sexta-feira, 7 de outubro de 2016

“Onde morre a vergonha nascem os expedientes desonrosos”


Eis uma frase em epígrafe, na mesma página do escrito de João Miguel Tavares, que segue. É de Camilo Castelo Branco (1825-1890) e bem se aplica, aliás, propositadamente, (em “Escrito na pedra”),  ao tema focado pelo articulista – o Metro de Lisboa, como símbolo da nossa indigência em vários níveis. Daí que a use para título do meu comentário, embora ela abranja igualmente o outro artigo da página  - “Petróleo sobe mais de 5% com corte de produção da OPEP”, de João Pedro Pereira, sobre mais umas manigâncias encarecedoras do dito petróleo, a partir de Novembro, pelos países da Organização dos Países Exportadores de Petróleo.
João Miguel Tavares informa, pois, sobre a série de deficiências suportadas pelos usufrutuários dos meios de transportes colectivos, que culminam na paragem total ou parcial dos mesmos por greves, deficiências, ao que parece, nunca tão vincadas como hoje. (É, de resto, uma desordem que temos suportado, ao longo de todos estes anos de democracia, que o povo deve aguentar bem, pois que é para seu bem que as greves se fazem, além de que é o povo “quem mais ordena”, por intermédio dos seus sindicatos).  Todavia, agora que os representantes do povo se encontram à testa da governação, já não se fabricam tantas greves como muito bem nota José Miguel Tavares - do que, aliás,  igualmente déramos conta, como única característica positiva subjacente a este governo, as outras características apontadas por Miguel Tavares provenientes em grande parte, da falta de fundos que o decréscimo económico provoca, mau grado o ar sorridentemente enganador do 1º Ministro.
Trata-se, pois de um artigo bem esclarecedor sobre os sinais do actual falhanço governativo, que se reflectem nas misérias descritas por João Miguel Tavares, no artigo sobre os transtornos vários dos transportes públicos por ele próprio experimentados, agora perante a impassibilidade dos responsáveis governantes e dos media, escondendo as escrófulas com astúcia enganadora, que não engana ninguém:

A vergonha do metro de lisboa
João Miguel Tavares
Público, 29/9/16
Se alguém tivesse dúvidas de como este país roça por vezes os limites da indigência política, económica, sindical e mediática, o actual estado do Metro de Lisboa estava aí para o provar. Embora eu corra o risco de desiludir todos aqueles que estão convencidos de que sou um beto de Cascais com motorista e caddie, a verdade é que passo a vida a andar de metro. E desde que vim para Lisboa, há 26 anos, não me recordo de algum dia o serviço de metro ser tão mau como é actualmente.
Nós já conhecíamos as escadas rolantes que não rolam. Experimentámos carruagens a abarrotar. Vimos os comboios da Linha Verde diminuírem de quatro para três composições ao mesmo tempo que o turismo explodia em Lisboa. Deparámo-nos com obras na estação do Areeiro dignas de Santa Engrácia. Aguentámos intermináveis problemas técnicos na Linha Azul e envelhecemos a escutar avisos de que “o tempo de espera pode ser superior ao normal”. Penámos, e muito, com resmas de greves consecutivas, que nunca foram descontadas nos passes mensais. E a única coisa que podemos celebrar é o facto de essas greves terem diminuído imenso no último ano, apesar da qualidade do serviço ser cada vez pior. Fazer acordos com o PCP traz certas vantagens.
Há duas semanas, contudo, aconteceu coisa nunca vista: o esgotamento de stock dos cartões Viva Viagem. Viva Viagem” é apenas um nome fino para um simples bilhete – o único bilhete que permite entrar e viajar no metro, e que pode ser comprado nas máquinas automáticas. Ou melhor: podia. Agora voltámos ao tempo do trabalho braçal. As máquinas do metro ostentam um autocolante a dizer que não emitem cartões e para distribuir os poucos que ainda há foi preciso reabrir vários pontos de atendimento das estações, onde zelosos funcionários os entregam à mão. Aos utentes resta acertar no átrio onde os funcionários se encontram (não há funcionários para todos) e ir para a fila. Quanto aos turistas, podem sempre apreciar o nosso modo de vida terceiro-mundista, tirando selfies com os indígenas.
A minha questão é esta: por que raio não há bilhetes? Os (poucos) jornais que já falaram sobre o assunto nunca chegaram a explicar. O Metro apenas refere “falhas na entrega” por parte da Otlis, empresa que é um “agrupamento complementar” das várias empresas de transporte a actuar na Grande Lisboa, e que no caso do metro detém o monopólio dos seus bilhetes – ah, como é bom estar nas mãos de um só fornecedor. Aparentemente, ninguém na comunicação social foi ainda bater à porta da Otlis – ou sequer explicou o que a Otlis é – e 15 dias depois a situação não só continua por resolver, como não há prazo definido para a sua resolução. Os sindicatos do Metro, antigamente tão lestos a avançarem para greve, mostram-se agora disponíveis para colaborar num “plano de contingência”, e as televisões, sempre tão lestas a fazer directos à porta de estações fechadas com bilhetes, parecem impressionar-se pouco com estações abertas sem bilhetes.
Felizmente, a página de austeridade foi virada. Não tivesse sido, e o estado miserável em que a empresa se encontra, com comboios impedidos de circular por falta de peças, dever-se-ia a um ministério das Finanças obcecado com o défice, por se recusar a abrir a bolsa para as despesas mais elementares. Como a austeridade acabou, nada disto se passa. O povo é sereno. E, mais importante do que tudo, o metro é nosso. Antes uma empresa pública parada do que uma privada a funcionar.
         


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