quinta-feira, 28 de julho de 2016

Mexer o esqueleto, um fardo



Às  vezes, quando telefono à minha filha para uma hipótese de bica pingada – a dela, a minha apenas normal – no café do lado de lá da praceta, pretexto para um percorrer de metros útil como exercício diário que me dizem necessário às articulações a emperrar – apanho-a ainda a dormir, o que me põe frustrada e irada contra mim própria, cujos lazeres de leitura dos Públicos que me traz a minha irmã deviam constituir amparo suficiente aos pruridos de solidão que é de bom tom evocar quando se trata da referência à terceira idade.
Ontem, pois, em descanso de leitura, telefonei à Paula para saber se sempre aparecia, como tinha prometido, mas a voz era de sono e respondeu que estava a “começar a mexer o esqueleto”, dito a que achei muita graça por me parecer perfeitamente compatível com as dificuldades actualmente sentidas com o meu próprio, que mexo com extrema precaução, sobretudo quando passo a calçada, em certos sítios com buracos bem assentes, os blocos calcários acumulados em redor, com alguns no centro da cova em jeito de malmequer desfolhado. E lembro com saudade os tempos de moça, que se desunhava em correrias, com os parceiros de brincadeiras, num terreno situado atrás da nossa casa, que limpámos de vidros, cacos e pedras, para as corridas, os jogos de basebol, caçador, paulito, berlindes, voleibol. Era uma casa do “Estado”, de renda mais em conta, que o meu pai alugara quando regressámos a Lourenço Marques, para junto dele, no vapor do mesmo nome – Lourenço Marques - que, por contraste com a nossa energia juvenil, levou 33 dias a chegar ao melhor porto da costa oriental africana. Agora estou bem pior do que o vapor, embarcada num esqueleto rangente e temeroso da calçada, por isso achei graça à expressão da Paula que, quando, finalmente, chegou, me trazia dois litros de azeite transmontano, que compra a uma colega, e me ofereceu talvez com o fito de mo olear melhor, dada a pureza daquele. Entretanto, desconfiada dos minguados efeitos do dito azeite sobre o meu esqueleto, marquei consulta no Hospital de Santana. Mas terei que me precaver até lá na travessia da calçada, pois as férias médicas só no outono  permitirão a concretização da consulta. Entretanto, em conversa com a nossa amiga, soube que o próprio Papa Francisco também caiu hoje, mas, logo erguido e amparado, continuou na sua santa senda de conselheiro dos povos. Felizmente não havia calçada.

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