Clara Ferreira Alves diz não pertencer ao grupo
trucidador de Tony Blair por crimes de guerra, por conta da do Iraque. Mas tal
declaração parece contraditória da sanha com que lhe descobre as perfídias da
sobrevivência e que ela considera desprezíveis.
De facto, Tony Blair sempre me pareceu uma figura
simpática, nobremente sorridente, mesmo quando atordoaram – ele e os americanos,
com George Bush à cabeça, - o mundo, com as suas acusações contra Saddam
Husseim e lhe invadiram o Iraque à conta de um hipotético arsenal militar,
provável destruidor do mundo. Também tive medo então – nunca se sabe como podem
agir os povos sem equilíbrio racional, ou governados por ditadores
bestificados, como é, igualmente, o da Coreia do Norte, um tal sinistro Kim
Jong-un e nem se me dava que os Estados Unidos o pusessem a andar – pois, graças
à sua força de primeira potência mundial que não desejam perder, têm actuado sempre
que se lhes pede, e sobretudo para impedir que o comunismo alastre, ou as armas
nucleares, que devem ser usadas com moderação, como certos vinhos capitosos e
como foi o caso das suas bombas sobre as conhecidas cidades japonesas da
segunda guerra, bombas, afinal, de nível muito inferior às actuais. Mas parecem
cada vez menos disponíveis, os EU, mais renitentes em ajudar os povos, e
sobretudo se o Donald Trump ganhar as eleições, que tem cara de chefiar como o
da Coreia, com muito orgulho próprio, espalhado numa cara de caricatura. Mas
tenho, de facto, pena do povo norte-coreano, assim submissos, conquanto eles
pareçam mesmo amar o seu chefe, depois de tanto chorarem o pai deste, “que
era cousa estranha de ver”, para usarmos a expressão, um tanto arcaica, o
que não é de estranhar, do nosso Fernão Lopes.
Mas a execução de Saddam foi horrorosa, teledifundida,
para exemplo dos espectáculos posteriores com que, sobretudo os povos islâmicos
fundamentalistas, vão exercendo as suas revanches. É claro que, se víssemos o
Hitler ou o Estaline e outros de calibre parecido a serem enforcados, eu julgo
que apreciaria, mas do Saddam até tive pena. É claro que muitos dos Estados
Americanos têm a pena de morte, mas passa-se tudo em família, as coisas não
transpiram cá para fora com tanta facilidade, e nem se pensa nisso, excepto os
habituais pensantes, além de que eles são extraordinários a descobrir mundos e
a ajudar nas desgraças dos povos do mundo de cá (alguns dos quais eles ajudaram
a destruir vendendo aos chefes desses as armas necessárias para esse efeito
destrutivo), vivemos, assim, mais tranquilos, sabendo que eles ajudam a matar a
fome e a sanar as feridas, o que julgo não acontecer com os chineses, que
também têm pena de morte, ainda mais despercebida, e agora falam-nos de El
Salvador como o país mais perigoso do mundo, com os seus gangues, e de outros
países da América Central, parece que a loucura devasta cada vez mais esta
Terra que já foi edénica no princípio.
A E contém, pois, o magnífico artigo de Clara
Ferreira Alves, de pormenor histórico vasto e adequado e clareza discursiva,
embora um pouco paradoxal nos argumentos, que vão num crescendo de acusações
graves, depois de se ter demarcado do julgamento e condenação de Tony Blair,
mas a E traz-nos também notícias
do historial das sondas americanas a Júpiter, e sobretudo da actual Juno como
produto do mesmo povo americano que aceita a pena de morte e a vulgarização das
armas de fogo e simultaneamente lança sondas para os espaços, de efeitos cada
vez mais incalculáveis, não só científicos mas – quem sabe? – mais futuros destruidores
ainda deste sítio onde vivemos.
O que é certo é que, como muito bem pondera Clara
Ferreira Alves, foi com a tal invasão do Iraque que tudo começou, embora o
terrorismo seja muito mais antigo, os franceses até tiveram La Terreur. E para todos os efeitos, nós, os muitos
africanos que há uns anos viemos invadindo a Europa e outros continentes,
também fomos vítimas disso, lá no sul, mas não contamos, até porque os nossos
terroristas não eram tão civilizados como os de agora, só mandatados por
Moscovo e com armas cedidas por esses e apoiados pelos nossos, para o virar da
página, coisa de somenos. Mas agora é que o terrorismo é grave, passa-se na
Europa, com gente civilizada, e é com actos maléficos que nos atingem, esses do
recém-criado Estado Islâmico, industriados em religião e noutras perfídias como
as do gosto de matar apenas porque sim. Também, por arremedo, lá pela América
Central, os gangues. Cada vez mais
imparáveis, os tiroteios. Em breve, o mundo será convertido em gangues.
«lls sont fous, ces
Romains!» Como a gente se ria, com as
graças do Obélix, sem pensar nestas tragédias. Até o sentido de humor mudou, de
ataque directo e mal educado, agora, a pedir retaliação, num vaivém, tu cá tu
lá, imparável. E sem esperança de viragem.
A mãe de todas as guerras
Clara Ferreira Alves
E, A Pluma Caprichosa, 9.07.2016
O relatório Chilcot, ordenado por Gordon Brown, acaba
de ser publicado. Não é a ocasião mais favorável para a Grã-Bretanha, que
conhece pela primeira vez em muito tempo a humilhação e downgrading da sua vida
pública. O velho parlamentarismo inglês, no país que deu ao mundo os Monty
Python, reduzido a uma caricatura. Boris, Gove, Cameron, Farage, Corbyn e
companhia fizeram mais por isto. Como avisou Churchill, unidos venceremos,
divididos seremos vencidos. Neste cenário de cobardes e demissionários, Tony
Blair poderia voltar a emergir como um chefe mais ou menos responsável. No
trabalhismo, deve ter havido quem suspirasse pelo blairismo. Até ao Iraque,
Tony Blair foi o maior político inglês desde mrs. Thatcher. Reformou um partido
que estava esclerótico, e refém de extremistas e de sindicatos marxistas,
venceu todas as eleições, deu cabo dos conservadores e iniciou o que parecia
ser a via certa para o socialismo em crise, a académica Terceira Via. Os
teóricos da Europa pós-Muro pareciam ter a solução para todos os males. No Kosovo
e na Bósnia, Blair demonstrou, contra a vontade de Bill Clinton e ensombrando a
relação especial, que a NATO devia intervir e que os Estados Unidos tinham a
obrigação moral de não abandonar os Balcãs ao imperialismo e nacionalismo da
Sérvia. Era uma decisão militarista que a história provou estar certa. Slobodan
Milosevic acabou sentado no Tribunal Internacional de Haia e morreu na cela. Agora,
Blair é ameaçado esporadicamente com esse Tribunal. Quem é, afinal, Tony Blair?
Um estadista enganado ou um criminoso convertido ao catolicismo? Não
pertenço ao grupo que quer vê-lo enganado e condenado por crimes de guerra. Não
faria sentido, nem seria coerente, a não ser que fossem buscar Kissinger a
casa. Quando tomou a decisão de invadir o Iraque juntamente com o grupo de
falcões americanos que estavam nos antípodas dos trabalhistas, Tony Blair era
um homem convencido da bondade da invasão. Saddam era um carniceiro, um
carniceiro ao qual toda a Europa tinha vendido armas e serviços a preço de ouro
e pagos com o dinheiro do petróleo, um carniceiro ao qual Donald Rumsfeld tinha
apertado a mão nos anos oitenta, os anos em que o Irão era o inimigo principal.
O que não impediu Reagan de vender armas aos iranianos em troca da libertação de
reféns americanos no Líbano, sobretudo de um operacional da CIA que acabou
torturado, morto e filmado, iniciando a indústria dos vídeos de reféns. Com o
dinheiro iraniano tinto de sangue, os conselheiros de Reagan, incluindo um
bandido chamado Oliver North, armaram os contras da Nicarágua. Comparado com o
Irangate, o Watergate é uma brincadeira. Nixon, um Presidente com uma
inteligente política externa, teve azar. Reagan teve sorte e saiu da História pela
porta grande, com uma frase certeira sobre o Muro de Berlim cozinhada pelos
estrategos e por Peggy Noonan, competente redatora de discursos.
O azar de Blair declarou-se mais tarde. Até ao
suicídio do perito em armas de destruição maciça David Kelly, mandado
desacreditar pela quinta coluna de Blair, e até às guerras com a BBC, Blair tinha
tido sorte. O desastre do Iraque, consumado numa vitória militar seguida de um
período de neocolonialismo aventureiro, irresponsável, corruptor e corrompido,
só começou a ser visível a partir de 2006, quando Saddam foi executado no dia
30 de dezembro. O julgamento e o filme da execução, sancionado por ingleses
e americanos, são uma vergonha para qualquer democracia. Em 2007, o
desastre era claríssimo. Há que louvar Gordon Brown, em 2009, por ter
ordenado este inquérito que poderia manchar, e mancha, a reputação do seu
partido, mesmo que as razões para o fazer fossem as da destruição do rival.
Quod erat demonstrandum.
Somos todos, na Europa, herdeiros deste desastre,
desta guerra do Iraque. Uma guerra que alterou os mapas e as hegemonias e
instáveis equilíbrios do Médio Oriente. A Síria é o resultado do Iraque. O Daesh
é o resultado do Iraque. O Patriot Act, Guantánamo, a tortura praticada por
Estados democráticos, as rendições extraordinárias, a crise dos refugiados, o
terrorismo contemporâneo, os atentados brutais em Bagdade (que o Ocidente
ignora), os mortos, contas feitas neste momento mais de um milhão, e a
destruição total e irreversível de um país charneira, onde se cavou mais a
fissura entre sunitas e xiitas, são o resultado do Iraque. Tony Blair não podia
ter previsto isto. As consequências excederam largamente os actos primários. Depois do desastre, Blair dedicou-se com afinco a
ganhar dinheiro. A sua Fundação, Tony Blair Faith Foundation, presta conselho a
oligarcas, ditadores e corporações e recolhe dólares. Não se conhecem os efeitos benéficos da ganância
e da “fé”. Blair tornou-se um falso e ridículo filantropo que coleciona mansões
e viaja nos iates e jatos privados dos amigos multimilionários. O avatar de
Tony Blair é mais desprezível do que a ambição churchilliana e o idealismo
errado de 2003.
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