Um texto de homenagem, embora reticente, a um
homem – José Pacheco Pereira - que tem, indiscutivelmente, no nosso
país, um lugar de peso – peso intelectual, certamente – demonstrado, quer na
figura de nobres barbas que remete para outras nobres barbas de intelectuais de
cá - como as de Joaquim Letria - de cantores da intervenção - como Pedro
Barroso - ou de graves poetas - como Manuel Alegre, que ostenta, contudo, um
diferente carisma, inalterado, de soturno sofrimento pelos humilhados do seu
país ou de também soturna defesa dos seus direitos. E remete, sobretudo, para os
antepassados criadores das filosofias revolucionárias - Marx, Engels - ou outros
nobres continuadores destes - revolucionários defensores dos povos americanos
do Sul: Fidel Castro, Che Guevara e tantos mais cultivadores do espírito e,
simultaneamente, da aparência física, que poderá ter origem num avatar comum da
sua comum recreação figurativa, que o espelho reflecte.
Mas, por muito versáteis que aparentem ser as tergiversações
intelectuais de Pacheco Pereira, que Castro Guedes define como labirínticas, há
muito que elas me são familiares na minha própria viagem temporal, quer no
passado mais recuado, quer no mais próximo. Não, não fui dos enriquecidos por
leituras “proibidas” dos grandes pensadores que lhes apontavam o “recto”
caminho, em superioridades desfeiteadoras dos mais tacanhos, e perceptivas dos
desníveis sociais praticados pelos seus governos. Fui dos que se limitavam a sensibilizar-se com as histórias tristes mas poderosas dos
Charles Dickens, dos Steinbecks e outros, e, simultaneamente preenchiam os seus
ócios com as novelas cor de rosa que lhes mostravam um mundo da felicidade
almejada e crível, nessa altura da vida adolescente. Não fui, mais tarde, dos que
alguma vez pudessem pôr em causa o legado pátrio que os beneméritos das
filosofias superiores entendiam destruir a favor dos povos naturais desse
legado, esquecendo cinicamente outros continentes ou países – América,
Austrália – donde a população branca igualmente deveria ser expulsa a favor da
aborígene – não fora a sua situação de independência atempada, relativamente
aos povos europeus que os tinham conquistado, por meio da destruição de grande
parte desses povos primitivos.
Muitos desses, que conheci, críticos ocultos do
situacionismo vigente então, acabados esses trâmites imprescindíveis de
abandono do fardo histórico, não tardaram a adaptar-se ao novo sistema, após a
vigência efémera no regime pelo qual lutaram e donde saíram, depressa cientes
das desonestidades e barbaridades pendentes de uma revolução a coberto de um
presumível conhecimento dos ditames marxistas, mas, acima de tudo, movida por
vil interesse de mando e poder. E todos esses virtuosos do marxismo, depressa
se desfizeram do emplastro, singrando pelos horizontes de uma aparente cordura governativa que a todos acolhia
democraticamente, mas cada vez mais marginalizando o partido do PREC, para
singrar esplendorosamente segundo o convénio europeu salvador do desastre.
E foi neste clima de travessia, amparada externamente,
com muitas cambalhotas internas de mistura,
que se inseriram os Pachecos Pereiras dos labirintos tortuosos das
intelectualidades capazes de todas as tergiversações, mas não enigmáticos, no
desconcerto, por vezes, de algumas suas teorias, provindas de um amplo e
superior estudo que lhes dá pano para muitas mangas discursivas, mas que a
prosa clara e lógica de um Lobo Xavier, por exemplo, consegue desmistificar, na
Quadratura do Círculo. De resto, concordo com uma certa probidade
intelectual de Pacheco Pereira, e admirarei sempre o seu dom de exposição oral
e escrita, juntamente com as barbas da nobre intelectualidade, apesar de tudo sem
jactância.
Que enigma labiríntico é
Pacheco Pereira?
Tenho dado por mim a interrogar-me por que será que cada vez
me identifico mais vezes com o que este homem diz. Será porque ele girou 180
graus? Ou girei eu?... Não me parece. Claro que, como tudo no Mundo, ambos
devemos ter girado alguns graus. Mas nem sempre, necessariamente, no sentido de
uma aproximação.
Então
porquê? Qual será a principal razão?
Também
sei que não é por qualquer tipo de tacticismo político dentro de mim. Se o
fosse, eu não estaria, certamente, a entrar N vezes em rota de colisão frontal,
e violenta, com as “esquerdas”. Mesmo que isso não signifique a mais remota
possibilidade de aproximação a estas “direitas” que temos (e não só em
Portugal). E talvez seja por isto mesmo que cada vez mais me delicio quando dou
conta que estou a pensar com ele. Nem sempre como ele. Mas com a possibilidade
de partilhar do pensamento de outro. De um outro que pensa fora do mainstream
do politicamente correcto, contrariando mesmo um certo (supostamente) à margem,
que é o ramalhete que decora o próprio status quo.
Por
acaso – por acaso, como quem diz – é de Pacheco Pereira que estou a falar. Mas
poderia (dificilmente no panorama real) ser de uma outra singularidade
intelectual numa zona – a dos intelectuais – que fazem o percurso inverso das
gerações que os antecederam. Com ou sem razão, às vezes a extremos de práticas
profundamente chocantes e, hoje, seguramente condenáveis, eles, que tantas
vezes se enganaram (tragicamente o caso dos comunistas com Estaline),
representavam verdadeiramente uma consciência do Mundo. Enquanto o sentido
centrípeto deste sistema de ideias (travestidas de “pragmas”) os atrai para a
ribalta e/ou para o medo de serem confundidos como herdeiros do que já ruiu.
Mas não cuidam de saber, de se interrogar, se amanhã não são eles os
verdadeiros herdeiros históricos – não ideológicos – dos outros. Ou seja: os
que perdem de vista a capacidade crítica para aceitar o inaceitável, mesmo que
condicionado pelo ar de época, e se substituem na ideação de um Fim da
História, ainda por cima determinista.
Sem
complexos, medos ou maravilhamentos, vendo o lado subjectivo da coisa, Pacheco
Pereira já exorcizou fantasmas: foi marxista-leninista-maoista (convictamente,
penso) e foi (convictamente também, creio) um neoliberal, com ou sem rótulo
autocolante. Mas como o que foi – e é – não se atém a estes, não vive no terror
de lhe descobrirem o passado ideologicamente criminoso, nem de ter de se
justificar dele: seja um ou o outro. Porquê? Ora, exactamente porque o que foi,
ou o que é, resulta de pensamento próprio e não de afiliação na marcha da
História… Quando, como o próprio diz, a História, afinal, é do que de mais
caótico há. Mesmo que se lhe possam aplicar assimptotas, direi eu por mim, não
é inteligente tomá-las por leis. Muito menos quando, mesmo ao nível das
ciências exactas, a Física Quântica veio estoirar com todos os determinismos.
Julgo
que é por isto tudo que, tal como, outrora, certos pensadores, foram tidos como
faróis da Humanidade no meio de uma escuridão em que nada se via, a atitude
crítica genuína deste homem é a sombra necessária para descansar de um
caleidoscópio de sóis artificiais que nos atordoam e cegam. Nele, uma ideia não
é reduzida a um sound-byte, nem as sinapses que a originam residem num bit,
como uma combinação binária de dois neurónios apenas. Mesmo quando produz um
sound-byte, este resulta de uma síntese de algo mais do que os cinco minutos de
fama de que Warhol falava. Não creio que Pacheco Pereira corra atrás dos
holofotes. Se alguma coisa o atrai na passerelle mediática é percorrer o
caminho sem olhar qual a que terceiros desenrolaram à sua frente. Se assim não
fosse não referiria Kackzinsky – independentemente da distância que dele tenha
– sem receio de interrogar a civilização tecno-industrial. Nem teria, há
bastantes anos já, feito a evocação de um adversário político de juventude,
mais ou menos desconhecido, de quem a própria família ideológica se esquece:
Francisco Sardo.
Isto
não é um elogio a Pacheco Pereira, nem sou pacheco-pereirista: coisa que,
felizmente, o seu pensamento inesperado não permite ser-se. Aliás, se
escarafunchar bem, é provável que sejam mais as ideias que nos separam do que
as que nos juntam. Mas junto-me a elas – ou junto-me nelas – porque se tornaram
fruto raro da árvore chamada Pensamento, assim com P grande e tudo.
Afinal,
não é ele um enigma, nem um labirinto. Enigmático labirinto é este, em que nos
meteram em sucessivas little boxes, que Seeger glosava na sua canção.
Encenador,
castroguedes9@gmail.com
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