terça-feira, 12 de julho de 2016

Como na botica




Os povos auto-apelidados do primeiro mundo – o mundo da cultura, da educação - e que defendem a igualdade social para se saírem bem no retrato, (mas ai dos que, vindos de baixo, atinjam tal parâmetro igualitário – nunca perderão o carisma rácico para esses, sobretudo se não tiverem petróleo para competir e transaccionar) – logo tropeçam nos instintos primários específicos da “bête humaine” quando as coisas lhes não correm na feição da superioridade de que fazem gala. Não foram ingleses esses que em Marselha provocaram desacatos graves no início do campeonato cuja taça os portugueses conquistaram? Nessa altura, as desordens seriam mais contra os franceses que a todos acolhiam, e que apareciam como rivais, o RU devia ter mais cuidado com a imagem de civismo que pretende fazer passar desde a Magna Carta, não tão real assim, os instintos da corrosiva inveja são comuns ao rico como ao pobre, bem se vê. Porque, para todos os efeitos, uma saída de tão baixo calibre num jornal tão reputado como esse que se pronunciou sobre o estado de espírito das porteiras portuguesas e o lixo francês (que bem poderia incluir o lixo desse jornal inglês que nelas fala), é bem reveladora dum incomensurável desequilíbrio espiritual e moral de quem o escreveu e de quem lhe  permitiu a publicação, prova de que a educação, como princípio administrado nos seus colégios, não passa disso. De princípio. Para inglês ver. E o mundo admirar bacocamente, julgando que é real. Mas lá, como cá, há de tudo. Como na botica. Como  em todo o lado, afinal. Sem, sequer o espírito do Charlie hebdo.

O nosso Guerra Junqueiro é que não teve receio de chamar cínica e bêbeda impudente a uma Inglaterra mais poderosa nesse tempo e mais incontidamente desprezadora ainda, por a democracia e a tal solidariedade, travadora de instintos, estarem menos na moda,  então.
Os nossos jornalistas, do DN e do CM, dos textos infra, subentendem igual crítica, mas  mais educadamente, segundo o modelo do politicamente correcto dos nossos tempos de palmadinhas nas costas, pela frente, tempos em que já não há mais terras em cor de rosa (no mapa) para confiscar – e só petróleo para transacionar por armas - embora haja sanções económicas para quem não proceder segundo as normas, as quais, por vezes, só esses se podem dar ao luxo de transgredir com a necessária elegância do mais ricaço, num mundo de cada vez mais pobretanas e azarados.

Editorial
O futebol e as porteiras
DN, 10/7/16
O Campeonato Europeu acaba hoje sem que nenhuma seleção tenha conseguido realmente impressionar pela qualidade e a beleza do futebol jogado. Foi um Europeu desportivamente aborrecido. Como sempre, as equipas Cinderela - Portugal já o foi em tempos não distantes - consomem o interesse e os elogios dos comentadores especializados, que se alimentam da novidade e de um toque de sentimentalismo para aumentar o interesse de uma competição que acontece quando os melhores futebolistas já estão demasiado cansados para entusiasmarem. Desta vez, Islândia e o País de Gales - sem dúvida boas surpresas - foram os mais elogiados, embora na verdade nenhum deles tenha espantado assim tanto no relvado. Já Portugal tem sido demolido com especial primor do princípio ao fim da prova. É verdade que a seleção treinada por Fernando Santos chega à final depois de um percurso demasiado sofrido e facilitado - não encontrou tenores pela frente. É de elementar justiça aceitar que jogou pouco, mas na realidade fez sempre o suficiente para chegar à eliminatória seguinte. Também não beneficiou de penáltis-fantasma - pelo contrário, Ronaldo sofreu duas grandes penalidades em momentos-chave que poderiam ter facilitado o percurso, talvez soltando um pouco mais o jogo dos não assim tão medianos futebolistas portugueses. Talvez faça sentido recordar que a França - com um campeonato também ele sofrível - ganhou à Alemanha, mas o primeiro golo foi conseguido através de um penálti pouco evidente, sem ele talvez a história fosse diferente. Quando os italianos jogam mal e ganham, o que acontece muitas vezes, tantas vezes, fala-se enfaticamente da invenção do catenaccio - a célebre armadura defensiva - como se fosse a invenção da máquina a vapor, um contributo extraordinário para a espetacularidade do jogo e não o extremar tático do esforço defensivo. Portugal ainda não tem direito a cunhar táticas com nome estiloso. Simplesmente, é uma má seleção, dizem os críticos, um grupo fraco e com sorte, carradas dela. E Cristiano Ronaldo, a quem já começam a escrever o obituário desportivo - apesar de isso ignorar todas as estatísticas e o contributo que ele dá para tornar excitante um desporto tantas vezes sonolento e sobrevalorizado -, tem sofrido na pele toda a espécie de dislates. É espantoso que, num meio onde quase todos os protagonistas cultivam egos XXL, apenas o de Ronaldo irrite tanta gente. Não há muito a fazer quanto a isto - exceto jogar bem, jogar melhor. Mas há um outro assunto. Ontem, na página 2 do Financial Times, escreveu-se que, se Portugal ganhar hoje o Europeu, amanhã as porteiras de Paris irão deitar fora o lixo mais felizes. Que imagem tão... adequada e elegante, não é? Carlos Tavares, o CEO da Peugeot, português de Lisboa, o homem que está a dar vida à marca francesa de automóveis, talvez se junte a elas - seria esclarecedor. Quanto à bola, é deixá-la rolar.

Porteiras de Portugal
Octávio Ribeiro
Correio da Manhã, 6/7/16
O desdém francês é sinal de medo do nosso futebol. Numa receção de gala, em Paris, o embaixador de então, um grande português, viu-se sujeito às piadas chauvinistas de um ministro francês. Esse grande senhor da diplomacia lusa respondeu à provocação sobre a nossa atual insignificância com o sorriso frio e um golpe de génio: "Não imagina V. Exª a rede de informações que temos montada em Paris, com as nossas porteiras e os nossos taxistas." O francês quase se engasgou, no temor deste capilar poderio luso. Claro que não há qualquer rede portuguesa em França, para lá da dos afetos e das remessas financeiras. Mas o receio deste governante francês é metáfora do ambiente que a imprensa francesa tem montado em torno da nossa seleção. É de medo este desdém. Se ‘Máriá’, a humilde porteira, lograsse comprar o duplex da cobertura do prédio, deixaria de ser olhada como doce e gentil. Passaria a megera meridional. Os povos pobres só são fraternos se continuarem pobres, fracos e servis. Nunca serão vistos como iguais. Os ideais filosóficos de 1789 depressa volveram botas napoleónicas. Os filhos dos nossos emigrantes merecem o orgulho de chegar à final. Boa sorte, jogadores!

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