Pedro Mexia tem o condão de fazer reviver tempos
passados, em que líamos alguns desses nomes de que nos aproxima agora, com
dados inteiramente desconhecidos, mas revigorantes,
porque nos fazem desejar perceber melhor, ou apenas rever tal escritor que
admiráramos, naquelas colecções que incluíam escritores do mundo inteiro e que
nos faziam viajar e viver emoções com que crescíamos, sem ainda a imposição de
nos fixarmos nos clássicos dos nossos estudos, de que, afinal, todos esses
partiram, na magia do passado, na consciência do presente. É, pois, com prazer,
que revejo os nomes de Stephen Zweig e aprendo dessas suas relações com Romain
Rolland, cujo “Jean-Christophe”, lido por alturas em que também lera “Les
Thibault” de Martin du Gard, me fizera comparar escritas e concluir pela
preferência pelo estilo mais objectivo e imparcial de Martin du Gard, apesar do
encantamento também sentido por essa bela e apaixonante história de
Jean-Christophe que já esqueci nos pormenores e de que ficou a memória do
prazer experimentado.
Informa Pedro Mexia, pois, que Stephen Zweig preencheu
a sua última agenda, de 50 páginas, zangado com os amigos antigos, como esse
Romain Rolland, sua anterior “alma gémea”. Capaz, pois, de se mostrar “duro
e cortante”, por razões pessoais e ideológicas. Romain Rolland manteve a
sua amizade, contudo, como transmite o artigo de P. Mexia, que conclui que “uma
agenda é um documento e um espólio, mas há verdades e hipóteses, que nenhuma
agenda contém”.
Julgo que poderia conter, contudo. Caso Stephen Zweig
não se tivesse suicidado, já que as agendas podem ir sendo sempre refeitas,
segundo os contributos da vida. Um número telefónico acrescentado poderia
significar um reencontro, uma troca, uma justificação, um abraço de
reconciliação, qu’en savons-nous? Os romances abertos permitem variedade de
desfechos. Como as vidas.
Última
agenda
Pedro
Mexia
E, 2.07.2016
É uma agenda com encadernação a couro castanho, ou imitando
couro, espiralada. Tem cinquenta páginas. Foi preenchida entre Junho de 1940 e
Fevereiro de 1942 por Stefan Zweig, o célebre escritor austríaco exilado no
Brasil, e que se matou, juntamente com a mulher, Lotte, poucos dias depois do
Carnaval de 42, assustado com a guerra e com a aparente vitória do Terceiro
Reich.
A agenda, um telefone
book americano, está em razoável estado de conservação, e sobre ela se
publicou um intrigante volume fac-similado: «Stefan Zweig – sua Última
Agenda 1940-1942». O jornalista Alberto
Dines, que escreveu a biografia “Morte no Paraíso” (1981), explica que a agenda
não reconstitui apenas a rede de amigos do escritor (158), mas documenta uma
mudança de amigos, uma imperiosa necessidade de mudança. Uns tinham morrido,
com outros sucederam-se zangas, a política tinha-os dividido, ou as relações
esfriaram, mas também entrou muita gente que não estava nas agendas anteriores.
Zweig, um escritor de grande sucesso, tinha visto os seus livros proibidos e
até queimados na Alemanha. De modo que os novos amigos eram, comenta Dines, um
“bando de apátridas, expatriados, desterrados, refugiados, exilados e
desnorteados”.
Durante muitos anos “apolítico”, pacifista, humanista, Zweig
viu-se forçado, com o advento do nazismo, a tomar uma posição. O “apocalipse
feliz” germânico de entre as duas guerras tinha chegado ao fim. Era “o mundo de
ontem”, disse Zweig no livro que se chama justamente assim, e que é um “adeus
àquela cultura austríaco-judaico-burguesa que culminou em Mahler, Hofmannsthal,
Schnitzler, Freud. Pois essa Viena e essa Áustria nunca mais serão as mesmas e
não voltarão. Somos as últimas testemunhas”. O escritor refugiou-se primeiro em
Londres e Bath, depois em Nova Iorque. Em 1936, numa viagem para Buenos Aires,
passou pelo Brasil, e Abrahão Koogan, da Livraria Editora Guanabara, pôs-se em
campo para garantir que o governo estadual do Rio organizasse uma visita
triunfal. Koogan editaria o austríaco, em duas dezenas de belos volumes
encadernados, e serviria até ao fim como seu amigo, conselheiro, procurador e
testamenteiro.
O Brasil deu uma segunda vida a Stefan Zweig, que escreveu o
famoso ensaio “Brasil, País do Futuro” (1941). Tinha perdido o seu público e os
seus amigos, mas refez quase tudo no Brasil, instalando-se em Petrópolis, e
correspondendo-se ou convivendo com escritores, editores, antiquários, colecionadores
de manuscritos, músicos, políticos, jornalistas, muitos deles com entrada nas
páginas da agenda brasileira. Aí aparecem Hermann Broch e Roger Martin du Gard,
Thomas Mann e o seu filho Klaus, Arturo Toscanini, mas também o político Afonso
Arinos e o académico Afrânio Peixoto. E portugueses como António de Sousa
Pedroso, visconde de Carnaxide (o homem de António Ferro no Brasil), o
historiador “seareiro” João António de Mascaranhas Júdice, visconde de Lagoa, a
tradutora Maria de Castro Henriques Osswald e a Livraria Civilização de Américo
Fraga Lamares, que editou alguns dos livros de Zweig que descobri, há vinte
anos, em casa dos meus avós.
Quem está ausente é Romain Rolland, um amigo que não
transitou das agendas antigas. Dines admite: «Delicado, desprendido, generoso,
porém ao sentir-se vulnerável Zweig também era capaz de gestos impulsivos,
duros, cortantes». Um desses gestos terá sido romper com Rolland, de quem tinha
sido uma alma gémea. Questões políticas, pessoais, melindres, estratégias.
Rolland conta no seu diário (cito a tradução brasileira): “Nossa amizade
esfriou nos anos 1928-1931, depois que eu me aproximei da URSS e principalmente
depois do meu casamento. Assim como outros amigos, ele também se sentiu
rejeitado. Ele me “construíra” ideologicamente, na base unicamente de “Au-dessus
de la mêlée” (famosíssimo manifesto pacifista), sem saber nada sobre a minha
juventude e a e ou a minha verdadeira
natureza. Ele não podia admitir que eu saísse da imagem que ele fizera de mim. Sua
insatisfação cresceu junto com a de outros “amigos”, igualmente decepcionados e
irritados”.
Lúcido, Rolland também se mostra compreensivo, compassivo: “Mesmo
que Stefan aumentasse cada vez mais a distância física entre nós, não permitiu
que a relação se rompesse. Fizera da amizade uma religião, para ele era mais
uma questão de honra do que uma necessidade de conexão afectiva. Manteve-se
fiel a essa amizade – sem grande cordialidade, mas também sem ter que apagar a
última chama, por mais fraca que fosse. Tenho certeza de que depois da
catástrofe ele estaria mais próximo de mim do que nos dias em que ela cortou
toda comunicação entre nós.” Porque uma agenda é um documento e um espólio, mas
há verdades, e hipóteses, que nenhuma agenda contém.
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