O meu filho Ricardo enviou-me o longo texto, que li
sublinhando, de um “Portugal a entristecer”, após tanta alegria que foi
esbanjada, ao longo destes 42 anos, que a actual historiadora Fátima
Bonifácio não se eximiu a manifestar também, era adolescente, provavelmente
intelectual de esquerda, que era a esquerda que estava a dar na altura, (retomada
em força agora), daí que a coragem de Fátima Bonifácio, de desmascarar hoje a
perfídia, seja um factor para mim de grande apreço, que ao longo da minha vida
de escritos manifestei também – não com a objectividade do rigor histórico, mas
com a subjectividade da ironia desmascaradora do furacão de aleivosias que
inesperadamente tombava sobre todos nós, incautos, posteriores retornados. Lembro
a febre de uma escrita que teria que redundar em livro – Pedras de Sal –
apesar da oposição do Sr. Folques que o publicou, assustadamente, tendo feito
um preço que, com o constante acrescentamento de novos textos, forçosamente
teria que ser aumentado, o que não
aconteceu, contudo. E no dia 8 de Setembro, na manifestação em frente ao Rádio
Clube de Moçambique, de apoio aos soldados briosos portugueses que o tomaram de
assalto, em movimento efémero, uma colega entusiasta lembrou, do seu carro
descapotável, ao encontrar-nos a descer na rua perpendicular àquela donde
desciam – a do liceu Salazar e do hotel Girassol, cujo nome esqueci – gritou: “Berta,
também te devemos isto a ti”. Fiquei, com isso, ciente, que o Sr. Folques
estava a vender bem o meu livro. Em 1980, incluí esse livro nos “Cravos Roxos”,
na mesma febre lutadora contra o desaire pátrio que se continua a ignorar, soterradas as razões com os ditames
do irreversível, que Fátima Bonifácio parece compreender agora como razões
certeiras, perversas as outras que destruíram os povos, as antigas colónias entregues à
rapacidade e vileza de quem as chefia agora, como nações independentes, um Portugal minúsculo, subserviente e
mísero, usando de relações cínicas por meio desses que lhe cobiçaram o mando,
ignorando o “brasão”. Histórias velhas, muitas mais recordo, que o artigo de
Fátima Bonifácio me trouxe à mente. Mas gostei que o Ricardo me dissesse que
era um texto de que eu iria gostar, o que prova que, no fundo, no fundo, certos
desacordos com ele, que adopta pontos de vista contrários – na questão do AO,
por exemplo – não passam de fogo de vistas, para contrariar, por muito bota de
elástico – Velho do Restelo é mais chique – que me queira fazer sentir:
A
propósito da polémica sobre os brasões
das ex-colónias na Praça do Império e os 20 anos da CPLP, Fátima
Bonifácio escreve sobre a "selectividade
histórica que resulta na amputação da memória"
«Há
20 anos, segundo informou o vereador José Sá Fernandes no Público de 27 de
Agosto de 2014, Portugal – nós todos, suponho que através da Câmara Municipal
de Lisboa – votou ao abandono os Brasões da Praça do Império, de que hoje
sobram apenas uns murchos “restos” melancólicos que ninguém rega, que ninguém
poda, de que ninguém cuida; alguns definharam ao ponto de desaparecerem,
soterrados por baixo das ervas daninhas e da vegetação selvagem que espontânea
e exuberantemente se foram instalando no terreno.
Em 2014, Sá Fernandes, vereador responsável pela Verdura e Energia
da capital, alegou que aqueles símbolos do Império “estavam ultrapassados” e que não fazia
nenhuma espécie de sentido conservar composições florais alusivas aos vastos
territórios de um Portugal pluricontinental que cessara de existir a partir de
1974. Porém e misteriosamente, até mesmo paradoxalmente, ao passo
que estes abomináveis “símbolos do colonialismo” – não obstante constituírem um
conjunto único de mosaico-cultura – eram sumariamente condenados a uma morte
deliberada e anunciada, já os “brasões em pedra do lago central” são para
manter, segundo o relatório aprovado pelo júri chamado a pronunciar-se
sobre o projecto vencedor para a requalificação, recuperação ou restauro da
Praça do Império (Público, 20.7.2016).
Só
os anos, só a idade não chegam para conferir carácter histórico a uma construção.
Para lhe acharmos um tal carácter é necessária a Beleza, e é certamente devido
a esta transcendência do funcional (e do actual) que os brasões por lá
foram ficando.
Em
suma, há brasões e brasões, vá-se lá saber porquê. E se certos brasões ofendem
a nossa consciência desembaraçadamente progressista e decididamente
anticolonialista, cabe perguntar por que motivo se não
arrasa o Padrão dos Descobrimentos, ali mesmo ao lado, com a assinatura do
mesmíssimo arquitecto, Cottinelli Telmo, e igualmente ensombrado pela sua
ligação umbilical à Exposição do Mundo Português de 1940. E,
já agora, cabe ainda perguntar por que motivo se não arrasam tantas construções
manuelinas, já que todas elas ostentam ornamentações inspiradas nos elementos
náuticos que estão na origem do nosso Império multicontinental, designação de
fachada inventada pelos fascistas para encobrir o descarnado colonialismo que
mancha indelevelmente a gesta lusitana através dos séculos.
Simoneta
Luz Afonso, presidente do júri referido, tem o bom senso de não ir por aqui.
Argumenta que o conjunto de composições florais em que se integram os brasões
não constava do projecto original de Cottinelli Telmo, e que por isso não
podiam tais conjuntos (e tais brasões) ser considerados “um elemento histórico”;
além disso, “foram criados para uma exposição de floricultura, que era uma
coisa absolutamente efémera.” (Público, 20.7.16).
Pois,
de facto não constavam do projecto inicial de Telmo, que era o projecto da
Praça do Império propriamente dita, mas constavam do projecto do jardim
quadrangular criado na mesma altura e para o mesmo efeito comemorativo dos 800
anos da independência de Portugal, porém desenhado por um outro arquitecto, de
seu nome Vasco Lacerda Marques. Quanto ao destino “absolutamente efémero”
que lhe teria sido ab initio assinado, convenhamos que, para efemeridade tão
absoluta, duraram demasiado tempo. Duraram de 1940 até 1994 (se as
datas fornecidas por Sá Fernandes estão certas, como têm obrigação de estar).
Duraram cinco décadas e meia, mais de meio século, tempo mais que suficiente
para terem sido historicamente consagrados. Como historicamente consagrada está
a igreja de Siza Vieira em Marco de Canavezes, embora conte apenas com 20 anos
de existência.
Bem
sei, evidentemente, que uma igreja não é o mesmo que uma exposição de
floricultura ou uma “instalação” qualquer. Mas só os anos, só a idade não
chegam para conferir carácter histórico a uma construção. Para lhe acharmos
um tal carácter é necessária a Beleza, e é certamente devido a esta
transcendência do funcional (e do actual) que os brasões por lá foram ficando,
acabando por integrar muito naturalmente a Praça do Império e cobrando, deste
modo, um inegável carácter histórico. A
polémica, portanto, é puramente ideológica e política. Este é o facto
que nem os argumentos ditos técnicos conseguem disfarçar.
A culpa do Colonialismo
Devo
dizer que a remoção ou permanência dos malfadados brasões nada me interessa.
Interessa-me, sim, o que a polémica revela sobre a ínvia selectividade a
que a nossa história é sujeita. Uma selectividade que, ontem como hoje, no
Estado Novo ou em Democracia, resulta na pura e simples amputação da memória
que não convém ao regime vigente. E desde o seu princípio que à Democracia
não convém toda e qualquer espécie de simples evocação do nosso passado
colonial que de algum modo, seja lá ele qual for, denote, conote, sugira, manifeste
ou pareça que manifesta uma celebração ou um festejo do nosso horrendo passado
imperial e colonialista.
Porque
o imperialismo colonialista foi, e é, um crime de que nos queiramos lavar?
Para sectários analfabetos é isto mesmo. Para gente menos ignara, não é tal
que está em causa. Quem tenha o que dantes se chamava “instrução primária”,
sabe, ainda que mais ou menos imprecisamente, que todos os impérios coloniais,
apesar das grandes diferenças entre si, foram por definição, e conforme o nome
indica, colonialistas. Existiram no seu tempo – um tempo em que a posse de um
império colonial constituía expressão de grandeza pátria e motivo de orgulho
nacional.
Entre
nós, na década de 1870, despertou uma súbita e estridente paixão pelo Império e
gerou-se um clima de autêntica “euforia colonial”, que culminou, a 10 de Junho
de 1880, na grandiosa celebração de Camões, autor de “Os Lusíadas”, a
esplêndida epopeia das nossas Descobertas e da nossa pioneira diáspora pelo
Mundo que déramos a conhecer. Camões, que narrara em milhares de versos
decassílabos as nossas temerárias andanças por mares nunca antes navegados e
por terras nunca antes percorridas, foi celebrado naquele dia como “a mais
genuína expressão do génio português” no apogeu da sua viril criatividade: dali
em diante, o Império tornou-se “intangível”. E intangível se conservou durante
a República, e intangível foi por esta transmitido a Salazar e ao Estado Novo.
Mas
esse tempo dos Impérios acabou ao mesmo tempo que acabava a Segunda Guerra
Mundial. A Índia, a jóia da coroa britânica, tornou-se independente logo em
1947; na Indochina, o fim do domínio francês, em 1954, ditou a independência do
Camboja e do Laos, e a divisão do Vietname entre o Norte (Hanói) e o Sul
(Saigão), que, reunidos em 1975, passaram a constituir um Estado socialista
independente; em África, a grande maioria das colónias, entre 1945 e inícios
dos anos sessenta, alcançou a independência por meio de negociações pacíficas
com as respectivas metrópoles, salientando-se as excepções da Argélia,
declarada independente em 1962, no termo de uma sangrenta guerra de libertação
nacional; e, evidentemente, as colónias portuguesas em África, envolvidas numa
longa, penosa e a intervalos selvática guerra de libertação nacional até ao 25
de Abril de 1974.
Portugal
em África há muito que vivia ou sobrevivia a prazo – devido à justa condenação
do colonialismo que o Ocidente se auto-impôs depois da Segunda Guerra,
conjugada com a luta dos movimentos africanos de libertação nacional, aos quais
nem faltou a bênção do papa Paulo VI em 1970. O Estado Novo mostrou-se
inicialmente insensível à mudança dos ventos, continuando aferrado à ideia de
que Portugal, sendo ou não sendo um Império – as opiniões divergiam consoante
os autores e a época –, pelo menos tinha um império formado pelas suas
“colónias”. Mas, ante a crescente pressão internacional anticolonialista,
rebaptizou-as de “províncias ultramarinas” aquando da revisão constitucional de
1951, que revogou o Acto Colonial de 1930.
A
principal responsabilidade pela trágica descolonização foi o PREC, com que
tantos e tantos, incluindo eu própria, pactuaram. Mais do que pactuaram:
fomentaram. Uns por cegueira e ignorância; outros por estouvado entusiasmo
juvenil; outros ainda por cálculo perverso.
A
partir da “revolução dos cravos”, Portugal, no meio do justo entusiasmo pela
sua própria libertação, entregou as colónias ao injusto destino de serem, no
plano externo, disputadas pelos imperialismos russo e chinês – sem que
também os EUA assegurassem por lá discretamente os seus interesses; e, no plano
interno, deixou-as entregues a encarniçadas guerras civis e outras modalidades
arrepiantes de violência, de que emergiram os novos senhores, efémeros ou
duradoiros, que se encarregaram de oprimir e explorar os indígenas por conta
própria, com tanta ou mais dureza e certamente mais ganância e desvergonha do
que os antigos colonizadores.
Os
novos senhores prosseguiram a pilhagem dos seus novos países, entre os quais se
destaca Angola, o mais rico em petróleo e diamantes, que oferece ao Mundo o
deprimente espectáculo de uma cleptocracia já dinástica em que há Parlamento
mas não há Lei, em que há povo mas não há Direitos Humanos, em que há fome mas
não há liberdade, em que há doença mas não há hospitais, em que há miséria mas nem
ao menos há caridade, em que um punhado de novéis milionários ofendem e
humilham os pobres com o luxo dos seus palácios ou mansões, dos seus
automóveis, jatos e iates particulares, em suma, com o seu estilo de vida de um
espavento estratosférico.
Lembro-me
bem dessa década de sessenta, em que que transitei da adolescência para a
juventude. Melo Antunes teve, já próximo do fim da vida, o seu momento de
arrependimento. Outros, quero crer que muitos, o acompanharam nesse exame de
consciência. Mas, no geral, os portugueses de nada quiseram saber, a não ser de
si mesmos. Tal como não quiseram saber da guerra em África nos anos em que para
lá partiam milhares de pais, irmãos, maridos, namorados, filhos ou cunhados.
A
guerra em África era uma coisa do Governo, do Estado; a mobilização e partida
para África era uma coisa de cada família. Em momento algum a guerra em África
suscitou o que se possa com propriedade chamar um sobressalto nacional.
Porque a PIDE não deixava?! Mas eu refiro-me àquela espécie de sobressaltos
interiores que não carecem de autocarros nem de altifalantes, mas que se
comunicam de uns aos outros por uma química invisível ou por ondas silenciosas
que a Ciência não consegue perscrutar! Guardo ainda hoje a impressão de que,
mesmo nos momentos de “euforia colonial”, o Império foi sempre um adorno, um
adereço, ou, talvez mais exactamente, uma espécie de consolo para a nossa
apagada e vil tristeza, ou ainda um suplemento vitamínico para a justificada
falta de “auto-estima” nacional.
Em
30 de Abril de 2009, Seixas da Costa recordava, às 01h58 da madrugada, uma
frase de Melo Antunes: “A descolonização foi uma tragédia, da mesma maneira que
a colonização foi uma tragédia”. O embaixador em Paris concordava, mas
acrescentava da sua lavra: “A descolonização foi feita da forma que foi porque
o estado a que o anterior regime tinha conduzido a situação nas colónias não
possibilitou outra solução”. E impõe mais outra consideração: “As muito
difíceis condições político-militares nas colónias com que o novo poder se viu
confrontado e que impediram que se seguissem outras vias”.
Nesta
história de uma descolonização trágica somos todos, todos inocentes. Os
responsáveis são só os outros: os do anterior regime, os do Estado Novo, os do
capital monopolista, os das multinacionais de rapinagem, os do imperialismo
americano e por aí fora.
Convém
não desautorizar esta “narrativa” da carochinha, porque a Democracia sairia
muito mal de uma história a sério: o exército português retalhado em
facções políticas e transformado em bandos de guedelhudos que agiam por conta
das centrais político-partidárias a que estavam afiliados; o colapso do Poder e
o eclipse da Autoridade que se verificaram num país em autogestão,
deliberadamente provocados pelos vários candidatos em disputa pela liderança da
revolução socialista que a esmagadora maioria dos portugueses não queria. Em
suma: o PREC. A principal responsabilidade pela trágica
descolonização foi o PREC, com que tantos e tantos, incluindo eu própria,
pactuaram. Mais do que pactuaram: fomentaram. Uns por cegueira e ignorância;
outros por estouvado entusiasmo juvenil; outros ainda por cálculo perverso. E
de uma história a sério também a visão mítico-romântica dos movimentos
africanos de libertação nacional sairia espatifada aos pedaços.
Um mínimo de integridade intelectual exige que não se atire tudo,
talvez nem a maior parte, para cima do “anterior regime”.
Foi com surpresa e alívio que o IARN (Instituto de Apoio ao Retorno de
Nacionais), presidido pelo coronel António Gonçalves Ribeiro, resolveu o não
menos trágico problema dos retornados, que todas as noites chegavam às carradas
de Angola, em aviões organizados como ponte aérea. À medida que se amontoavam
na Portela, o IARN ia-os distribuindo pelo País, com eles enchendo hotéis,
residenciais e pensões; nem o Ritz de Lisboa escapou a esta invasão
desagradável. Deste modo, expedidos para a província ou acolhidos por
familiares, os retornados tornaram-se quase invisíveis, não incomodando a boa
consciência de uma sociedade convulsionada pelo entusiasmo revolucionário.
Portugal integrou em pouco tempo mais de um milhão de pessoas chegadas com as
mãos a abanar. O IARN foi obra de militares empenhados numa missão de
salvamento, não de civis perenemente enredados nas suas fúteis querelas político-ideológicas,
que tinham prioridade sobre o drama humano e humanitário que se desenrolava em
Portugal.
E
Timor Lorosae! Ai! Timor Lorosae… ele foram vigílias, cânticos,
cordões humanos, manifestações, discursos, festejos, provas contínuas e
comoventes de solidariedade, de alegria partilhada. Às zero horas de 20 de Maio
de 2002, era içada a bandeira de Timor-Leste, mais um país novo e livre, ainda
descendente, por portas travessas, do vetusto tronco lusitano; um parente
recuperado que acrescentava lustro ao nosso pedigree de nação
independente há mais de oito séculos. Os portugueses não despegaram os olhos
das televisões, numa comunhão febril com os irmãos libertados do jugo indonésio.
“Um caso de amor e emoção que não se compadece com discursos economicistas e
racionais”, segundo o editorial do DN. Nisso somos fortes: no amor e na emoção;
não custam nada, não exigem nada, lavam a alma e branqueiam a consciência. Sim,
porque lá no fundo, no fundo, palpitava – e palpita ainda – um resto de
consciência, e de culpa. A independência de Timor foi uma
oportunidade redentora. Depois, o heroico povo maubere foi caindo no
esquecimento.
Apareceu
petróleo no mar de Timor. Uma dúzia de magistrados portugueses que
se tinham voluntariado para ajudar a pôr de pé um sistema judicial decente foi
sumariamente recambiada sob um qualquer pretexto frívolo ou pateta. Timor
Lorosae foi rapidamente minado pela corrupção mais desbragada, desvirtuado e
corroído pela miragem do petróleo e dos dólares. Xanana Gusmão, o abnegado
herói romântico da luta pela libertação, passou de presidente eleito a primeiro
ministro apoiado, contra a outrora poderosa FRETILIN da qual saíra, por uma
coligação dominada pelo seu partido pessoal, o CNRT (Conselho Nacional para a
Reconstrução de Timor-Leste). A “Reconstrução” atraía um irresistível
manancial de financiamentos estrangeiros… e o poder garantia o “controle” das
rendas do petróleo. Xanana e os seus sequazes seguem os passos de José Eduardo
dos Santos, numa escala mais pequenina, claro está. Enriquecem, enquanto o povo
maubere jaz na miséria e na ignorância, prostrado pela fome e pela doença. Os portugueses não querem saber. E foi precisamente em Timor que
Portugal foi recentemente enxovalhado, gozado.
O fiasco da Lusofonia
Chegamos,
enfim, ao que agora mais interessa: a CPLP – Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa – e o extraordinário espalhafato em torno do XX aniversário (17 de
Julho de 2016) deste pobre e caricato Ersatz para o Império, ou deste patético
dispositivo para branquear a “tragédia da descolonização”, ou deste lamentável
simulacro de fraternidade e reconciliação em nome de uma história que não foi comum –
história comum apenas tivemos com o Brasil, e mesmo este, que deve a D. Pedro
IV de Portugal, Primeiro Imperador do Brasil, o não se ter dividido em diversas
repúblicas nos inícios do século XIX, nos olha hoje em dia com indisfarçável
indiferença, quando não desprezo.
A CPLP, que as Autoridades portuguesas exaltam como um exemplo de
“multilateralismo” e cooperação entre Portugal e as suas ex-colónias, não
passa, antes do mais, de uma associação de interesses relacionados com o
petróleo e hegemonizada pelos países que o possuem: Angola,
Brasil, Timor-Leste e… fatalmente, a Guiné Equatorial, um sítio onde os
portugueses de antanho nunca puseram os pés, onde ninguém fala português e
poucos devem saber da existência e localização de Portugal. É
presidida e governada desde 1979 por Teodoro Obiang, um tirano sanguinário e
assumidamente assassino; um católico devoto que se diz em comunicação permanente
com Deus; um facínora que manda espalhar o rumor do seu suposto canibalismo,
explorando a alegada posse de um atributo que tradicionalmente aterroriza e
facilita a subjugação do povo da Guiné Equatorial.
Foi
esta pérola, adquirida por imposição do Brasil, Angola e Timor-Leste na Cimeira
de chefes de Estado da CPLP de 23 de Julho de 2014, realizada em Dili, que
passou a adornar o rosário de “democracias” que integram a CPLP de que os
nossos dirigentes tanto se orgulham. Sublinhe-se que Obiang, na dita cimeira,
se sentou à mesa do lusófono conclave mesmo antes de ser formalmente aceite
como membro.
E
antes mesmo desta formalidade, Cavaco Silva apertou a mão que Obiang lhe
estendeu na qualidade de quem já pertence à casa, engolindo em seco a surpresa
inqualificável que os restantes comparsas lhe tinham preparado. Xanana, o
finório Xanana, deve ter sorrido de orelha a orelha. E Cavaco Silva, Presidente
da República Portuguesa, arranjou a desculpa inaceitável – suponho que até em
Diplomacia haja limites de decoro a respeitar – de que a condenação da Guiné
Equatorial ao isolamento não favorecia a promoção dos Direitos Humanos nem das
instituições democráticas – e Portugal, está claro, não queria ficar com um tal
peso na consciência. (Sobretudo quando as exemplares democracias dos restantes
países-membros da CPLP por certo não deixariam de exercer uma influência
benéfica sobre o nefário Obiang.) Por seu lado, Passos Coelho, chefe do Governo
de Portugal, apressou-se a corroborar as esfarrapadas desculpas do Presidente,
desqualificando o caso como uma trivial “incidência diplomática”.
Na
realidade, se na CPLP alguém está isolado, somos nós, é Portugal, que pura e
simplesmente se converteu em objecto de irrisão. O “Público” de 17 de Julho
traz peças que são diamantes dos mais puros. O mais puro dos puros é o execrável artigo com que o ministro dos Negócios
Estrangeiros, Augusto Santos Silva, entendeu assinalar o vigésimo aniversário
da magnífica CPLP. Deve ser lido na íntegra, pois constitui
um monumento raro de impostura, mentira, falsidade, bajulice e hipocrisia. Nem
o Jdanov de Estaline, nem o Goebbels de Hitler fariam melhor. A mendacidade de
Santos Silva chega a espantar até mesmo quem o conhece de sobejo: ela surge,
descarnada ou insinuada, em cada frase ou palavra.
Em
suma: a CPLP é um prodígio, um milagre, uma organização humana fabulosa! Diante
dela estendem-se vários oceanos de possibilidades, rasgam-se horizontes de
progresso inimagináveis! E, mais especificamente: “Que tenha sido possível
construir, em menos de duas décadas após a descolonização africana, uma
estrutura cooperativa reunindo antigos colonizados e antigo colonizador, é já,
em si mesmo, um enorme resultado.” A verdade é que não estamos nada reunidos,
exibimo-nos juntos uma vez por ano para inglês ver e português crer. E o que há
aqui de antigo é apenas e tão só a nossa culpabilidade, afogada numa palhaçada.
A
CPLP serve-nos – àqueles a quem serve – para afogar a culpa. Nessa “estrutura
cooperativa”, Portugal pouco conta. Conta, sobretudo, como plataforma de acesso
à Europa e à lavagem de dinheiro; e para alguns negócios mais,
geralmente obscuros.
O
perspicaz ministro, ex-intelectual e ex-académico, consegue ver até onde os
vulgares mortais não alcançam. “Há um laço profundo unindo os povos
lusófonos, que vai muito além de regimes e de governos e é a força maior da
Comunidade.” Dos nove Estados-membros, apenas três são Democracias:
Portugal, Brasil e Cabo Verde. O resto são cleptocracias, Estados falhados,
tiranias, ditaduras, paraísos de corruptos e ladrões. Em comum,
estes têm apenas a generalizada e funda miséria das populações, que não querem
saber da CPLP para nada, como dela não querem saber para nada o comum dos
portugueses, o comum dos brasileiros, o comum dos caboverdianos e o comum dos
indígenas esfomeados e doentes das ex-colónias livres e emancipadas, que
durante décadas Portugal não preparou para a independência e que Portugal
abandonou em 1974 com o alívio de quem larga no chão um fardo demasiado pesado.
A
CPLP serve-nos – àqueles a quem serve – para afogar a culpa.
Nessa “estrutura cooperativa”, Portugal pouco conta. Conta, sobretudo, como
plataforma de acesso à Europa e à lavagem de dinheiro; e para alguns negócios
mais, geralmente obscuros. Em Angola existem, é certo, muitos empresários
portugueses, empresários sérios. Enganaram-se de país! Temos pena, como dizia o
outro. De facto, pouco ou nada podemos
fazer contra a Dinastia dos De Santos instalada no
Trono em Luanda. A relação de forças inverteu-se, não existe nem sombra da
igualdade apregoada por Santos Silva.
A Lusofonia é um fiasco; ninguém
parece interessado no Acordo Ortográfico a que servilmente nos dispusemos para
sacrificar a língua portuguesa. O diplomata moçambicano que exerce actualmente
as funções de secretário executivo da CPLP, Murade Muragy, em duas frases disse
tudo sobre a suposta importância da lusofonia e sobre a duvidosa utilidade e
adequação estratégica da CPLP num mundo em acelerada mutação: “A CPLP
não poderá ficar alheia às estratégias mundiais, regionais e sub-regionais que
caminham para aceleradas integrações políticas e económicas. Não deve ficar
refém da nostalgia da língua portuguesa e deixar de aproveitar as oportunidades
que o mundo multipolar contemporâneo nos oferece […].”
No
“Público” de 19 Julho, alguém finalmente deitou um balde de água gelada sobre
as farroncas de Augusto Santos Silva. A “Análise” de Nuno Ribeiro, embora com algumas concessões
cerimoniosas, ajuda a compreender que os principais parceiros da CPLP persistem
no desígnio de estabelecer e cumprir “agendas internacionais próprias”, ou
seja, independentes da CPLP.
Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, foi, por
convicção, conveniência ou obrigação, insuficientemente contido. Porém, não
deixou de vincar que a CPLP, “um projecto bem-sucedido”, deve ser encarada como
“um projecto de futuro”. Como dizia Keynes, a longo prazo
estaremos todos mortos. Este dado da natureza autoriza quaisquer
prognósticos. De momento e para já, o que vejo é Portugal a fazer uma figura
triste, convertido em objecto de amarga irrisão. Mas pouco importa. O nosso
brio patriótico só se espevita quando está em causa a algibeira de cada um.
Será que, também com as nações, o carácter é um destino?
Maria de Fátima Bonifácio é historiadora
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