sábado, 1 de outubro de 2016

Fazer da fraqueza força?


Ao procurar o artigo do Público de Jorge Almeida Fernandes para o transpor sem esforço, coisa que não consegui, tendo que o copiar, encontrei uma tradução brasileira do New York Times que pude transportar directamente e adaptá-lo ao português de cá. Eram ambos sobre o tema assustador dos ensaios nucleares com que se diverte Kim Jung-un, tal Nero contemplando as chamas do incêndio de Roma, por ele mandadas atear e poetando, segundo extrapolação do filme “Quo Vadis?”.
Cá longe, os analistas políticos entretêm-se a demonstrar a racionalidade das acções criminosas de mais um promissor bandido da craveira de outros bandidos que passaram, com fleuma e sabedoria, para nos irmos adaptando à nova hecatombe – genocídio será mais provável, que se prepara, as duas potências, EUA e China, trocando salamaleques  e olhando-se de soslaio, enquanto Kim se rebola no gozo antecipado das suas potencialidades atacantes e defensivas, de ensaios, por agora, destrutivos e poluentes, sem dúvida, rindo, entretanto, da partidinha que está pregando aos grandes.
Eis os textos, o de Jorge Almeida Fernandes uma boa análise da engrenagem em que se movem as forças responsáveis pelos comandos do mundo:

PARA ANALISTAS, COREIA DO NORTE NÃO É LOUCA, MAS COMPLETAMENTE RACIONAL
MAX FISHER
DO "NEW YORK TIMES"
14/09/2016  
A Coreia do Norte é irracional? Ou só finge ser? Ameaças de guerra, ataques ocasionais contra a Coreia do Sul, líderes excêntricos e propaganda exagerada são alguns dos motivos dados pela Coreia do Norte para suscitar essas perguntas.
Com o avanço do seu programa nuclear e de mísseis, com um quinto teste nuclear na semana passada, essa preocupação tornou-se mais urgente.
Mas cientistas políticos vêm repetidamente considerando essa questão e, na maioria das ocasiões, chegam à mesma resposta: o comportamento da Coreia do Norte, longe de insano, é completamente racional.
A beligerância que o país exibe, concluem, parece calculada para manter no poder um governo fraco e isolado que de outra forma sucumbiria às forças da História. As suas provocações geram tremendo perigo, mas evitam o que Pyongyang vê como ameaça ainda maior: uma invasão ou colapso.
O cientista Denny Roy escreveu em 1994, num artigo académico que continua a ser citado, que a reputação do país como "Estado louco" e "insensatamente violento" havia "funcionado em benefício da Coreia do Norte", bloqueando as acções de inimigos mais poderosos. Mas essa imagem, concluía ele, era "em larga medida um produto de incompreensão e propaganda".
De muitas maneiras, isso é mais perigoso do que a irracionalidade. Embora o país não deseje guerra, o seu cálculo estratégico leva-o a cultivar o risco constante de um conflito – e a preparar-se para evitar uma derrota, caso a guerra aconteça, potencialmente pelo uso de armas nucleares. Esse é um perigo mais sutil, mas ainda assim grave.
Por que é que os analistas acreditam que a Coreia do Norte é racional? Quando os analistas políticos definem um Estado como racional, não estão dizendo que os seus líderes tomam sempre as melhores decisões, ou decisões moralmente corretas, ou que eles representem exemplos de estabilidade mental.
Em lugar disso, estão afirmando que o Estado se comporta de acordo com aquilo que vê como seus interesses, o primeiro dos quais é a autopreservação.
Quando um Estado é racional, ele nem sempre encontrará sucesso em termos de agir de acordo com os seus melhores interesses, ou de equilibrar metas de curto e de longo prazo, mas pelo menos tentará fazê-lo. Isso permite que o mundo direccione os incentivos de um Estado, conduzindo-o na direção desejada.
Os Estados são irracionais quando não seguem o seu próprio interesse. Na forma "forte" de irracionalidade, os líderes são tão lunáticos que se mostram incapazes de determinar quais são os seus interesses. Na versão "branda", factores domésticos tais como o zelo ideológico ou disputas internas pelo poder distorcem os incentivos, fazendo que os Estados se comportem de maneiras contraproducentes mas ao menos previsíveis.
As acções da Coreia do Norte, embora repulsivas, parecem servir bem ao seu interesse próprio racional, de acordo com um estudo publicado em 2003 por David Kang, um cientista político que hoje lecciona na Universidade do Sul da Califórnia.

A racionalidade norte-coreana
Público, 18/ 09/2016
«Kim Jong-un aposta na crescente tensão entre os Estados Unidos e a China para garantir a impunidade do seu programa nuclear. Mas corre riscos se a China for forçada a rever a sua política.»
quinto ensaio nuclear norte-coreano, no dia 9, foi também um teste aos limites da capacidade de resposta dos Estados Unidos e dos vizinhos, incluindo a China. Oirracional” Kim Jong-un e seus conselheiros fizeram uma jogada “racional”, explorando a brecha crescente entre os EUA e a China para aumentar a desconfiança entre eles e garantir a impunidade do seu programa nuclear. É por aqui que tudo parece passar.
As “sérias consequências” prometidas por Washington e mais sanções não são o que neste momento travará a Coreia do Norte.  Nem a ameaça (não oficial feita por Seul, anunciando um plano de ataque preventivo para “arrasar Pyongyang” em caso de eminente ameaça militar, nem sequer um debate sobre um programa nuclear sul-coreano. Pyongyang apostou em que a China ficaria muito irritada mas nada faria de drástico.
Na cena internacional não há uma única “racionalidade“ mas várias e em conflito. “A Coreia do Norte pensa que as armas nucleares a tornam mais segura. É um erro” escreveu o analista norte-americano Victor Cha. Lembra a declaração “franca” de um diplomata norte-coreano durante as negociações com os Estados Unidos em 2005: «A razão por que vocês atacaram o Afeganistão é que ele não tinha armas nucleares. Por isso nunca abdicaremos das nossas”.
 A lógica norte-coreana tem como objectivo a sobrevivência do regime dos Kim e quer agora impor o reconhecimento do seu estatuto de potência nuclear como o Paquistão.

Estados Unidos
Washington contra-argumenta que é o programa nuclear o que mais ameaça a sobrevivência do regime norte-coreano. Tem boas razões para o querer travar: … Tolerar o seu estatuto nuclear incentivaria mais Estados a violar o tratado da não proliferação. Depois, é uma ameaça a aliados, como a Coreia do Sul e o Japão. Por fim, a Coreia do Norte não é o Paquistão e o seu regime totalitário não é fiável.
Relatório de um almirante americano:
«A Coreia do Norte constitui um incrível perigo para toda a região. Num futuro não muito distante pode colocar os Estados Unidos continentais sob a ameaça dum míssil balístico intercontinental com uma ogiva nuclear. Não se trata apenas da segurança dos aliados”.
Que fazer? Incentivar a China a assumir as suas responsabilidades.Com uma liderança chinesa, a desnuclearização da Península da Coreia pode ser resolvida e sem ela caminhamos para uma situação muito perigosa.
O relatório não recomenda a “mudança de regime” e propõe que os Estados Unidos dêem garantias à China de que “não têm intenção de alargar ao Norte o que estão a fazer no Sul”. Frisa: “A mais importante relação bilateral no mundo para os próximos 50 ou 100 anos é a relação entre a China e os Estados-Unidos.”

China:
Em 2003, o Presidente chinês Hu Jintao , cortou o fornecimento de petróleo à Coreia do Norte por três dias. Forçou Pyongyang a negociar com os americanos. Pequim mostrou a sua capacidade de “persuasão” embora as conversações tivessem falhado. Hoje, o Presidente Xi Jimping parece paralisado num dilema.
Chineses e americanos partilham a oposição ao nuclear norte-coreano. Mas têm estratégias e temores diferentes. Washington e Seul dão prioridade à desnuclearização da península. Pequim dá prioridade à estabilidade da Coreia do Norte. Só a China pode impor sanções drásticas, que se poderão tornar “fatais” se levarem à desestabilização, ou, caso limite, à implosão do regime dos Kim.
Pequim teme duas coisas: primeiro, uma incontrolável massa de refugiados no seu território; segundo, e sobretudo, o risco de Seul e Washington intervirem no Norte, até por razões de segurança nuclear, e chegarem à sua fronteira. A Coreia do Norte é, para os chineses, o Estado-tampão perante os americanos. As tropas e bases americanas na Coreia do Sul estão lá para a proteger do Norte. Mas Pequim vê-as como força para “conter” a China.
Uma “reunificação catastrófica” alteraria profundamente as relações de forças na Ásia Oriental. Mesmo uma reunificação pacífica, que faria da Coreia do Norte uma nova grande potência asiática, económica e militar, não agrada aos americanos, aos chineses e aos japoneses. E seduz cada vez menos os próprios sul-coreanos.
O teste nuclear de Janeiro passado cimentou a aliança entre Washington, Seul e Tóquio. Pior para Pequim: levou a Coreia do Sul a pedir a instalação de defesa antimíssil THAAD. Houve um acordo de princípio em Julho. A China encara isto como uma grave ameaça à credibilidade da sua dissuasão nuclear e já reagiu contra Seul.
O dilema de Xi Jinping é evidente: quer “estabilidade”, masd a corrida nuclear norte-coreana está a tornar-se no mais grave factor de instabilidade na Ásia Oriental e pior a cimentar uma aliança hostil à China.

Coreia do Norte:
O quinto teste marca um salto no conflito. A aceleração do programa nuclear de Kim põe em causa a tese chinesa de que se trata de uma “questão bilateral” entre americanos e norte-coreanos. Essa tese valia enquanto o programa era visto como embrionário, bluff e meio de chantagem diplomática. Se os americanos o passam a encarar como uma ameaça directa à sua sobrevivência, Xi terá de repensar o seu dilema.
O teste foi mais um desafio de Pyongyang à China, forma de mostrar que rejeita a sua tutela. “Os norte-coreanos são ferozmente nacionalistas e detestam ser vistos como “província tributária da China”, escreveu o sinólogo Minxin Pey. A ameaça da Coreia do Norte não deriva da sua força mas da sua fraqueza – o risco de “caos”.
Washington deixou de fazer da renúncia ao nuclear uma condição prévia para a negociação. Mas Pyongyang exige que a negociação seja sobre toda a Coreia e não apenas sobre a desnuclearização do Norte: quer anular a protecção nuclear americana no sul. É um ponto fraco da estratégia de Kim: menosprezar a reacção da Coreia do Sul.
Frank Perry, antigo secretário de defesa de Bill Clinton, pensa que é demasiado tarde para forçar Pyongyang a abdicar da arma nuclear. Observa Snyder: «Se o desenvolvimento de armas nucleares se tornou a ferramenta central para a família Kim justificar a sua perpetuação no poder, a desnuclearização é apenas possível como produto de uma mudança de regime; a única alternativa à mudança de regime é a aceitação da Coreia do Norte como um Estado dotado da arma nuclear. Tal é a escolha estratégica que a Coreia do Norte põe aos EUA e seus aliados.»

Compreende-se assim a tese de Mike Mullen: a única forma de mudar as peças no tabuleiro passaria por uma nova relação entre Washington e Pequim. Aqui, entramos em «terra incógnita».

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