é
habitual chamar-se a atenção para uma certa expectativa de remedievalização
como forma de legitimar uma recusa da Modernidade. Mas há razões para suspeitar
do contrário – de que o Daesh, ainda que perdido, é tão filho da Modernidade
e dos seus paradoxos como todos nós. Não razões circunstanciais que
resultassem do uso, que poderia ser meramente oportunístico dos recursos que a
tecnologia e a globalização proporciona, mas razões instaladas no âmago
da maneira como o Daesh escolheu proceder. Sublinho dois aspectos que são, na
sua essência íntima, profundamente modernos. Primeiramente, é crucial revelar
como a acção política adoptada pelo auto-proclamado Estado Islâmico é marcada
pela mais extrema literalidade. E este objectivo, de extermínio de
ambivalência, muito mais do que a indústria ou a tecnologia, desde há muito
tem sido apontado como um aspecto central do espírito da modernidade. Esta
literalidade levada para o campo da violência hiper-literaliza-se, fazendo
da violência acto e signo de si mesma.
Em
segundo lugar, o conteúdo dessa acção política literalizadora é, ao mesmo
tempo, muito claramente relacionável com Eros e Thanatos, as
duas pulsões, de vida e de morte, que Freud tratou de interligar em Mal-Estar
na Cultura (Unbehagen in der Kultur). Existe uma extrema repressão
exercida sobre todos os aspectos da pulsão de vida (Eros). O Estado
Islâmico faz tudo o que se possa imaginar ou conceber para reprimir qualquer
possibilidade de obter prazer, interditando quaisquer estímulos que pudessem
dar origem a experiências de prazer. Timbuktu (2014), um filme de
Abderrahmane Sissako, é uma ilustração poética mas dolorosa desta meticulosa
repressão de Eros. Conta como um dos derivados trans-saarianos do islamismo
radicalizado alcança e domina Timbuktu, a histórica cidade do Mali, onde no
passado as rotas de comércio trans-saarianas se encontravam. As cenas de uma
vida quotidiana subitamente transformada vão se sucedendo no filme, com um
forte sentido de documentário: uma mulher punida pelo motivo de ter a pele das
mãos intencionalmente descoberta, recusando vestir luvas por precisar de sentir
com as pontas dos dedos o peixe que vendia, uma mulher que já havia aceitado
ter a sua cabeça e face completamente cobertas; ou um grupo de jovens de ambos
os sexos, punidos por terem sido apanhados a cantar e a tocar música na casa de
um deles; outro grupo de jovens homens, jogando futebol, mas apenas fantasiando
a bola com que jogariam caso tal lhes fosse permitido. Estes não são
sinais de um choque de civilizações. Nesta cultura, as pessoas também cantavam,
dançavam e coloriam eroticamente as suas vidas quotidianas. Mais exactamente,
estes são sinais e consequências muito concretas de um choque com o profundo
mal-estar de uma civilização comum. A
repressão de Eros que Freud identificara 85 anos antes como um princípio
civilizador é confirmada aqui e levada ao limite de inumanidade que a
humanidade pode suportar.
Mas,
a esta extrema repressão de Eros levada a cabo pelo Estado Islâmico e seus
símiles no continente africano, é ainda necessário acrescentar uma extrema
libertação de Thanatos, demasiado evidente para que possa ser ignorada.
A apropriação fundamentalista de Thanatos é verificável na imparável vontade
de destruição de qualquer civilização adquirida, fazendo explodir todos os
monumentos ao alcance, nomeadamente aqueles tão singulares cuja perda constitui
uma definitiva e irreversível morte da história da cultura. A libertação
extrema de Thanatos é também verificável na vontade sem limites de matar e
causar a mais dolorosa mortificação nos inimigos, dada a ver na escala mais
global possível. Por exemplo, aquele piloto jordano de avião
militar, queimado vivo numa jaula de metal. Ou ainda as muitas dezenas ou
centenas de soldados filmados a serem decapitados com facas de gumes curtos,
prolongando o seu horror doloroso e dele tornando cúmplice o mundo todo que vê
e participa, ainda que forçadamente, e sofre como se sujeitasse a um pacto de
sangue.
Estas
duas formas de violência — repressão sem saída do prazer e destruição sem
travão de cultura — são manifestadas pelos meios mais literais e isentos de
ambivalência que se consegue conceber. Na verdade, elas manifestam-se para lá
de qualquer limite concebível que pudesse manter uma afastada da outra. Há
tanto Thanatos destrutivo implicando na repressão de Eros como gozo libidinal
nas explosões de Thanatos. Este é precisamente o limite
impossível que trai a tentativa de levar a cabo uma completa literalização da
experiência humana do inumano.
Esta
literalização que reprime Eros e liberta Thanatos por formas violentas —
literalmente violentas — mantém, contudo, uma relação profundamente íntima com
o Ocidente que contesta. Como se a imagem de uma fosse o negativo
da imagem da outra. Com efeito, as culturas ocidentais, como bem descrevia,
já nos longínquos anos 70, Jean Baudrillard, procedem exactamente ao
contrário, reprimindo a morte, que expulsam do espaço público e de qualquer
lugar de sentido, como se fosse um tabu ou um lugar de mau-gosto, ao mesmo
tempo que se exalta Eros em todas as dimensões da existência. Como duas
peças de puzzle, as duas imagens encaixam-se como se o contorno de uma não
tivesse sido concebido sem conhecer o contorno da outra, ou ainda, e de forma
mais acutilante, como um símbolo único, na verdade o único numa linguagem de
literalidades que se instaura nas duas metades quebradas para lembrar a dívida
que cada uma tem para com a outra. Mas precisamente esse σúμβολον é o recalque
derradeiro dos nossos tempos.
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