domingo, 17 de julho de 2016

Havemos de ir a Viana



Ser pró europeu, para muitos de nós – para o primeiro ministro português certamente – é exigir que a Europa nos auxilie a nós, acima de tudo, que repusemos o bem-estar a que todos temos direito, sobretudo os mais pobrezinhos, e havemos de pagar a dívida um dia, sem que isso force muito as nossas consciências. Aquilo de ajudar os da travessia mediterrânica é mais um disfarce, que nos quer pintar como povo generoso merecedor de simpatia. Mas é também um truque – enquanto se entretiverem com os invasores, eles, os da União, esquecer-nos-ão por mais algum tempo - o que António Costa pretende. Entrementes, o investimento virá. E com isso a prosperidade. As contas são para se ir saldando. Sem sacrifício. No tempo certo. Nada de preocupação. Havemos de pagar. Salazar também o fez. Discutamos, pois, a Europa. Enquanto o pau vai e vem…
O que é ser pró-europeu? É discutir a Europa
Público, 12/06/2016
1. Durante bastante tempo e à medida que a crise europeia se aprofundava, em Bruxelas a velha ladainha acrítica e politicamente correcta insistia em fazer-se ouvir. “A Europa sempre avançou de crise em crise, esta é apenas mais uma”. Resolve-se como? Com “mais Europa”. Finalmente, a de que eu gosto mais: a culpa é dos europeístas que, em vez de defenderem a Europa, dizem mal dela. Houve mesmo uma altura em que a linguagem de Bruxelas resolveu fazer da Europa uma “potência emergente” de tal forma o seu futuro era promissor. Enfim, esta moda de ignorar a realidade e seguir cantando e rindo acabou por desaparecer, mesmo que não totalmente. A crise é cada vez mais profunda. Os motivos de preocupação mantêm-se. Depois do euro, os refugiados revelaram uma Europa completamente dividida e, em boa medida, indiferente ao que se passa à sua volta. O “Brexit” tornou-se um pesadelo e o seu desfecho ainda pode ser catastrófico. Fiquem ou saiam, a decisão dos britânicos já está a desencadear movimentos similares noutros países, que vão da fundadora Holanda aos últimos a chegar do Leste. O último estudo em 10 países europeus da Pew Research indicava aquele que é talvez o maior problema: o crescente desafecto dos europeus pela Europa.
2. António Costa fez, no congresso do PS, duras críticas à forma como as coisas estão a correr na União Europeia. Caiu o Carmo e a Trindade. Acusaram-no (à direita) de ter rompido com o europeísmo de Mário Soares e António Guterres. O primeiro-ministro também tratou de deixar muito claros os limites da crítica à União Europeia, lembrando aos mais radicais, dentro e fora do seu partido, que não há futuro para Portugal fora da Europa, da mesma maneira que não haverá futuro para o socialismo fora do quadro europeu. A frase mais forte que disse sobre a crise europeia mereceu um aplauso sentido dos congressistas porque exprime um sentimento que muita gente partilha nos dias de hoje: enquanto Bruxelas se entretém com as décimas do défice que justificam sanções a Portugal (e à Espanha), morreram cerca de mil seres humanos no Mediterrâneo apenas numa semana. Demagogia? Quanto baste para fazer passar uma mensagem que é profundamente verdadeira. Uma coisa não tem nada a ver com a outra, dizem os críticos. Não? Uma Europa que não consegue entender-se para salvar milhares de vidas humanas e que concorre entre si para ver quem ergue muros mais altos ou legislação menos amiga dos refugiados, também não conseguirá perceber que as soluções encontradas para sustentar a moeda única exigem uma aplicação inteligente, que não contribua para piorar a situação dos países em maiores dificuldades e alimentar a desconfiança mútua entre os europeus.
3. E o que fazem a Comissão (ou parte dela, que está hoje profundamente dividida) ou o Eurogrupo? Colocam as sanções em cima da mesa e insistem nelas, ignorando (será possível?) o efeito que essa simples ameaça, mesmo que nunca venha a ser concretizada, tem sobre os investidores, lesando seriamente a capacidade de atrair investimento estrangeiro, sem o qual a economia não cresce. Qual é a vantagem de “sufocar” a economia? Não se entende. A não ser que seja para provar que não há alternativa à receita única, fazendo vergar qualquer pretensão de defender uma alternativa. O Governo está a levar a cabo um esforço em todas as direcções para convencer os investidores que tenciona cumprir as obrigações próprias de um país do euro. Precisa de um sinal de Bruxelas ou das agências de rating para contrariar as hesitações dos mercados. Nada pior para os seus esforços do que sinais contrários vindos de Bruxelas. Qual é a vantagem de lançar um anátema sobre Portugal, a não ser que seja uma questão política? Se em Lisboa, Roma, Paris ou outra qualquer capital europeia os responsáveis políticos continuarem a exibir o palavreado politicamente correcto ou um silêncio cómodo – “mais Europa”, “mais integração”, mais seja o que for a que ninguém liga e, sobretudo, mais imposição sem escolha –, mais os europeus cairão nos braços dos movimentos nacionalistas, mestres em aproveitar esta “língua de pau” para conquistar eleitores que não gostam do que vêem.
4. Há, obviamente, uma fractura profunda em matéria de política económica e social entre Passos Coelho e António Costa, que, aliás, também divide a Europa. O primeiro alinhou com a austeridade doa a quem doer. Encarou o programa de ajustamento como uma oportunidade para cumprir a sua própria agenda política que, sem a troika, suscitaria muito mais anticorpos. Aceitou a “punição” alemã, abdicando de qualquer ideia pública sobre o futuro da Europa. Foi, aliás, criticado por isso no seio do seu próprio partido. O segundo foi para o Governo com a convicção de que é possível encontrar uma alternativa e que a Europa pode e deve ser discutida quanto ao seu futuro. É uma diferença fundamental. Hoje, é o próprio modelo de integração que está em causa, e isso exige que cada país saiba o que quer e o que não quer, para ser possível encontrar um compromisso que, tal como no passado, sirva o conjunto.
Mas o mais curioso é que, a partir desta divergência sobre a economia, as ideias de Passos e de Costa em matéria de governação do euro voltam a aproximar-se. Mesmo que seja preciso um grande esforço para descobri-lo. No anterior Governo, qualquer pensamento sobre o futuro era praticamente clandestino. Estava a cargo do secretário de Estado dos Assuntos Europeus (Bruno Maçães), uma figura discreta e mal vista (com alguma injustiça), a quem incumbia informar Bruxelas dos pontos de vista nacionais em matéria de governação futura da zona euro, sempre que solicitado. Estava já aí aquilo que hoje Passos Coelho parece defender (mesmo que fora de portas) sobre a governação do euro pós-austeridade. O líder do PSD foi à Universidade de Lovaina falar sobre a Europa e muito do que defendeu não é diferente do que defende o PS, correspondendo retrospectivamente a uma crítica à forma como Berlim e Bruxelas decidiram enfrentar a crise da dívida e do euro, nomeadamente a sua incapacidade para gerarem soluções europeias. A ideia de um orçamento próprio da zona euro capaz de intervir perante choques assimétricos; a comunitarização dos apoios sociais (ou parte deles) em caso de uma crise grave que exija reformas com custos muito grandes no emprego; a criação de um FMI europeu e de um responsável pelo Tesouro europeu; ou ainda a urgente conclusão da união bancária, à qual falta o terceiro pilar (do qual a Alemanha não gosta), fundamental para a confiança no sistema financeiro. Ou seja, aquilo que uma zona monetária deve fazer para proteger quem a íntegra e que deixou de poder recorrer aos instrumentos de um país com moeda própria.
Portugal, como qualquer outro país europeu, tem de debater a Europa que vai emergir desta crise profunda, muito diferente daquela à qual aderimos, como diferente é o mundo que nos rodeia. O Governo e a oposição têm de fazê-lo com espírito aberto. E esse debate é urgente. O que não é admissível é ver uma Comissão onde existem comissários que já nem sequer disfarçam as suas agendas nacionais, matando qualquer sentimento comum que lhes caberia salvaguardar, ou ministros que debitam discursos como se fossem o Livro Vermelho de Mao, ignorando as consequências das suas palavras para a vida das pessoas. Ser europeísta hoje é, ao mesmo tempo, manter a opção estratégica de Portugal pela Europa (não termos alternativa) e contribuir para que a Europa tenha futuro ao serviço dos europeus. O debate tornou-se portanto fundamental.

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