quinta-feira, 28 de julho de 2016

Labirinto, não enigma.



Um texto de homenagem, embora reticente, a um homem – José Pacheco Pereira - que tem, indiscutivelmente, no nosso país, um lugar de peso – peso intelectual, certamente – demonstrado, quer na figura de nobres barbas que remete para outras nobres barbas de intelectuais de cá - como as de Joaquim Letria - de cantores da intervenção - como Pedro Barroso - ou de graves poetas - como Manuel Alegre, que ostenta, contudo, um diferente carisma, inalterado, de soturno sofrimento pelos humilhados do seu país ou de também soturna defesa dos seus direitos. E remete, sobretudo, para os antepassados criadores das filosofias revolucionárias - Marx, Engels - ou outros nobres continuadores destes - revolucionários defensores dos povos americanos do Sul: Fidel Castro, Che Guevara e tantos mais cultivadores do espírito e, simultaneamente, da aparência física, que poderá ter origem num avatar comum da sua comum recreação figurativa, que o espelho reflecte.
Mas, por muito versáteis que aparentem ser as tergiversações intelectuais de Pacheco Pereira, que Castro Guedes define como labirínticas, há muito que elas me são familiares na minha própria viagem temporal, quer no passado mais recuado, quer no mais próximo. Não, não fui dos enriquecidos por leituras “proibidas” dos grandes pensadores que lhes apontavam o “recto” caminho, em superioridades desfeiteadoras dos mais tacanhos, e perceptivas dos desníveis sociais praticados pelos seus governos. Fui dos que se limitavam a sensibilizar-se  com as histórias tristes mas poderosas dos Charles Dickens, dos Steinbecks e outros, e, simultaneamente preenchiam os seus ócios com as novelas cor de rosa que lhes mostravam um mundo da felicidade almejada e crível, nessa altura da vida adolescente. Não fui, mais tarde, dos que alguma vez pudessem pôr em causa o legado pátrio que os beneméritos das filosofias superiores entendiam destruir a favor dos povos naturais desse legado, esquecendo cinicamente outros continentes ou países – América, Austrália – donde a população branca igualmente deveria ser expulsa a favor da aborígene – não fora a sua situação de independência atempada, relativamente aos povos europeus que os tinham conquistado, por meio da destruição de grande parte desses povos primitivos.
Muitos desses, que conheci, críticos ocultos do situacionismo vigente então, acabados esses trâmites imprescindíveis de abandono do fardo histórico, não tardaram a adaptar-se ao novo sistema, após a vigência efémera no regime pelo qual lutaram e donde saíram, depressa cientes das desonestidades e barbaridades pendentes de uma revolução a coberto de um presumível conhecimento dos ditames marxistas, mas, acima de tudo, movida por vil interesse de mando e poder. E todos esses virtuosos do marxismo, depressa se desfizeram do emplastro, singrando pelos horizontes de uma aparente cordura  governativa que a todos acolhia democraticamente, mas cada vez mais marginalizando o partido do PREC, para singrar esplendorosamente segundo o convénio europeu salvador do desastre.
E foi neste clima de travessia, amparada externamente, com muitas cambalhotas internas de mistura,  que se inseriram os Pachecos Pereiras dos labirintos tortuosos das intelectualidades capazes de todas as tergiversações, mas não enigmáticos, no desconcerto, por vezes, de algumas suas teorias, provindas de um amplo e superior estudo que lhes dá pano para muitas mangas discursivas, mas que a prosa clara e lógica de um Lobo Xavier, por exemplo, consegue desmistificar, na Quadratura do Círculo. De resto, concordo com uma certa probidade intelectual de Pacheco Pereira, e admirarei sempre o seu dom de exposição oral e escrita, juntamente com as barbas da nobre intelectualidade, apesar de tudo sem jactância.
Que enigma labiríntico é Pacheco Pereira?
Castro Guedes  - Público, 17/06/2016  Tópicos: Governo; PSD; História; Pacheco Pereira
Tenho dado por mim a interrogar-me por que será que cada vez me identifico mais vezes com o que este homem diz. Será porque ele girou 180 graus? Ou girei eu?... Não me parece. Claro que, como tudo no Mundo, ambos devemos ter girado alguns graus. Mas nem sempre, necessariamente, no sentido de uma aproximação.
Então porquê? Qual será a principal razão?
Também sei que não é por qualquer tipo de tacticismo político dentro de mim. Se o fosse, eu não estaria, certamente, a entrar N vezes em rota de colisão frontal, e violenta, com as “esquerdas”. Mesmo que isso não signifique a mais remota possibilidade de aproximação a estas “direitas” que temos (e não só em Portugal). E talvez seja por isto mesmo que cada vez mais me delicio quando dou conta que estou a pensar com ele. Nem sempre como ele. Mas com a possibilidade de partilhar do pensamento de outro. De um outro que pensa fora do mainstream do politicamente correcto, contrariando mesmo um certo (supostamente) à margem, que é o ramalhete que decora o próprio status quo.
Por acaso – por acaso, como quem diz – é de Pacheco Pereira que estou a falar. Mas poderia (dificilmente no panorama real) ser de uma outra singularidade intelectual numa zona – a dos intelectuais – que fazem o percurso inverso das gerações que os antecederam. Com ou sem razão, às vezes a extremos de práticas profundamente chocantes e, hoje, seguramente condenáveis, eles, que tantas vezes se enganaram (tragicamente o caso dos comunistas com Estaline), representavam verdadeiramente uma consciência do Mundo. Enquanto o sentido centrípeto deste sistema de ideias (travestidas de “pragmas”) os atrai para a ribalta e/ou para o medo de serem confundidos como herdeiros do que já ruiu. Mas não cuidam de saber, de se interrogar, se amanhã não são eles os verdadeiros herdeiros históricos – não ideológicos – dos outros. Ou seja: os que perdem de vista a capacidade crítica para aceitar o inaceitável, mesmo que condicionado pelo ar de época, e se substituem na ideação de um Fim da História, ainda por cima determinista.
Sem complexos, medos ou maravilhamentos, vendo o lado subjectivo da coisa, Pacheco Pereira já exorcizou fantasmas: foi marxista-leninista-maoista (convictamente, penso) e foi (convictamente também, creio) um neoliberal, com ou sem rótulo autocolante. Mas como o que foi – e é – não se atém a estes, não vive no terror de lhe descobrirem o passado ideologicamente criminoso, nem de ter de se justificar dele: seja um ou o outro. Porquê? Ora, exactamente porque o que foi, ou o que é, resulta de pensamento próprio e não de afiliação na marcha da História… Quando, como o próprio diz, a História, afinal, é do que de mais caótico há. Mesmo que se lhe possam aplicar assimptotas, direi eu por mim, não é inteligente tomá-las por leis. Muito menos quando, mesmo ao nível das ciências exactas, a Física Quântica veio estoirar com todos os determinismos.
Julgo que é por isto tudo que, tal como, outrora, certos pensadores, foram tidos como faróis da Humanidade no meio de uma escuridão em que nada se via, a atitude crítica genuína deste homem é a sombra necessária para descansar de um caleidoscópio de sóis artificiais que nos atordoam e cegam. Nele, uma ideia não é reduzida a um sound-byte, nem as sinapses que a originam residem num bit, como uma combinação binária de dois neurónios apenas. Mesmo quando produz um sound-byte, este resulta de uma síntese de algo mais do que os cinco minutos de fama de que Warhol falava. Não creio que Pacheco Pereira corra atrás dos holofotes. Se alguma coisa o atrai na passerelle mediática é percorrer o caminho sem olhar qual a que terceiros desenrolaram à sua frente. Se assim não fosse não referiria Kackzinsky – independentemente da distância que dele tenha – sem receio de interrogar a civilização tecno-industrial. Nem teria, há bastantes anos já, feito a evocação de um adversário político de juventude, mais ou menos desconhecido, de quem a própria família ideológica se esquece: Francisco Sardo.
Isto não é um elogio a Pacheco Pereira, nem sou pacheco-pereirista: coisa que, felizmente, o seu pensamento inesperado não permite ser-se. Aliás, se escarafunchar bem, é provável que sejam mais as ideias que nos separam do que as que nos juntam. Mas junto-me a elas – ou junto-me nelas – porque se tornaram fruto raro da árvore chamada Pensamento, assim com P grande e tudo.
Afinal, não é ele um enigma, nem um labirinto. Enigmático labirinto é este, em que nos meteram em sucessivas little boxes, que Seeger glosava na sua canção.

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