«Tratar o destino com os pés» é o título da
crónica de Alberto Gonçalves, como sempre dura e profunda, na sua tentativa de
melhor penetrar a espessura dos nossos espíritos mais versados no estrondo da
matéria física, visível e audível, donde se segue que o futebol esteja na berra,
para nós, desde sempre, e mais agora, em que o vil metal tilinta em força e as
rivalidades e sabedorias clubísticas se desfazem em ironias recíprocas de trejeitos
igualmente estridentes, que o audiovisual protege e estimula, de modo
desafiante. Também as figuras do Bloco da Esquerda se aproveitam da época
marulhante para estimular o mesmo audiovisual e os elementos governativos a quem
estão ligados, com as propostas altissonantes da sua saloia ambição que, essa
sim, terá efeito penetrante na fibra da nossa espessura mental. São os temas da
crónica de Alberto Gonçalves.
Mas estou a ouvir o noticiário, e por entre as
explosões assassinas dispersas pelo mundo, de que se fala nos noticiários, ouço,
abismada, a notícia de que o candidato do Partido da Independência do Reino
Unido desde 2010, Nigel Farage, apresentou a sua demissão do cargo, Pilatos
lavando as suas mãos, depois de ter conduzido o seu UKIP à vitória do BREXIT,
ou Quixote enganado na questão da Dulcineia, estatelado ao comprido (por moto
próprio), depois da luta contra os moinhos de vento.
Entre
os aspectos positivos de que tratam hoje os noticiários – como exemplo, a
próxima entrada de uma sonda espacial da NASA – Juno – na atmosfera de
Júpiter, para pesquisas específicas que produzirão novos conceitos – (e entre nós
a notícia da participação na construção de um avião militar, o que atesta o
desenvolvimento da nossa indústria aeroespacial - que criou outrora uma
Passarola e mais tarde realizou a primeira travessia aérea do Atlântico Sul) – e
os cenários negativos em maioria, onde sobressaem os actos de terrorismo e os
abusos vários de ordem social, económica ou política, como nos habituámos
a observar – na vastidão desses
cenários, pois, chocou-me, sobremaneira, a atitude desse Pilatos britânico que
semeou os ventos e cautelosamente se esquiva a enfrentar as tempestades. Parece-me
desprezível a sua atitude. Se fosse por cá, creio que lhe cairia em cima pelo
menos o Carmo, a pusilanimidade a que somos atreitos poupando talvez a igreja
da Trindade. É certo que nunca as coisas se passariam entre nós de igual modo, nunca
repeliríamos um cargo governativo, tão afeiçoados que somos ao poder que
preferimos mesmo extorqui-lo, quando não nos cabe em sorte. Mas parece-me
cobarde - ou tão só pedante - esta atitude de Nigel Farage, talvez inspirado na peça de Óscar Wilde –
Um Marido Ideal – de um herói pretendendo renunciar à carreira política
para manter a aparência de impecabilidade moral. Que os súbditos britânicos têm
imensos exemplos literários a aconselhá-los dignamente. Não é como nós que só
temos o Júlio Dinis ou os simpáticos trechos de João de Deus a conduzir-nos
pela vereda da virtude.
Tratar o destino com os pés
Alberto Gonçalves
DN, 3/7/16
Até
agora, vi a maioria dos jogos da dita selecção nacional no campeonato em curso.
Ao estilo (digamos) apresentado, os comentadores chamam "jogo de
paciência". Se se referem à paciência necessária para o espectador aturar
aquilo, acertam em cheio: o próprio Job tentaria cortar os pulsos após vinte ou
trinta minutos de futebol tão lento e destrambelhado. Embora os jogadores me
pareçam fracotes, e o "melhor do mundo" fora de forma, fica a
impressão de que, entretida a reformular penteados ou a estreitar laços com a
"diáspora", a equipa não treinou nada, excepto a estratégia para
adormecer adversários ainda menos dotados (os quais são prévia e constantemente
considerados prodigiosos de modo a alimentar o patriotismo). Não tem corrido
mal: Portugal não perdeu um jogo. Acontece que também não ganhou nenhum, apenas
seguindo em frente graças às sucessivas atenuantes nos regulamentos da bola, da
"repescagem" aos "penáltis", passando pelo
"prolongamento". É isto um drama? Nem por sombras. Como se diz no
jargão, é futebol, e o futebol, apesar da histeria alusiva, é uma suprema
irrelevância.
Dramáticas,
ou, vá lá, relevantes, são as legitimações subjacentes. Em embaraçosas
conferências de imprensa, futebolistas e treinador juram que o essencial é
vencer de qualquer forma, mesmo, presumo, que esta inclua o desempate por moeda
ao ar, o suborno ou o tiroteio nos balneários. Nas televisões,
"especialistas" subscrevem o método. Nas tribunas, as excelências que
alegadamente nos governam e representam (mas que de facto vivem em estádios
franceses) aplaudem-no. Nas ruas, o povo entra em júbilo frenético a cada
eliminatória humilhante. "Somos os maiores", berra-se sem ironia.
No
futebol, talvez se conquistem glórias sem mérito. Na vida real, não é tão
provável. Para desgraça de todos nós, somos propensos a estender à vida real a jovialidade
com que se troca trabalho, rigor e exigência pela hipótese de um triunfo inútil
e, fora dos relvados, imaginário. Queremos bons salários sem produtividade,
prosperidade sem esforço, riqueza com dinheiro alemão. Queremos, em suma, as
vantagens; dispensamos os aborrecimentos intermédios e necessários. Para não
recuar muito, eis a história da recente "austeridade": sem nunca se
perceber o respectivo significado, começou por celebrar-se os governos que a
tornaram inevitável, abominou-se o governo que a aplicou e voltou a festejar-se
a nomenclatura de borlistas que fingiu exterminá-la por decreto, quando o
extermínio em causa será na verdade o do país enquanto nação residualmente
remediada e soberana. No futebol, cantando e rindo e mancando e aproveitando
artimanhas, pode chegar-se à final. No mundo que importa, chega-se ao fim. Não
admira que o dr. Costa e o prof. Marcelo se empenhem em não se distinguir dos
iludidos adeptos comuns: a ilusão é o ofício deles. Aceitá-la é o nosso.
Na
quinta-feira, imediatamente antes do penálti decisivo, o locutor da RTP
afirmava, com típica inconsciência, que o sr. Quaresma tinha "o destino de
um país nos pés". O destino não tardou a levar um chuto. Portugal.
Portugal. Portugal. Pobre Portugal.
Domingo,
26 de Junho
Convenções
Acho
interessantíssimo que o Bloco de Esquerda agite as bandeiras do arco-íris e do
combate à violência doméstica e, na sua convenção, aplauda de pé (cito os
jornais) um Movimento pelos Direitos do Povo Palestino. Não comento o
tratamento dispensado pelo "povo palestino" a homossexuais e
mulheres. Limito-me a sugerir que, em convenções futuras, o BE organize um
churrasco de vitela para criticar as touradas e proteste aos tiros o acesso de
civis a armas de fogo.
Porém,
o grande momento da pândega "bloquista" foi a ameaça de referendarmos
a "Europa" caso esta nos castigue por causa do défice. Para
facilidade de conversa, admita-se que a dona Catarina fala pelo governo (o que
não é uma hipótese absurda), que o governo possui a última palavra em matérias
assim (desde que seja para o lado "correcto", a sagrada Constituição
aldraba-se sem problemas) e que o presidente da República permitiria a
brincadeira (depois da dança étnica e dos comentários da bola, o prof. Marcelo
já provou ser um brincalhão). Ultrapassadas estas irrelevâncias, qual seria o
impacto de uma chantagem que no fundo consiste em informar o credor que não se
volta a pedir-lhe dinheiro? Qual é a parte do desastre grego que a dona
Catarina não percebeu? Como se imagina, Angela Merkel não voltaria a dormir
descansada - de tanto rir. Até o PCP se riu.
E
eu sinto-me ridículo só de escrever a propósito. Afinal, é esse o mérito
(digamos) do BE: pôr as pessoas a discutir "ideias" que antigamente
não se toleravam a crianças com mais de 7 anos. Ouvir o bando é o mesmo que
promover um seminário sobre física de partículas moderado por Isabel Alçada e
realizado na sala de actividades da creche. É gente que diz o que sabe e não
sabe o que diz. Enquanto terapia de grupo, parece-me excelente. Enquanto outra
coisa qualquer, parece-me uma tristeza pegada.
É
triste o jornalismo que leva aquilo a sério e são tristes os eleitores que
levam aquilo a sério. E é tristíssimo um governo que por desmesurado
oportunismo e desmesurada irresponsabilidade obedece a uma anedota imberbe a
que apenas por convenção se pode chamar partido.
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