Ao
ler, na revista “Fugas”, o artigo de Humberto Lopes «As boas memórias da
feitoria portuguesa em Antuérpia», lembrei a história que
aprendera, de glórias, sim, mas de decadência também, portuguesa, que nos fazia
canalizar para a Holanda tantas das riquezas provindas das rotas marítimas através
da tal “feitoria” de Antuérpia, servindo de entreposto comercial com a Europa
do Norte, em breve a nação precisando de pagar ao estrangeiro o pão que
comíamos, pois a ânsia do ouro das Índias causava o êxodo dos campos, e a
política de centralização do poder real, com a criação de uma nobreza faustosa
e parasitária, a breve trecho nos tornou um país dependente do estrangeiro por
não produzirmos. Uma gesta, a nossa, tão ambiciosa quanto admirável de “resiliência”,
como hoje se diz, para animar os adeptos do falhanço. Na realidade, muito
lutámos e esbanjámos, em vidas e custos, num fogacho de glória que nos tornou
pioneiros da globalização, e extraordinários, apesar de tudo, pelo que conseguimos,
de que “Os Lusíadas” são eco, retomado por outras vozes, como a de Pessoa na
sua “Mensagem”.
A
leitura do artigo de Humberto Lopes fez-me consultar, na Internet, uma síntese
sobre a “Utopia” de Thomas Morus e encontrei um trabalho de António
Marques Miguel de introdução a uma
proposta de trabalho aos seus alunos de “Pensamento e Comunicação” do
Departamento de Arquitetura (4º ano do ano lectivo de 2002-2003).
Foi,
pois, um grande prazer de leituras, visto que, como nunca li a Utopia,
desconhecia essa tal personagem
portuguesa “Rafael”, que nos situa numa época de tanto esplendor tecnológico,
matemático, científico e literário português, bem merecedor do crédito de
uma extraordinária figura de pensamento e nobreza de alma, como foi Thomas Morus.
As boas memórias da feitoria portuguesa em Antuérpia
Por
Humberto Lopes
“Fugas” (Público ), 16/7/16
16.07.2016
Mesmo
sem eloquentes sobrevivências patrimoniais de ordem material, a contribuição
lusitana para a prosperidade de Antuérpia é bem reconhecida. Um passeio pela
cidade flamenga, evocando um pouco da memória da presença portuguesa desde o
início do século XVI.
Da
Valónia à Flandres, segue-nos o mesmo cenário do outro lado da janela do
comboio, o plat pays da canção de Brel.
Planuras sem fim, manchas de arvoredo dispersas por verdes pradarias, aldeolas
de casario térreo e telhados inclinados, os altos campanários das catedrais
como singulares montanhas, canais perdidos em horizontes tocados por céus
baixos e cinzentos. Voam pelos ares, ainda, restos de chuva do temporal da
véspera; o vento começou a mudar de direcção de manhã e não é improvável que
durante a tarde irrompam alguns fulgurantes raios de sol sobre as imagens
douradas que coroam o Stadhuis (a Câmara Municipal) e as seiscentistas casas
das velhas guildas de Antuérpia.
Vamos
de Bruges a Anvers, a designação francófona da que foi uma das
cidades mais prósperas da Europa nos séculos XVI e XVII. De uma a outra
cidade viajou também, há quinhentos anos, o inglês Thomas More, no intervalo de
uns afazeres oficiais que o levaram à Flandres. O dia de ócio acabou por
providenciar o “encontro” em Antuérpia com o principal personagem do livro, um
certo marinheiro e aventureiro português, de “tez trigueira” e “longa barba”, a
condizer com a condição e no retrato instantâneo que surge numa das primeiras
páginas do livro. O marítimo é apresentado a More mais como um sábio do que
como um simples “patrão de navio”.
Este
português, que seria a fonte de informação sobre a tão distante ilha de “bom
governo” descrita na Utopia, trouxe das viagens um
precioso património de experiências e saberes. “Navegou como Ulisses, e
até mesmo como Platão. (...) conhece bastante bem o latim e domina o grego com
perfeição. O estudo da filosofia ao qual se devotou exclusivamente, fê-lo
cultivar a língua de Atenas de preferência à de Roma. E, por isso, sobre
assuntos de alguma importância, só vos citará passagens de Séneca e de Cícero.
Portugal é o seu país.” Rafael havia feito, enfim, a escolha entre ser Abel
ou Caim, entre a liberdade e a propriedade com as amarras do sedentarismo: “Jovem
ainda, abandonou seu cabedal aos irmãos; e, devorado pela paixão de correr
mundo, amarrou-se à pessoa e à fortuna de Américo Vespúcio (…) durante as três
das quatro últimas viagens, cuja narrativa se lê hoje em todo o mundo.”
More
pormenoriza o local do encontro, a Catedral de Notre Dame. Imaginemo-los na
companhia do flamengo Pieter Gillis, amigo comum, saindo de Notre Dame e
passeando-se pela já então muito cosmopolita praça central de Antuérpia, o
Grote-Markt, que em português soa muitíssimo bem tratando-se de uma cidade que
ficou a dever a sua prosperidade ao comércio e que representava de forma
notável um exemplo das sociedades mercantis em emergência na época.
O sonho de Adam Smith
A
prosa que descreve esse encontro e a fantástica narrativa de Hitlodeu, a Utopia, foi inicialmente publicada em Louvain, em
1516, mas o lugar central de Antuérpia na sua génese tem sido,
justificadamente, celebrado nesta cidade. Quanto à presença do protagonista
português, ela está longe de ser um acaso: Portugal jogava então um papel
preponderante na construção da economia-mundo com o seu comércio de
especiarias, e o autor tinha certamente na bagagem a leitura de narrativas das
navegações que largavam do Tejo.
A
prosa de More articulava as ideias de Adam Smith quanto à origem da força e da
riqueza das nações com o esboço, já, dos contraditórios que iriam preencher os
compêndios vindouros da nascente ciência económica. As tiradas do
personagem português, se descreviam as idealizações de uma sociedade “utópica”,
não rasuravam as distorções sociais e morais mais óbvias: “A principal causa da
miséria pública reside no número excessivo de nobres, zangões ociosos que se
nutrem do trabalho e do suor de outrem...”.
Não
é indiferente o contexto em que a alegoria progride. O que Antuérpia e outras
cidades da Flandres davam ao mundo, às nações europeias e às outras que com
elas estabeleciam laços comerciais, era todo um novo sistema, muito mais aberto
ao mundo e construído na base de extensas relações com ideias e geografias
diferentes, natural sequência nos tempos renascentistas. Algumas reservas
ficavam já lavradas nos argumentos esgrimidos pelos personagens; outras
brotariam da incessante roda de ideias. Como as de Bakunine, que viria a
sugerir, mais tarde, que “a concorrência não tem coração, não tem piedade
(...). Nessa luta são necessariamente cometidos muitos crimes; toda essa luta
fratricida não passa de um crime cometido contra a solidariedade humana, base
de toda a moral”, asseverava o céptico anarquista.
Lição de cosmopolitismo
Das
margens do rio Escalda às portas da Centraal Station, ao longo da Lange
Nieuwstraat, da Korte Nieuwstraat, da Meir ou de muitas outras artérias que vão
cruzando pequenas praças preenchidas por esplanadas cobertas por toldos e
aquecidas nos dias mais frios, no Grote-Market e nas ruelas contíguas, os
cenários são desenhados com a mais eloquente arquitectura flamenga.
Os
bares com cerveja belga artesanal alternam com restaurantes de variadas
bandeiras e paladares; logo à saída da Centraal Station, a uma dezena de
metros, o icónico Bier Central, uma paragem inevitável, lista mais de trezentas
marcas de cerveja, muitas de fabrico artesanal. E não há que andar muito
para se dar com ementas gregas, chinesas, japonesas, eslavas, mexicanas, árabes
ou portuguesas. Ou lojas e mercados multi ou transculturais onde os
tecidos já são mais coisa dos Orientes do que flamengos, como era usual em
séculos idos. E ruas de comércio indiano ou paquistanês (sobretudo as das nacht winkels, lojas abertas noite dentro),
marroquino, turco...
Nada
de insólito, bem vistos os factos; que grande cidade não afixa cenário
equivalente? O complemento “natural” destes intermitentes bazares é a massa
heterogénea de gente que caminha pelas ruas, cada caminheiro com as suas
convicções, as suas (in) exactidões, as suas existências, os seus destinos,
numa cidade que provou ao mundo que separar as águas com facilidades de passe
de mágica só pode ser coisa de fantasmática página bíblica.
Se
a prosperidade é coisa que nasce das trocas comerciais, o conhecimento viaja
também nesse vaivém que é, também, de idas e voltas de seres humanos. Não
dizia Braudel que com as mercadorias viajam ideias, hábitos, costumes,
práticas, cultura, enfim? Olhemos as ruas de Antuérpia: podia o nosso Hitlodeu
dizer o mesmo. E More, que nas suas passeatas pelo burgo flamengo terá visto já
um tanto do que agora vemos, ao caminhar por estas ruas que cedo acolheram o
cosmopolitismo das grandes cidades comerciais. Fechar hermeticamente fronteiras
é coisa recente na longa história das sociedades humanas e esta cidade flamenga
não se embaraçava, nem ninguém nela, com a variedade de gente que se cruzava no
porto e no Grote-Markt.
Lodovico
Guicciardini, ilustre mercador florentino da Flandres, pôde escrever que “em
nenhum lugar do mundo os estrangeiros são tão senhores dos seus actos e gestos
como em Antuérpia (...). Resulta desse facto que vive aqui uma mistura de
pessoas de todas as nacionalidades e que se ouve falar em Antuérpia um grande
número de línguas diversas”. E acrescentou uma observação, algo hiperbólica,
que relativiza as nossas contemporâneas “descobertas” da multiculturalidade e
as iluminadas elucubrações multiculturalistas da intelectualidade orgânica. “As
viagens para lugares distantes são completamente supérfluas para quem quiser
estudar ou imitar os usos e os costumes de um ou outro povo: encontra-os aqui
todos reunidos nesta cidade.”
O
exemplo percorria as margens do Mediterrâneo e de outros mares e terras, disso
nos lembram as páginas de Amin Malouf ou os juncos chineses que o conquistador
Albuquerque encontrou em abundância carregando mercadorias em Malaca. Ou as
cosmopolitas urbes da Rota da Seda, de Kasghar a Pequim, ou, até, o encontro do
Gama em Calecute com dois muçulmanos tunisinos que falavam castelhano e
genovês...
Do Oriente para Antuérpia
As
circunstâncias político-religiosas pesaram, assegurando aos seus habitantes
“essa imunidade religiosa e intelectual que faz a sua glória e prosperidade”,
lemos numa evocação desses tempos, um volume publicado pela extinta Livraria
Orfeu, de Bruxelas (Portugal & Antwerpen - 1498-1648,
de Anne Quartaet e Frederic Wille), que mantém, todavia, a sua componente
editorial e as suas edições acessíveis aos leitores no espaço da Lusoloja, na
Chaussée de Louvain, na capital belga.
Aos
fundamentalismos nacionalistas anti cosmopolitas, o argumento da imunidade
intelectual e religiosa, e a virtude que supõe, deve gerar um certo
desconforto: “A cidade consegue permanecer na perspectiva espiritual o que era
na perspectiva comercial e económica, um oásis de liberdade, quase de anarquia,
apesar de um período difícil de um ponto de vista político”, escrevem os
autores do livro. Muitos dos insignes portugueses da história de Antuérpia eram
judeus ou cristãos novos que foram obrigados a abandonar Portugal, perseguidos
e em risco de acabar nas fogueiras da Inquisição.
Ao
passearmos pela Lange Nieuwstraat, pela Kipdorp e pelo Meir, em trechos da
cidade que acolheram mansões de portugueses, é justo recordar que a acção e
o celebrado engenho dos lusitanos que viviam na Flandres representaram notáveis
contribuições para a prosperidade da cidade flamenga — tanto através do
comércio de especiarias como da actividade de lapidação de diamantes e pedras
preciosas. Jacques Attali nomeava as cidades europeias que mais
beneficiaram do comércio com as Índias (orientais e ocidentais): Antuérpia e
Sevilha.
A
experiência de Guicciardini reforça essa ideia: “O crescimento mais notório que
tornou esta cidade tão famosa e rica começou por volta de 1503 e 1504, no
momento em que os portugueses começaram a trazer especiarias e drogas das
Índias para Portugal e daí para as feiras desta cidade.” Com os seus
armazéns a abarrotar de pimenta, cravinho, gengibre, noz-moscada, Antuérpia
chegou a ser o maior depósito de especiarias da Europa e respondia por um
quarto das receitas da nossa Casa da Índia. Pouco mais tarde, seria o açúcar,
mercadoria embarcada na Madeira e em São Tomé, outro importante motor da
economia antuerpiana. Na Suikerrui, hoje uma rua pedonal entre a Notre Dame e
as margens do Escalda, haveria uns quatro importadores portugueses que
forneciam aquela matéria-prima aos refinadores locais.
Ocultos sinais lusitanos
Indagamos,
ao passo ziguezagueante de um roteiro traçado na zona mais antiga, os signos e
as histórias de gente portuguesa que por ali andou fazendo História e deixando
nome. E ao calcorrear itinerários no centro histórico descobrimos biografias
que revelam esplendor e tragédia, narrativas que são também um pouco do que
conta como registo histórico do Portugal que não se quedou dentro das suas
fronteiras — como, aliás, tantos outros povos cuja identidade dificilmente se
pode confinar ao que se costuma designar por raízes.
Como
tão exemplarmente resumiu Juan Goytisolo (que escolheu Marraquexe para pátria)
a propósito dos fenómenos migratórios, “o homem não é uma árvore: carece de
raízes, tem pés, caminha”. “Desde os tempos do homo
erectus circula em busca de pastos, de climas mais benignos, de
lugares onde possa resguardar-se das inclemências do tempo e da brutalidade dos
seus semelhantes.” Como estranhar, ou esquecer, pois, que foi da Europa que
partiu uma das maiores vagas de emigração do século XX? Mais de sessenta
milhões de emigrantes europeus puderam rumar livremente para África e para as
Américas...
Uma
boa parte das residências dos mercadores, dos lapidadores de pedras preciosas e
de um ou outro banqueiro luso, situava-se numa zona delimitada pela Lange
Nieuwsraat, pelo Meir e pela Gasthuisstraat. A feitoria, transferida de
Bruges logo no início do século XVI, e também conhecida por Casa de Portugal,
tinha assento na Kipdorp.
O
edifício já não existe, mas é ali que podemos ver uma reminiscência
arquitectónica da Casa de Portugal, um tecto abobado no que é actualmente um
quartel de bombeiros. Na entrada principal, uma placa comemorativa, em
flamengo e em português, assinala a relevância histórica do lugar: “Aqui foi
durante três séculos a Casa de Portugal que o rei Dom Manuel I mandou fundar em
1511 para expansão do comércio português.” Na monumental escadaria do
Stadhuis, uma grande pintura mural mostra uma cena da inauguração da Bolsa, em
1532; algumas das figuras que rodeiam os altos magistrados da cidade são
representantes da comunidade portuguesa.
Ali
perto, na confluência da Markgravestraat com a Lange Nieuwstraat (onde havia
também estabelecimentos portugueses de lapidação e comércio de pedras
preciosas), vemos uma capela gótica de finais do século XV. Fez parte de
um palácio lusitano, o Immerseel, propriedade do cônsul Rui Fernandes de
Almada. O palácio desapareceu, entretanto, e é na Chapelle de Borgogne que
sobrevivem alguns motivos pictóricos evocativos da presença portuguesa, entre
os quais um brasão de Portugal.
Um
pouco mais adiante, ainda na Lange Nieuwstraat, entramos no maior templo de
Antuérpia, a igreja de Santiago (ou Sint-Jacobskerk, em flamengo),
histórica etapa na peregrinação a Compostela. O edifício, em gótico flamejante,
e beneficiário do mecenato de Diogo Duarte, comerciante de pedras preciosas
descendente de um cristão-novo escapado da Inquisição, alberga no interior,
entre outros, o túmulo de Rubens e ostenta uma obra prodigiosa em mármore que
inclui mais de uma vintena de altares. Há brasões lusitanos à vista, o
túmulo de Diogo Duarte e, uma vez mais, uma história que as reminiscências
materiais deste itinerário não contam por inteiro: o português ficou conhecido
também como um grande coleccionador de arte, deixando um espólio de quase duas
centenas de obras, incluindo pintura com as assinaturas de Bruegel, Durer, Van
Dick, Rafael, Tintoretto e Ticiano.
Não
foi o único: outros mercadores e feitores portugueses coleccionaram também
obras de Dürer, pintor que fez amizade com alguns deles — na Galeria dos
Ofícios, em Florença, conserva-se um quadro que é fruto dessa relação, La Negresse Khatarina, retrato de uma criada do
feitor João Brandão. Por cá, no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, podemos
revisitar um pouco das boas memórias da feitoria portuguesa de Antuérpia e
apreciar o São Jerónimo que Dürer terá oferecido a Rodrigo Fernandes de
Almada. Foi há quase quinhentos anos, em 1521, pouco tempo depois de Thomas
More ter visitado Antuérpia e ter encontrado um certo Rafael Hitlodeu.
Dos velhos cais à arte de Rubens
Haverá
quem viaje até Antuérpia só por Rubens, como até Florença apenas pela Galeria
dos Ofícios? Não é improvável. Mas se os Uffizzi e a cidade do Arno têm outros
encantos, também à urbe de Rubens e de Van Dick não faltam seduções para
viageiros de plurais interesses. Quanto às narrativas sobre o esplendor
quinhentista das especiarias, a zona do porto antigo pode ser um atractivo:
há curiosos percursos temáticos junto aos velhos cais disponibilizados por
algumas agências locais. Visita incontornável nessas bandas: o museu MAS,
que conta a riquíssima história do porto de Antuérpia.
Também
na zona ribeirinha, à distância de uma breve caminhada a partir do Grote-Markt
e de Notre Dame, há uma visita estimulante: o museu da Red Star Line, uma
companhia de navegação fundada na segunda metade do século XIX. O espaço,
utilizado outrora para o embarque de passageiros, é capaz de contar histórias
assaz pertinentes: entre 1873 e 1934 a companhia transportou para o continente
americano cerca de dois milhões de passageiros, a maioria emigrantes europeus
em busca de vida melhor.
A
propósito de museus, na rua Wapper fica a casa apalaçada onde viveu Rubens.
Aí encontramos (tal como na catedral) um interessante acervo de obras do
pintor, filho de presbiterianos e católico por opção. A fé deste prolífico
mestre está aí testemunhada. Mas Peter Paul Rubens era um artista completo, era
mais do que um crente temeroso de ameaças bíblicas: para uma apreciação de
algumas das surpreendentes figurações eróticas na sua pintura é preciso ir até
ao Museu Real de Belas Artes, ou um pouco mais longe, ao Mauritshuis,
em Haia. Ou ao Museu do Prado, que conserva um magnífico Jardim do Paraíso, pintado a meias com Bruegel,
o Velho, além do sedutor As Três Graças, assinado
com o seu mais famoso discípulo, Van Dick.
Sardinha assada na Sint-Jansplein
A
ágora, larga bastante para ser palanque de mercados populares, também dá pelo
nome de Praça de São João e por lá podem soprar aromas culinários dos santos
populares ou agitarem-se festejos de vitórias futebolísticas, como sucedeu
recentemente.
E
não é apenas gente lusa a que frequenta os cafés ou as padarias portuguesas —
também os belgas se tornaram entusiastas da doçaria lusitana, sobretudo dos
quase universalmente famosos pastéis de nata, iguaria muito estimada tanto em
Antuérpia como em Bruxelas, onde a Pastelaria Garcia se tornou ponto de
encontro dos apreciadores.
São
à volta de cinco mil os portugueses residentes em Antuérpia, gente de várias
gerações e diferentes vagas de emigração. A mais “antiga”, diz-nos Marília
da Cunha, a viver na cidade há mais de cinquenta anos, “passa
despercebida”, tal o enraizamento na cultura e sociedade locais, fenómeno que
acredita ter maior expressão na comunidade portuguesa. As gerações migrantes
mais recentes parecem estar mais concentradas nas actividades profissionais,
menos sensíveis ao reencontro ou às trocas culturais, face ao pouco interesse
que certos eventos despertam.
Noutros
tempos, nos anos 1980, chegou a haver uma mais significativa actividade
cultural — “havia jograis, teatro, festejava-se mais os santos populares”. Para
o viajante contemporâneo, o comércio, representado por mercearias (bem)
abastecidas de produtos lusitanos, acaba por ser, talvez, o sinal mais visível
da actual presença portuguesa em Antuérpia.
António Marques Miguel .
Utopia de Thomas More
A UTOPIA
Thomas
More (1478-1535), Sir e São
A
obra “Sobre o melhor estado de uma república e sobre a nova ilha Utopia”,
conhecida correntemente por A UTOPIA, elevou Thomas
More a figura incontroversa da Renascença, no duplo sentido de cultor das
letras e defensor dos direitos civis.
A
REPÚBLICA de Platão, apesar dos seus já dezanove séculos, foi
decerto inspiradora do inglês, diplomata e Chanceler do Reino de Henrique VIII,
pelo tema de filosofia política, que denuncia a injustiça da polis, recuperando
More ainda algum ideário daquela e os modos de diálogo.
More,
convicto cristão e servidor, acima de tudo, do seu Deus, que de si disse ser “
De família honrada, sem ser célebre”, teceu a obra com três intervenientes; ele
próprio, o seu amigo Peter Gilles, de Antuérpia, e o marinheiro “
nascido em Portugal “ Rafael Hitlodeu, por aquele apresentado, porquanto
“ Não existe na terra nenhum outro capaz de dar tão completos e interessantes
pormenores acerca dos homens e das regiões desconhecidas ”.
Na
trama moriana, o personagem narrador é o seu alter ego (PINA
MARTINS, 2006), um marinheiro que acompanhou o navegador florentino Amerigo
Vespucci nas suas viagens ao Novo Mundo. Na óbvia ficção, a escolha de Rafael,
nome bíblico e da segunda caravela na viagem de Vasco da Gama à Índia,
acrescido do apelido Hitlodeu, traduzível por “tagarela ”, espelha,
e qualifica, as opções de Thomas More que teria conhecido os Itinerarium
Portugalensium que narravam, com pormenores, aventuras extraordinárias de
viagens e descoberta de novos povos.
More
eivado pelo desencanto da sua Europa, imagina que só no Novo Mundo,
existirá um lugar de uma felicidade entre homens, organizado, a ilha dos
utopianos, em nenhures, fazendo da Outopia (não-lugar) uma Eutopia, lugar
feliz.
Thomas
More que sempre serviu o seu Rei, suportando algumas contradições, tinha
como seu amigo, o grande humanista e pedagogo Erasmo de Roterdão
(1466-1536), visitavam-se nas suas respetivas cidades, sabendo-se que o Elogio
da Loucura (1509), a importante obra reformista, crítica da sociedade da
época, incluindo a Igreja, foi escrita e discutida entre ambos, em Londres.
Foi
porém Peter Gilles, o seu primeiro grande conhecimento em Antuérpia, que
tinha nas suas relações intelectuais e artistas, Guillame Budé, Lefèvre
d’Étapes, Thierry Martens, Albrecht Dürer, entre outros, que lhe apresentou
Erasmo e publicou a edição princeps de A UTOPIA (1516) com a supervisão deste.
A
obra estrutura-se nos Livro I e Livro II, aparecendo, nas
traduções, acrescida por algumas cartas do autor e de seus contemporâneos, e
ainda do Alfabeto Utopiano que inclui Versos Sobre a Ilha da Utopia.
O
Livro II , que, na feitura, teria sido o primeiro, é “uma descrição
dessa ilha maravilhosa. Não omitais nenhum pormenor, peço-vos ”, assim More
disse a Rafael, a que este respondeu “mas a narrativa é demorada.“
(…) “ Entrámos então em casa para jantar e voltámos depois ao jardim
sentando-nos no mesmo banco. ” (…) ” Ele, ao ver a nossa curiosidade ávida e
atenta, recolheu-se um instante em silenciosa meditação e começou nestes
termos: (Livro II) – A ilha da Utopia tem dois mil passos na sua maior
largura, …”.
Este
Livro segundo, do modo de viver dos Utopianos, desenvolve-se em oito
capítulos que vão da descrição física dos territórios, onde as suas
cinquenta e quatro cidades são semelhantes (Amaurota é uma delas, sede do
governo e do senado), ao último sobre as religiões praticadas; passando pelos
magistrados/zelo pela justiça; o trabalho mínimo de seis horas, essencialmente
na agricultura, que todos praticam; os deveres e direitos de família; da
cidadania; das viagens que empreendem; da distribuição de bens (não há
propriedade privada) e da guerra.
Os
mais aptos formam a elite culta, mas todos os cargos são eleitos. Escravos são
os ladrões, ou os de comportamentos menores, mas não pelos seus progenitores,
ou ainda inimigos de guerra apanhados com armas. Os casais conhecem-se
obrigatoriamente nus e o adultério é reprovado com pesadas penas; aqui
prevalece a moral cristã.
O
Livro I desenvolve-se em diálogos, primeiro entre More e
Pedro Gilles, depois com Rafael e ainda deste com um quarto personagem o “
eminentíssimo John Morton, cardeal-arcebispo da Cantuária e Chanceler de
Inglaterra ”.
Este
Livro, pela pena de More aborda dois polémicos temas: a conveniência
ou não da participação do filósofo no conselho aos príncipes e a punição (pena
de morte) aplicada a ladrões em Inglaterra.
More
pensa que os filósofos tinham a responsabilidade e o deviam fazer, de
proporcionar ensinamentos sólidos, conselhos preciosos e assistir aos reis.
Quanto aos ladrões, se houvesse condições iguais para todos não haveria
pretexto para roubos.
“
Em primeiro lugar os príncipes preocupam-se apenas com a guerra: arte que me é
desconhecida e que não tenho desejo algum de praticar. “
“A
morte é, neste caso, o castigo injusto e inútil: demasiado cruel para punir o
roubo e demasiado forte para o impedir. “
Estas
são falas de Rafael, o marinheiro que lia grego e se “dedicou predominantemente
à filosofia ” e não de Thomas More, como autor.
Mas
algumas das “ suas contradições ” não invalidam a firmeza de convicções de que
o grande exemplo foi recusar prestar juramento, nos termos do “ Decreto
da Sucessão ” e do “Ato de Supremacia ” - decorrente da união de Henrique
VIII com Ana Bolena - por fidelidade à sua própria consciência e fé, o que
lhe valeu, “ por clemência “ do já “ cabeça da Igreja de Inglaterra
” a pena de “ simples decapitação ” em vez de “ ser suspenso pelo pescoço
” e cair em terra ainda vivo para ser “ esquartejado e decapitado.”
Foi
este facto que o levou como mártir, à canonização pela Igreja Católica, em 9 de
maio de 1935. Erasmo elogiou-o como homem “ cuja alma era mais pura do que
qualquer neve.” Sir já o era pelos feitos à coroa inglesa.
A
história regista ainda a coragem de Thomas More, a sua ironia e bom humor,
quando a caminho do patíbulo disse ao tenente da guarda ”Ajuda-me a subir com
cuidado, que eu para baixo amanho-me sozinho ” e lá, puxou as barbas para o
lado porque nunca tinham ofendido o Rei
Foi
este humanista, inglês cristão, descrevendo o espaço de cidadania, a cidade com
contornos físicos, que assumidamente escreveu há quase 1700 anos, a primeira e
das mais belas utopias humanas (seguiu-se A Nova Atlântida
de Francis Bacon em 1627), idealizando o Homem restituído à sua
dignidade, criticando a razão de Estado em nome dessas exigências, e ficcionou
Rafael.
“
A dignidade real não consiste em reinar sobre mendigos, mas sobre homens ricos
e felizes.“
Mas
Thomas More bem entendia o ser humano, por isso ainda escreveu “ Além
disso, não estava seguro que ele (Rafael) fosse capaz de sofrer pacientemente a
contradição”, a sua Utopia a continha, por isso humana, também retrato dele
próprio.
Louvou
as instituições criadas por Utopus, fundador da ilha, mas concluiu assim a sua
obra: “ Desejo-o mais do que espero”.
Óscar
Wilde disse que a cada janela aberta outra se oferecia, referia-se à
utopia e escrevia então “ A alma do homem sob o socialismo.“
As
utopias, fonte de alternativas, não são criticáveis, os utopismos, simples
irrealismos, sim.
Novembro de 2012
António Marques Miguel
Bibliografia
A
UTOPIA, Tomás Morus, Lisboa, Guimarães Editores, 9ª edição,
1994. Tradução de José Marinho, Notas e Postfácio de Pinharanda Gomes
VTOPIA
ou A melhor forma de governo, Thomas Morvs, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 2ª edição revista, 2009. Tradução, com prefácio e notas de comentário
de Aires A. Nascimento. Estudo introdutório de José V. de Pina Martins
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