Não, não vivemos mais ao ritmo
do tempo elíptico e sem história que lemos em Eça, no final d’Os Maias «E
esse ano passou. Gente nasceu, gente morreu. Searas amadureceram, arvoredos murcharam.
Outros anos passaram.», embora
seja verdadeiro e bonito de se ler, na sequência dos seus paralelismos e
contrastes, deixando antever que das pessoas felizes não reza a história ou que
essas pessoas não contam, pois se trata de ficção.
Mas as pessoas reais também não contam, embora deixando
marcas na convulsão dos dias. É o que mostra este artigo de Pedro Jordão, que nos traz lembranças aparentemente recentes,
no mistério deste galgar do tempo tão próximo, e já soterrado nos escombros das
violências que desses factos narrados foram consequência, e que estamos vivendo
hoje, sem adivinharmos ainda os percursos que esta vertigem temporal nos vai
trazer a seguir. Vivemos tudo isso que ele nos conta, lembramos a “primavera
árabe”, o “imolado pelo fogo” e as suas consequências no desencadear do
terrorismo, temos presente ainda a macacada da tenda onde Khadafi e os seus
dormiam, em Oeiras, perto do forte de S. Julião, mas tudo isso são nadas que
passaram, das caricaturas trágicas da vida. Pedro Jordão mostra no seu artigo
as consequências da intervenção do Ocidente no Oriente petrolífero, a
destruição de países e culturas, a criação do Estado Islâmico aterrador, uma Europa a ser penetrada por
gente que foge alucinada, e por gente que a quer em frangalhos. Uma lição para
rever, enquanto por aqui andamos. No terror do amanhã para os nossos.
Primavera Árabe – o romantismo
e o horror
Pedro Jordão
Público, 11/07/2016
Tópicos: NATO;
Egipto; Líbia; Tunísia; Médio Oriente; Iraque; Síria; Primavera Árabe ; Estado Islâmico
Parece óbvio que devemos
contribuir para a erradicação de regimes totalitários. É uma sensação romântica
e generosa, porque acreditamos que o fim desses regimes traz inerentemente a
paz, os direitos humanos, a liberdade. Mas o que devemos concluir se, derrubando tais regimes, abrirmos as
portas a regimes muito mais opressores, mais sanguinários? Nesse caso
contribuímos para um maior sofrimento dos povos. É esse o caso da Primavera
Árabe. Do romantismo inicial da libertação passou-se a resultados que são
de puro horror. E o Ocidente
pode ter sido, designadamente nos casos da Síria e da Líbia, profundamente
irresponsável.
Os regimes árabes sempre foram predominantemente
autoritários. É algo quase estrutural em sociedades pulverizadas por
fidelidades e ódios tribais que é difícil compatibilizar num mesmo país. No
final de 2010, um vendedor de rua tunisino imolou-se pelo fogo, em protesto
contra as arbitrariedades do estado, a falta de oportunidades e a falta de
respeito por direitos humanos básicos. O que distinguiu aquele caso foi a
rápida disseminação do drama pessoal através das omnipresentes redes sociais,
gerando uma crescente adesão popular ao protesto, que em semanas alastrou a
outros países do Norte de África e do Médio Oriente. Esta foi a fase romântica
e nobre deste processo.
Rapidamente, regimes autocratas como os da Tunísia e
do Egipto foram derrubados. Como
em muitas situações no mundo, mudar pode ser fácil. Mas mudar apenas é sensato
se se muda para melhor. Com a excepção da Tunísia, as novas realidades
tornaram-se, afinal, muitíssimo mais brutais do que as anteriores. Egipto,
Síria, Iraque e Iémen são disso exemplo. Vejamos os novos horrores que ajudámos
a semear nos 5 anos do curso da “Primavera” Árabe.
Poucos meses após o início da contestação popular, o
Ocidente “decidiu” que o presidente sírio, o médico oftalmologista que exerceu
em Londres, Bashar al-Assad, teria que ser derrubado. O
regime era duro e autocrata, mas as alternativas imediatas seriam muito piores,
como escrevi nessa altura, tal como o referi sobre a Líbia. Foi o apoio
ocidental que viabilizou rebeldes que destruíram o país e o futuro dos sírios.
Vejamos o resultado desta pouco inteligente obstinação ocidental.
Na Síria
alimentámos uma brutal guerra civil. Em consequência, morreram 400 mil
pessoas. Mais de 11 milhões de sírios tiveram que abandonar as suas casas,
incluindo mais de 4 milhões que abandonaram o país. Cerca de 10% destes
procuraram fixar-se na Europa, gerando parte do problema europeu dos refugiados
e dos milhares que morreram afogados no Mediterrâneo. Mais de 13 milhões de
pessoas carecem de apoio humanitário na Síria, incluindo 400 mil em locais onde
essa ajuda não consegue chegar. O país, que era um dos mais desenvolvidos e
modernos da região, está em ruínas. Metade das cidades está arrasada.
Antiguidades deslumbrantes, e para sempre insubstituíveis na herança da
Humanidade, foram destruídas. Dois anos após o início desta guerra civil
síria foi aí formado o “Estado Islâmico”, cujo legado conhecemos nos atentados
em todo o mundo, na decapitação massiva de seres humanos, na queima de pessoas
regadas com gasolina dentro de jaulas em frente de público. Os mesmos repetem
estes horrores no Iraque, onde a população Yazidi é sujeita a um genocídio.
Mulheres não islâmicas são raptadas para serem violadas porque os islamitas
acreditam que assim as tornam muçulmanas. Populações femininas de povoações
inteiras foram escravizadas e vendidas como escravas sexuais. Apesar do
totalitarismo de Assad todo este cenário é brutalmente pior. A
“Primavera” de que acabámos por ser co-autores tornou-se num horror que marcará
gerações de sírios.
Sou, desde sempre, um apoiante da NATO, mas considero
uma aberração que esta tenha operado militarmente na Líbia para derrubar
Khadafi. Este, um personagem repugnante, foi, no passado, um motor do
terrorismo internacional até que os americanos bombardearam a Líbia. A partir
desse momento, Khadafi tornou-se progressivamente num dos principais aliados
muçulmanos na luta ocidental contra o terrorismo e o radicalismo islâmico.
Khadafi tornou-se num aliado da NATO. Foi recebido e visitado por chefes de
estado e governantes europeus de primeira linha. Mas, subitamente, ele é
atacado, sem convincente justificação. Por que motivo um dos seus aliados
europeus, o presidente francês Sarkozy, pareceu tão empenhado em derrubá-lo?
Este foi um outro grande erro do Ocidente. Khadafi desapareceu mas no lugar
da Líbia aliada na luta antiterrorista agora temos um país controlado por
terroristas e bárbaros islamitas, distribuídos por 500 milícias registadas num
país sem lei, uma anarquia total para onde o Estado Islâmico pode vir a
transferir a sua “capital” e em cujas praias mediterrânicas se fazem massivas
decapitações.
Dificilmente se vislumbra uma “primavera” nesta
convulsão brutal. A maioria dos países em causa encontra-se em situações
perante as quais, em comparação, os autoritários regimes anteriores pareceriam
um quase paraíso.
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