sexta-feira, 1 de julho de 2016

Uma tese esclarecedora



André Barata, Professor de Filosofia Política, na Universidade da Beira Interior, disserta sobre a modernidade do Daesh, que a estupefacção geral, ante a barbárie com que reprimem o prazer e elevam a destruição mortífera ao requinte do sadismo, aparentemente em nome de princípios religiosos fundamentalistas, faz apontar para primitivismo próprio de um medievo rigoroso na aplicação de penas e crucificações, e mais talvez uma Idade Moderna fanaticamente inquisitorial, de combate às heresias (para extorsão de riquezas dos povos judeus). Tese que o Professor de Filosofia Política contesta, não só em nome da literariedade seguida pelo Estado Islâmico, que faz da violência “acto e signo de si mesma”, violência, digamos, no estado puro, violência porque sim, sem ambivalência, mas porque simultaneamente ligada às pulsões freudianas de Eros e o de Thanatos, a primeira para a repelir, como pulsão de vida e de prazer, a segunda, a pulsão da morte, para a aplicar, sem entraves. E tudo isso é moderno hoje, como o fora nos tempos do holocausto e dos campos de concentração e dos gulags, sem contemplações nem rebates de consciência, num fascínio pelo Mal,  pela destruição, literalmente demonstrados, a sociedade assistindo, em cumplicidade, possibilitada pelos meios tecnológicos.
Parece um excelente estudo. Arrepiante.

O que tem de moderno o Daesh?
André Barata
08/06/2016
Na tentativa de entender o autoproclamado Estado Islâmico, é habitual chamar-se a atenção para uma certa expectativa de remedievalização como forma de legitimar uma recusa da Modernidade. Mas há razões para suspeitar do contrário – de que o Daesh, ainda que perdido, é tão filho da Modernidade e dos seus paradoxos como todos nós. Não razões circunstanciais que resultassem do uso, que poderia ser meramente oportunístico dos recursos que a tecnologia e  a globalização proporciona, mas razões instaladas no âmago da maneira como o Daesh escolheu proceder. Sublinho dois aspectos que são, na sua essência íntima, profundamente modernos. Primeiramente, é crucial revelar como a acção política adoptada pelo auto-proclamado Estado Islâmico é marcada pela mais extrema literalidade. E este objectivo, de extermínio de ambivalência, muito mais do que a indústria ou a tecnologia, desde há muito tem sido apontado como um aspecto central do espírito da modernidade. Esta literalidade levada para o campo da violência hiper-literaliza-se, fazendo da violência acto e signo de si mesma.
Em segundo lugar, o conteúdo dessa acção política literalizadora é, ao mesmo tempo, muito claramente relacionável com Eros e Thanatos, as duas pulsões, de vida e de morte, que Freud tratou de interligar em Mal-Estar na Cultura (Unbehagen in der Kultur). Existe uma extrema repressão exercida sobre todos os aspectos da pulsão de vida (Eros). O Estado Islâmico faz tudo o que se possa imaginar ou conceber para reprimir qualquer possibilidade de obter prazer, interditando quaisquer estímulos que pudessem dar origem a experiências de prazer. Timbuktu (2014), um filme de Abderrahmane Sissako, é uma ilustração poética mas dolorosa desta meticulosa repressão de Eros. Conta como um dos derivados trans-saarianos do islamismo radicalizado alcança e domina Timbuktu, a histórica cidade do Mali, onde no passado as rotas de comércio trans-saarianas se encontravam. As cenas de uma vida quotidiana subitamente transformada vão se sucedendo no filme, com um forte sentido de documentário: uma mulher punida pelo motivo de ter a pele das mãos intencionalmente descoberta, recusando vestir luvas por precisar de sentir com as pontas dos dedos o peixe que vendia, uma mulher que já havia aceitado ter a sua cabeça e face completamente cobertas; ou um grupo de jovens de ambos os sexos, punidos por terem sido apanhados a cantar e a tocar música na casa de um deles; outro grupo de jovens homens, jogando futebol, mas apenas fantasiando a bola com que jogariam caso tal lhes fosse permitido. Estes não são sinais de um choque de civilizações. Nesta cultura, as pessoas também cantavam, dançavam e coloriam eroticamente as suas vidas quotidianas. Mais exactamente, estes são sinais e consequências muito concretas de um choque com o profundo mal-estar de uma civilização comum. A repressão de Eros que Freud identificara 85 anos antes como um princípio civilizador é confirmada aqui e levada ao limite de inumanidade que a humanidade pode suportar.
Mas, a esta extrema repressão de Eros levada a cabo pelo Estado Islâmico e seus símiles no continente africano, é ainda necessário acrescentar uma extrema libertação de Thanatos, demasiado evidente para que possa ser ignorada. A apropriação fundamentalista de Thanatos é verificável na imparável vontade de destruição de qualquer civilização adquirida, fazendo explodir todos os monumentos ao alcance, nomeadamente aqueles tão singulares cuja perda constitui uma definitiva e irreversível morte da história da cultura. A libertação extrema de Thanatos é também verificável na vontade sem limites de matar e causar a mais dolorosa mortificação nos inimigos, dada a ver na escala mais global possível. Por exemplo, aquele piloto  jordano de avião militar, queimado vivo numa jaula de metal. Ou ainda as muitas dezenas ou centenas de soldados filmados a serem decapitados com facas de gumes curtos, prolongando o seu horror doloroso e dele tornando cúmplice o mundo todo que vê e participa, ainda que forçadamente, e sofre como se sujeitasse a um pacto de sangue.
Estas duas formas de violência — repressão sem saída do prazer e destruição sem travão de cultura — são manifestadas pelos meios mais literais e isentos de ambivalência que se consegue conceber. Na verdade, elas manifestam-se para lá de qualquer limite concebível que pudesse manter uma afastada da outra. Há tanto Thanatos destrutivo implicando na repressão de Eros como gozo libidinal nas explosões de Thanatos. Este é precisamente o limite impossível que trai a tentativa de levar a cabo uma completa literalização da experiência humana do inumano.
Esta literalização que reprime Eros e liberta Thanatos por formas violentas — literalmente violentas — mantém, contudo, uma relação profundamente íntima com o Ocidente que contesta. Como se a imagem de uma fosse o negativo da imagem da outra. Com efeito, as culturas ocidentais, como bem descrevia, já nos longínquos anos 70, Jean Baudrillard, procedem exactamente ao contrário, reprimindo a morte, que expulsam do espaço público e de qualquer lugar de sentido, como se fosse um tabu ou um lugar de mau-gosto, ao mesmo tempo que se exalta Eros em todas as dimensões da existência. Como duas peças de puzzle, as duas imagens encaixam-se como se o contorno de uma não tivesse sido concebido sem conhecer o contorno da outra, ou ainda, e de forma mais acutilante, como um símbolo único, na verdade o único numa linguagem de literalidades que se instaura nas duas metades quebradas para lembrar a dívida que cada uma tem para com a outra. Mas precisamente esse σúμβολον é o recalque derradeiro dos nossos tempos. 

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