Ser pró europeu, para muitos de nós – para o
primeiro ministro português certamente – é exigir que a Europa nos auxilie a
nós, acima de tudo, que repusemos o bem-estar a que todos temos direito,
sobretudo os mais pobrezinhos, e havemos de pagar a dívida um dia, sem que isso
force muito as nossas consciências. Aquilo de ajudar os da travessia
mediterrânica é mais um disfarce, que nos quer pintar como povo generoso
merecedor de simpatia. Mas é também um truque – enquanto se entretiverem com os
invasores, eles, os da União, esquecer-nos-ão por mais algum tempo - o que
António Costa pretende. Entrementes, o investimento virá. E com isso a
prosperidade. As contas são para se ir saldando. Sem sacrifício. No tempo
certo. Nada de preocupação. Havemos de pagar. Salazar também o fez. Discutamos,
pois, a Europa. Enquanto o pau vai e vem…
O
que é ser pró-europeu? É discutir a Europa
Público, 12/06/2016
Tópicos: Alemanha; Reino
Unido; Pedro
Passos Coelho; Mário
Soares; União
Europeia; António
Costa; Refugiados; Bruxelas; Mediterrâneo
1. Durante bastante tempo e à medida que a
crise europeia se aprofundava, em Bruxelas a velha ladainha acrítica e politicamente
correcta insistia em fazer-se ouvir. “A Europa sempre avançou de crise em
crise, esta é apenas mais uma”. Resolve-se como? Com “mais Europa”.
Finalmente, a de que eu gosto mais: a culpa é dos europeístas que, em vez de
defenderem a Europa, dizem mal dela. Houve mesmo uma altura em que a
linguagem de Bruxelas resolveu fazer da Europa uma “potência emergente” de tal
forma o seu futuro era promissor. Enfim, esta moda de ignorar a realidade e
seguir cantando e rindo acabou por desaparecer, mesmo que não totalmente. A
crise é cada vez mais profunda. Os motivos de preocupação mantêm-se. Depois
do euro, os refugiados revelaram uma Europa completamente dividida e, em boa
medida, indiferente ao que se passa à sua volta. O “Brexit” tornou-se um
pesadelo e o seu desfecho ainda pode ser catastrófico. Fiquem ou saiam, a
decisão dos britânicos já está a desencadear movimentos similares noutros
países, que vão da fundadora Holanda aos últimos a chegar do Leste. O último
estudo em 10 países europeus da Pew Research indicava aquele que é talvez o
maior problema: o crescente desafecto dos europeus pela Europa.
2.
António Costa fez, no congresso do PS, duras críticas à forma como as coisas
estão a correr na União Europeia. Caiu o Carmo e a Trindade. Acusaram-no (à direita)
de ter rompido com o europeísmo de Mário Soares e António Guterres. O
primeiro-ministro também tratou de deixar muito claros os limites da crítica à
União Europeia, lembrando aos mais radicais, dentro e fora do seu partido, que
não há futuro para Portugal fora da Europa, da mesma maneira que não haverá
futuro para o socialismo fora do quadro europeu. A frase mais forte que disse
sobre a crise europeia mereceu um aplauso sentido dos congressistas porque
exprime um sentimento que muita gente partilha nos dias de hoje: enquanto
Bruxelas se entretém com as décimas do défice que justificam sanções a Portugal
(e à Espanha), morreram cerca de mil seres humanos no Mediterrâneo apenas numa
semana. Demagogia? Quanto baste para fazer passar uma mensagem que é profundamente
verdadeira. Uma coisa não tem nada a ver com a outra, dizem os críticos. Não?
Uma Europa que não consegue entender-se para salvar milhares de vidas humanas e
que concorre entre si para ver quem ergue muros mais altos ou legislação menos
amiga dos refugiados, também não conseguirá perceber que as soluções
encontradas para sustentar a moeda única exigem uma aplicação inteligente, que
não contribua para piorar a situação dos países em maiores dificuldades e
alimentar a desconfiança mútua entre os europeus.
3.
E o que fazem a Comissão (ou parte dela, que está hoje profundamente dividida)
ou o Eurogrupo? Colocam as sanções em cima da mesa e insistem nelas, ignorando
(será possível?) o efeito que essa simples ameaça, mesmo que nunca venha a ser
concretizada, tem sobre os investidores, lesando seriamente a capacidade de
atrair investimento estrangeiro, sem o qual a economia não cresce. Qual é a
vantagem de “sufocar” a economia? Não se entende. A não ser que seja para
provar que não há alternativa à receita única, fazendo vergar qualquer
pretensão de defender uma alternativa. O Governo está a levar a cabo um esforço
em todas as direcções para convencer os investidores que tenciona cumprir as
obrigações próprias de um país do euro. Precisa de um sinal de Bruxelas ou das
agências de rating para contrariar as hesitações dos mercados. Nada pior para
os seus esforços do que sinais contrários vindos de Bruxelas. Qual é a vantagem
de lançar um anátema sobre Portugal, a não ser que seja uma questão política?
Se em Lisboa, Roma, Paris ou outra qualquer capital europeia os responsáveis
políticos continuarem a exibir o palavreado politicamente correcto ou um
silêncio cómodo – “mais Europa”, “mais integração”, mais seja o que for a que
ninguém liga e, sobretudo, mais imposição sem escolha –, mais os europeus
cairão nos braços dos movimentos nacionalistas, mestres em aproveitar esta
“língua de pau” para conquistar eleitores que não gostam do que vêem.
4.
Há, obviamente, uma fractura profunda em matéria de política económica e social
entre Passos Coelho e António Costa, que, aliás, também divide a Europa. O
primeiro alinhou com a austeridade doa a quem doer. Encarou o programa de
ajustamento como uma oportunidade para cumprir a sua própria agenda política
que, sem a troika, suscitaria muito mais anticorpos. Aceitou a “punição” alemã,
abdicando de qualquer ideia pública sobre o futuro da Europa. Foi, aliás,
criticado por isso no seio do seu próprio partido. O segundo foi para o
Governo com a convicção de que é possível encontrar uma alternativa e que a
Europa pode e deve ser discutida quanto ao seu futuro. É uma diferença
fundamental. Hoje, é o próprio modelo de integração que está em causa, e isso
exige que cada país saiba o que quer e o que não quer, para ser possível
encontrar um compromisso que, tal como no passado, sirva o conjunto.
Mas
o mais curioso é que, a partir desta divergência sobre a economia, as ideias de
Passos e de Costa em matéria de governação do euro voltam a aproximar-se. Mesmo
que seja preciso um grande esforço para descobri-lo. No anterior Governo,
qualquer pensamento sobre o futuro era praticamente clandestino. Estava a cargo
do secretário de Estado dos Assuntos Europeus (Bruno Maçães), uma figura
discreta e mal vista (com alguma injustiça), a quem incumbia informar Bruxelas
dos pontos de vista nacionais em matéria de governação futura da zona euro,
sempre que solicitado. Estava já aí aquilo que hoje Passos Coelho parece
defender (mesmo que fora de portas) sobre a governação do euro pós-austeridade.
O líder do PSD foi à Universidade de Lovaina falar sobre a Europa e muito do
que defendeu não é diferente do que defende o PS, correspondendo
retrospectivamente a uma crítica à forma como Berlim e Bruxelas decidiram enfrentar
a crise da dívida e do euro, nomeadamente a sua incapacidade para gerarem
soluções europeias. A ideia de um orçamento próprio da zona euro capaz
de intervir perante choques assimétricos; a comunitarização dos apoios sociais
(ou parte deles) em caso de uma crise grave que exija reformas com custos muito
grandes no emprego; a criação de um FMI europeu e de um responsável pelo
Tesouro europeu; ou ainda a urgente conclusão da união bancária, à qual falta o
terceiro pilar (do qual a Alemanha não gosta), fundamental para a confiança no
sistema financeiro. Ou seja, aquilo que uma zona monetária deve fazer para
proteger quem a íntegra e que deixou de poder recorrer aos instrumentos de um
país com moeda própria.
Portugal,
como qualquer outro país europeu, tem de debater a Europa que vai emergir desta
crise profunda, muito diferente daquela à qual aderimos, como diferente é o
mundo que nos rodeia. O Governo e a oposição têm de fazê-lo com espírito
aberto. E esse debate é urgente. O que não é admissível é ver uma Comissão
onde existem comissários que já nem sequer disfarçam as suas agendas nacionais,
matando qualquer sentimento comum que lhes caberia salvaguardar, ou ministros
que debitam discursos como se fossem o Livro Vermelho de Mao, ignorando as
consequências das suas palavras para a vida das pessoas. Ser europeísta
hoje é, ao mesmo tempo, manter a opção estratégica de Portugal pela Europa (não
termos alternativa) e contribuir para que a Europa tenha futuro ao serviço dos
europeus. O debate tornou-se portanto fundamental.
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