segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Como uma aparição


O meu marido, que está sempre a par das notícias, mostrou-me hoje, com um ar radiante, um jornal Online  - Observador.pt – gratuito, ao que parece, e onde Vasco Pulido Valente assenta, senhor absoluto nos seus considerandos críticos, mestre com um peso de sabedoria e de humor que apetece venerar, ainda que por vezes dele se discorde na sua olímpica displicência, como se não tivesse nascido do mesmo barro daqueles que parece desprezar. Fizera falta, todos estes meses de “sabática”. Ao que parece, voltaria para o Público, mas por enquanto não sucedeu.
Vi, pelo seu ar de descoberta, quanto  também o meu marido sentira a sua falta, pois se outras escritas aprazíveis vão alimentando o nosso equilíbrio diariamente, o certo é que ninguém substitui ninguém, na questão da personalidade literária e todos fazem parte dessas emoções diárias para quem se vai recreando e reagindo “tant bien que mal” aos nossos “instantes galhardos”, geralmente vividos no sobressalto e no suspense de uma empatia muitas vezes reticente.
Enquanto as estruturas oficiais jornalísticas o permitirem, continuarei, pois, guardando no meu blog estes nacos de  prosa de Pulido Valente, como uma formidável arma de desmistificação dos nossos tantas vezes absurdos comportamentos, mais ou menos visíveis, que os textos críticos desmascaram. De forma poderosa, os de Vasco Pulido Valente.

Vasco Pulido Valente
Observador, Jornal online
31/10/16

Segunda-feira
Não há dia em que não apareçam por aí super-portugueses de pescoço dobrado para Marcelo lhes pendurar um colar qualquer. Ultimamente foram o “menino de ouro” do futebol, Renato Sanches, condecorado em Itália com este nobre título; Jorge Moreira da Silva, um senhor do PSD que a OCDE resolveu nomear director-geral; e uma selecção de mulheres que ganhou não sei o quê. Até Jaime Nogueira Pinto publicou um livro chamado “Cinco Homens que Abalaram o Mundo”, em que patrioticamente incluiu Salazar, quando se pode escrever a história da Europa desde o século XVII para cá sem mais do que umas páginas (poucas) sobre Portugal.
Dizem os políticos que o culto dos super-portugueses, desproporcionado e tolo, serve para encorajar a ralé que por aqui miseravelmente se arrasta a grandes cometimentos, que a seu tempo salvarão a Pátria. Não ocorre a ninguém que as maiores façanhas nacionais não passam de um murmúrio que só ouve uma minúscula parte da humanidade e não têm o menor efeito fora do pequeno país que por má sina nos calhou. Pelo contrário, os super-portugueses animam o indígena a viver vicariamente a glória alheia ou a fugir de cá a sete pés. Afinal Ronaldo joga no Real Madrid, Mourinho treina o Manchester United e António Guterres não é secretário da Associação 25 de Abril.
Terça-feira
Marcelo, segundo ele próprio confessou, tinha muita curiosidade em conhecer Cuba e o assassino que os cubanos por lá conservam e que há 50 anos usava o nome de Fidel Castro. Não devemos tirar estes prazeres ao nosso Presidente, mesmo sem saber qual é a nossa política externa — para além evidentemente da ocasional caravana de mendicantes a pedir uma esmolinha por amor de Deus — e quem a faz.
Quarta-feira
Passei a tarde de ontem a ler o livro de Sócrates, “O Dom Profano – Considerações sobre o carisma”. Que dizer da coisa, senão que o próprio autor chega ao fim de 152 páginas (letra grande, mancha larga) sem, confessadamente, saber ao certo, ao certo, do que está a falar? Aparte isso, Sócrates, como era de esperar, usa a técnica do aluno cábula e sem ideias. “O Dom” dele é de parafrasear e comentar meia dúzia de cavalheiros respeitáveis (Weber, Cassirer, Kojève e por aí fora) e citar dezenas de outros por empréstimo, ou seja, porque já vinham citados no pouco que ele leu. Este método iria inevitavelmente acabar por produzir uma enormíssima trapalhada: repetições, contradições, despropósitos e vacuidades, com muito erro pelo meio e algumas sentenças de Sócrates, que roçam o vexatório. Apesar dos recados políticos e de um ou outro disfarçado aceno a um público imaginário, não se percebe por que razão o indivíduo escreveu este livro. Sonhará ele ainda vir a ser o “líder carismático” do futuro? Suspeito que sim.
Quinta-feira
Gostava de lembrar à dra. Manuela Ferreira Leite e a outros filósofos com grande vocação moralista que o ordenado de alguns jogadores de futebol e de alguns gerentes de bancos não é comparável. Os gerentes de bancos têm para mostrar ao mundo quatro ou cinco fraudes de uma dimensão heróica e o estado miserável do sistema financeiro português. Os jogadores de futebol ganham bom dinheiro aos respectivos clubes e valem por si mesmos num mercado internacional. Só por pedantismo e cegueira se pode lamentar, com um escândalo de classe média letrada (coitada dela!), o que ganham Ronaldo, Nani, ou Pepe.
Sexta-feira
O dia inteiro com Elena Ferrante, “Os Romances de Nápoles”. Depois falaremos.
Sábado

Um primeiro-ministro (alegadamente), um ministro e uns tantos chefes de gabinete e de “adjuntos” foram acusados de se ornamentar com títulos académicos que, de facto, não tinham. Isto não se compreende. Primeiro porque há por aí milhares de licenciados e centenas de doutores que comprovadamente não sabem ler, nem escrever e que não servem nem para caixas de supermercado. Segundo, porque o exercício de cargos políticos não exige (e seria absurdo que exigisse) qualquer habilitação formal. A explicação da mascarada curricular da pobre plebe que hoje rodeia os governos, de esquerda ou de direita, é outra. Antigamente, na média burguesia letrada toda a gente conhecia toda a gente desde o liceu ou da faculdade. Agora, o pequeno universo das profissões, da universidade e da política está cheio de aventureiros, cuja única família e o único vínculo são os bandos de que fazem parte e, quando por acaso vêm à superfície, esses produtos da oportunidade e da desordem precisam de uma qualquer desculpa “respeitável” para continuar pacificamente as suas maquinações.

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