De 48 capítulos se compõe este romance português dos
nossos tempos – anos 80 - que,
explorando uma temática eterna – a do amor, com, subjacente, o eterno feminino
em facetas várias do seu comportamento humano - muito distante, é certo, de uma
Joaninha garrettiana, figura idílica dos tempos românticos, mas relativamente
próximo das figuras femininas queirosianas desde a Ameliazinha do Padre Amaro, à Luísa do Primo
Basílio ou à Maria Eduarda Maia, de escultural figura e delicado comedimento de
gestos e falas, (pelo menos antes do reconhecimento da relação incestuosa, na
focalização de Carlos da Maia), sugerindo a Y de «Amor Feliz» – todas
essas figuras e muitas mais que passam pelo tablado queirosiano, incluindo as
condessas ou as Luísas, esposas dedicadas mas que não resistem a aventura
extraconjugal, ou as criadas ou até as Conchas, ou as discretas e compreensivas
Donas Marias, Brízidas Vaz dos nossos tempos, fazem igualmente parte do enredo
social deste primeiro – único - romance de David Mourão-Ferreira.
Uma sociedade mais moderna, todavia, nele, que implica
certo aplomb e desfaçatez de atitudes femininas desde o uso - por vezes
desajeitado, na incipiência provocatória inicial, ainda tímida - do monoquíni
nas piscinas das casas ricas dos políticos de enriquecimentos pouco claros, ao
atrevimento das Zus oferecidas, à mãe desta, Floripes, empregada do prédio do
atelier, boa coscuvilheira de discurso caricato, em registo popular de falinhas
mansas, à brasileira Xô da experiência em Itália, à mãe do narrador internada
em centro geriátrico propício às mazelas surrealistas da perda gradual da
consciência, às literatas poetas, alter ego do narrador, pretexto para o autor
ir introduzindo versos da sua lavra, acompanhando um enredo com psicanálise,
crítica social e alguma magia poética, de mistura com uma extrema capacidade
crítica do mundo político e social em decadência moral desses anos oitenta, que
poderemos perfeitamente projectar para esta segunda década do século XXI,
tantas as similitudes de atitudes e comportamentos dos figurantes dos vários
estratos sociais, que se escolhe tantas vezes criticar para realçar a nossa
firmeza de princípios. E a ironia de uma expressão sintética mas enérgica põe a
nota de desdém por essa sociedade, que vai descrevendo, ressalvando um boémio –
o Niassa – um puro na devassidão, de amizade certa, espécie de Tomás de Alencar
na originalidade boémia e nas enrascadas.
Assim, o
primeiro capítulo começa por referenciar a personagem feminina central – Y – em
hino de homenagem à beleza da figura, dos gestos e das falas – para um narrador
e personagem principal, sexagenário, escultor que, se não incarna o papel de atrevido
donjuan, ao querer reservar para si, antes, o de um educado e respeitável
senhor casado e amigo sincero da esposa pediatra, embora numa relação independente,
de pura conveniência social, em todo o caso tem a sua vida marcada por longa experiência amorosa de que a alcova
do seu estúdio de escultor é testemunha. Logo o segundo capítulo escolhe para
narratária um “você” feminino, escritora casada também com um pediatra, tal
como o narrador, pretexto para uma troca cínica de mensagens, sobre o papel de
ambos naquele jantar em que se conheceram, de encerramento de umas Jornadas Internacionais de
Pediatria, acompanhando virtuosamente os respectivos cônjuges, enquanto
destilam palavras de malandrice e displicência
trocista, própria de seres rebeldes e descrentes.
«Um Amor Feliz»
é, pois a história de um herói que, acima de tudo, se «gosta», ainda quando se
condena, em diálogo corrosivo, de laracha social com a narratária, em
paralelismo mental de mais um “jogo de espelhos”, ambos impúdicos sob a
aparência de seriedade, a frase daquela que
dá o mote à ficção - «uma pessoa casada só com outra pessoa casada» -
mais os diálogos seguintes, constituindo ponto de partida para a adopção dessa
como o “você” narratário principal dos seus desabafos, como em “pacto de
auxílio mútuo”. Igualmente tal confidencialidade se estabelece aquando da
crítica literária que os versos daquela – na realidade seus – lhe merecem,
pretexto para se revelar a si como poeta e simultaneamente crítico literário de
si próprio, enriquecendo com tais mistificações a figura do autor, que no seu
único romance se projecta em várias facetas comportamentais e literárias,
simultaneamente de narrador, personagem e autor.
Tais mistificações não serão, todavia, únicas: quase
no final (capítulos XLIII e XLIV), o diálogo, de alternada violência e
cordialidade, com outra personagem, outro alter-ego, amigo da narratária –
Fernão, ele próprio, David, o outro - retomando o tópico da escrita como teoria
do romance-projecto, enquanto, “no retiro de fados do Bairro Alto, onde
acabámos por ancorar (depois de “demoradamente subirmos o Chiado” - claras sugestões de Eça -), já eram
escassas, entre os clientes, essas broncas cataduras de frustrados aspirantes a
Marialvas que são hoje directores gerais, passadores de droga, deputados da
nação ou membros de segurança de qualquer partido” – crítica ácida, pessoal,
distante das picardias de Eça, que no dito de uma personagem arrasa, pela
caricatura, uma figura ou uma classe política.
Uma estrutura ziguezagueante, quer na temporalidade
evocativa, abarcando o presente, com analepses evocativas do passado desde a
infância de menino da mamã, órfão de pai, a quem a figura do padrasto foi
imposta, quer na ficção que vai desenhando em torno de si próprio, e que incluirá
a doença e a morte da mãe, precedida do breve problema cardíaco da esposa,
provocador de uma séria aflição do marido, e aparato hospitalar.
Inicia-se com a referência a Y, a figura espiritual
para um escultor sexagenário que nela encerra o seu mundo idealizado de
perfeição quer física, quer de gestos ou de formação moral, superior a todas as
mulheres que até então conhecera. Para mais, estrangeira, e sempre as
estrangeiras representaram, na espécie de provincianismo admirativo a que não
escaparam nem Garrett, com as suas misses rivais de Joaninha, nem Júlio Dinis,
com a sua Miss Jenny, nem Eça, com Maria Eduarda aparentemente estrangeira, um ideal de
perfeição espiritual que culminou em David Mourão-Ferreira, a quem o cinema
fornecia, aliás, também, bastos exemplos dessas perfeições inefáveis: Y
representa, pois, o supremo encanto, a suprema ternura, a escultural figura de
gestos naturalmente amantes, sem falso pudor para ele, figura de idolatria, a todas superior, na paixão serôdia de um envolvimento sem mácula. É
essa que se retrata na obra “Um Amor Feliz”, deixando em suspenso, contudo, a
possibilidade de um final feliz, ela própria, afinal, humana e ciumenta, o que
a leva, não a protestar mas a desaparecer temporariamente, com delicados
bilhetes explicitando falsas justificações de contratempos surgidos e vagas
promessas de regresso, após um primeiro regresso doloroso e frustrado.
Sendo pois uma história de um amor feliz – realidade
que a estrutura do livro, com final em aberto, põe sabiamente em causa, no
cepticismo da consciência do efémero, é uma ficção em torno de um herói dândi e mimado, rodeado
pelo universo feminino desde criança – uma mãe jovem e amada, a ternura da criada
Tá, mantendo a lembrança do pai, oficial de farda branca, a frustração de órfão
com padrasto, o mundo das mulheres, entre as quais a esposa, jovem estudante
convencional que o amor transformou, posteriormente distinta pediatra, mulher
que a vida boémia do marido – escultor com atelier - certamente frustrou, mas
mantendo as aparências e a cordialidade feita de cuidado pela saúde respectiva.
Também a encarregada da limpeza do estúdio, Floripes, desempenha o seu papel, no
diálogo caricato, como denunciante e conselheira, responsável pela crise de
ciúmes e fuga de Y, além de ser mãe da Zu, estouvada jovem dos bilhetes
anónimos e das ambiçõezinhas e curiosidades sem grandes escrúpulos, representante
de uma juventude feminina de modéstia intelectual contraposta ao despudor
moral.
Um sábio livro bem artilhado, segundo os esquemas ficcionais
que as teorias literárias propõem, em requinte mistificador a que não faltam os
nomes símbolos - X(ô), Y, Z(u) – da
focalização transfigurante do narrador, à excepção da Zu, de atitude e diálogo
atrevidamente saborosos e realistas, personagem com vida própria, mau grado a intenção crítica do narrador omnisciente.
Um livro que recebeu prémios vários. Um escritor que
escreveu, entre outras letras, “Barco Negro” para Amália Rodrigues. O
poema poderá ser uma feliz canção de amor servindo de corolário ao romance “Um
Amor Feliz”, o qual contém, de resto, várias frases de escritores vários, em
epígrafe, como leit-motiv ficcional.
«Barco Negro», pela voz inefável de uma figura também de
perfeição, que a internet nos permite rever:
Barco
Negro
De manhã, que medo, que me
achasses feia!
Acordei, tremendo, deitada n'areia
Mas logo os teus olhos disseram que não,
E o sol penetrou no meu coração.[Bis]
Acordei, tremendo, deitada n'areia
Mas logo os teus olhos disseram que não,
E o sol penetrou no meu coração.[Bis]
Vi depois, numa rocha, uma
cruz,
E o teu barco negro dançava na luz
Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas
Dizem as velhas da praia, que não voltas:
E o teu barco negro dançava na luz
Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas
Dizem as velhas da praia, que não voltas:
São loucas! São loucas!
Eu sei, meu amor,
Que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor,
Me diz qu'estás sempre comigo.[Bis]
Que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor,
Me diz qu'estás sempre comigo.[Bis]
No vento que lança areia
nos vidros;
Na água que canta, no fogo mortiço;
No calor do leito, nos bancos vazios;
Dentro do meu peito, estás sempre comigo.
Na água que canta, no fogo mortiço;
No calor do leito, nos bancos vazios;
Dentro do meu peito, estás sempre comigo.
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