quinta-feira, 28 de julho de 2016

Fantasia, lirismo, sabedoria




Foi Eça de Queirós que nos deixou um conto maravilhoso sobre uma fortuna obtida ao simples toque de uma campainha, por artes e manhas aliciadoras do Belzebu, a um amanuense, Teodoro, ser magro e  corcovado, do muito curvar ante os superiores responsáveis da sua subsistência diária. O toque representaria a morte do Mandarim na distante China, e a herança incalculável que dele receberia, com esse seu simples gesto - um mundo de felicidade e bem-estar, de consideração alheia e de arrogância específica resultante da muita riqueza provinda desse toque. A ambição e o desespero ante as suas imutáveis condições de vida de desprezado social o fazem ceder um dia à proposta tentadora. Toca a campainha, enriquece num fausto jamais visto, a consideração alheia supera qualquer expectativa, mas o remorso de ter matado o Mandarim o persegue – pretexto para uma maravilhosa viagem à China na inútil tentativa de devolução da fortuna à família do Mandarim.
Transcrevo apenas a parte final do conto:

E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: “Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim!”
E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta ideia: que do Norte ao Sul e do Oeste a Leste, desde a Grande Muralha da Tartária até as ondas do Mar Amarelo, em todo o vasto Império da China, nenhum Mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!

Vem o conto a propósito da nossa profunda sabedoria, na artimanha de comer as sopas do Mandarim, que tantos contribuímos para matar e bem nos aviámos, sem escrúpulos, numa dívida que teríamos todos forçosamente que pagar, excepto, talvez, os que souberam arrecadar os proventos do Mandarim em ignotos e edénicos sítios.
Mas ontem foi um dia feliz para nós, portugueses, e também para os espanhóis, por as sanções por incumprimento nosso de acordos que pendiam sobre a Península Ibérica terem sido eliminadas por alguns representantes da U E que se mostraram compinchas. No entanto, o artigo seguinte mostra a falta de unanimidade nas votações sobre o sancionamento, e assim o transcrevo, para termos presente a espada pendente ainda sobre as nossas cabeças, caso queiramos continuar às sopas do Mandarim.  Devemos ter sempre em conta os seus descendentes, ou puros representantes, imaculados e escrupulosos que são, na moral:

Presidente do Eurogrupo “desapontado” com recomendação da Comissão
Público, 27/07/2016
Dijsselbloem estava à espera de que a conclusão de que Portugal e Espanha não tomaram uma acção efectiva tivesse consequências.
O presidente do Eurogrupo mostrou esta quarta-feira estar desiludido com a decisão da Comissão Europeia de recomendar o cancelamento da aplicação de multas a Portugal e Espanha.
Num comunicado citado pela agência Reuters, Jeroen Dijsselbloem afirmou “ser desapontante que não haja uma sequência para a conclusão de que Espanha e Portugal não tomaram uma acção efectiva para consolidar os seus orçamentos”.
O presidente do grupo que reúne os ministros das Finanças da zona euro afirmou ainda que “tem de ser claro que, apesar de todos os esforços já adoptados, Espanha e Portugal estão ainda em perigo”.
A recomendação da Comissão de não aplicação de multas a Portugal e Espanha é precisamente dirigida ao conselho, composto pelos governos dos vários países da UE. Num cenário considerado pouco provável, caso uma maioria qualificada do conselho não concordasse com a recomendação da Comissão, a decisão poderia ser alterada.
Jeroen Dijsselbloem disse ainda, de acordo com a Reuters, que iria esperar que a Comissão clarificasse a sua decisão e, depois, discutir o tema com os outros países da zona euro.

E não posso resistir a transcrever mais um belo soneto de sabedoria básica que nos transmitiu António Botto:
Homem que vens de humanas desventuras,
Que te prendes à vida, te enamoras,
Que tudo sabes mas que tudo ignoras,
Vencido herói de todas as loucuras.
Que te ajoelhas pálido nas horas
Das tuas infinitas amarguras
E na ambição das causas mais impuras
És grande simplesmente quando choras.
Que prometes cumprir para esquecer,
E trocando a virtude no pecado
Ficas brutal se ele não der prazer.
Arquitecto do crime e da ilusão,
Ridículo palhaço articulado,
Eu sou teu companheiro, teu irmão.
António Tomaz Botto  (n. em Concavada, Abrantes a 17 Ago 1897 , m. no Rio de Janeiro a17 Mar 1959)

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