O meu marido, que está sempre a par das notícias,
mostrou-me hoje, com um ar radiante, um jornal Online - Observador.pt – gratuito, ao que parece, e
onde Vasco Pulido Valente assenta, senhor absoluto nos seus
considerandos críticos, mestre com um peso de sabedoria e de humor que apetece
venerar, ainda que por vezes dele se discorde na sua olímpica displicência,
como se não tivesse nascido do mesmo barro daqueles que parece desprezar. Fizera
falta, todos estes meses de “sabática”. Ao que parece, voltaria para o Público,
mas por enquanto não sucedeu.
Vi, pelo seu ar de descoberta, quanto também o meu marido sentira a sua falta, pois
se outras escritas aprazíveis vão alimentando o nosso equilíbrio diariamente, o
certo é que ninguém substitui ninguém, na questão da personalidade literária e
todos fazem parte dessas emoções diárias para quem se vai recreando e reagindo “tant
bien que mal” aos nossos “instantes galhardos”, geralmente vividos no
sobressalto e no suspense de uma empatia muitas vezes reticente.
Enquanto as estruturas oficiais jornalísticas o
permitirem, continuarei, pois, guardando no meu blog estes nacos de prosa de Pulido Valente, como uma formidável
arma de desmistificação dos nossos tantas vezes absurdos comportamentos, mais
ou menos visíveis, que os textos críticos desmascaram. De forma poderosa, os de
Vasco Pulido Valente.
Vasco Pulido Valente
Observador, Jornal online
31/10/16
Segunda-feira
Não há dia em que não apareçam por aí
super-portugueses de pescoço dobrado para Marcelo lhes pendurar um colar
qualquer. Ultimamente foram o “menino de ouro” do futebol, Renato Sanches,
condecorado em Itália com este nobre título; Jorge Moreira da Silva, um senhor
do PSD que a OCDE resolveu nomear director-geral; e uma selecção de mulheres
que ganhou não sei o quê. Até Jaime Nogueira Pinto publicou um livro chamado
“Cinco Homens que Abalaram o Mundo”, em que patrioticamente incluiu Salazar,
quando se pode escrever a história da Europa desde o século XVII para cá sem
mais do que umas páginas (poucas) sobre Portugal.
Dizem os políticos que o culto dos super-portugueses,
desproporcionado e tolo, serve para encorajar a ralé que por aqui
miseravelmente se arrasta a grandes cometimentos, que a seu tempo salvarão a
Pátria. Não ocorre a ninguém que as maiores façanhas nacionais não passam de um
murmúrio que só ouve uma minúscula parte da humanidade e não têm o menor efeito
fora do pequeno país que por má sina nos calhou. Pelo contrário, os
super-portugueses animam o indígena a viver vicariamente a glória alheia ou a
fugir de cá a sete pés. Afinal Ronaldo joga no Real Madrid, Mourinho treina o
Manchester United e António Guterres não é secretário da Associação 25 de
Abril.
Terça-feira
Marcelo, segundo ele próprio confessou, tinha muita
curiosidade em conhecer Cuba e o assassino que os cubanos por lá conservam e
que há 50 anos usava o nome de Fidel Castro. Não devemos tirar estes prazeres
ao nosso Presidente, mesmo sem saber qual é a nossa política externa — para
além evidentemente da ocasional caravana de mendicantes a pedir uma esmolinha
por amor de Deus — e quem a faz.
Quarta-feira
Passei a tarde de ontem a ler o livro de Sócrates, “O
Dom Profano – Considerações sobre o carisma”. Que dizer da coisa, senão que o
próprio autor chega ao fim de 152 páginas (letra grande, mancha larga) sem,
confessadamente, saber ao certo, ao certo, do que está a falar? Aparte isso,
Sócrates, como era de esperar, usa a técnica do aluno cábula e sem ideias. “O
Dom” dele é de parafrasear e comentar meia dúzia de cavalheiros respeitáveis
(Weber, Cassirer, Kojève e por aí fora) e citar dezenas de outros por
empréstimo, ou seja, porque já vinham citados no pouco que ele leu. Este método
iria inevitavelmente acabar por produzir uma enormíssima trapalhada:
repetições, contradições, despropósitos e vacuidades, com muito erro pelo meio
e algumas sentenças de Sócrates, que roçam o vexatório. Apesar dos recados
políticos e de um ou outro disfarçado aceno a um público imaginário, não se
percebe por que razão o indivíduo escreveu este livro. Sonhará ele ainda vir a
ser o “líder carismático” do futuro? Suspeito que sim.
Quinta-feira
Gostava de lembrar à dra. Manuela Ferreira Leite e a
outros filósofos com grande vocação moralista que o ordenado de alguns jogadores
de futebol e de alguns gerentes de bancos não é comparável. Os gerentes de
bancos têm para mostrar ao mundo quatro ou cinco fraudes de uma dimensão
heróica e o estado miserável do sistema financeiro português. Os jogadores de
futebol ganham bom dinheiro aos respectivos clubes e valem por si mesmos num
mercado internacional. Só por pedantismo e cegueira se pode lamentar, com um
escândalo de classe média letrada (coitada dela!), o que ganham Ronaldo, Nani,
ou Pepe.
Sexta-feira
O dia inteiro com Elena Ferrante, “Os Romances de
Nápoles”. Depois falaremos.
Sábado
Um primeiro-ministro (alegadamente), um ministro e uns
tantos chefes de gabinete e de “adjuntos” foram acusados de se ornamentar com
títulos académicos que, de facto, não tinham. Isto não se compreende. Primeiro
porque há por aí milhares de licenciados e centenas de doutores que
comprovadamente não sabem ler, nem escrever e que não servem nem para caixas de
supermercado. Segundo, porque o exercício de cargos políticos não exige (e
seria absurdo que exigisse) qualquer habilitação formal. A explicação da
mascarada curricular da pobre plebe que hoje rodeia os governos, de esquerda ou
de direita, é outra. Antigamente, na média burguesia letrada toda a gente
conhecia toda a gente desde o liceu ou da faculdade. Agora, o pequeno universo
das profissões, da universidade e da política está cheio de aventureiros, cuja
única família e o único vínculo são os bandos de que fazem parte e, quando por
acaso vêm à superfície, esses produtos da oportunidade e da desordem precisam
de uma qualquer desculpa “respeitável” para continuar pacificamente as suas
maquinações.
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