terça-feira, 4 de outubro de 2016

Diabolizando…


Extraordinário de contundência sarcástica este libelo acusatório da nossa visão atrofiada sobre a oportunidade económica, que destrói, à partida uma fonte de receita importante para o desenvolvimento, ao invés de o apoiar, gritando aos quatro ventos a maçada que é admitir os milhares de turistas que não dão tréguas à nossa prostração de “mesmice”, já por Eça bem definida, como incúria paspalhona e grotesca, e, como no caso presente, oposição mal intencionada a uma qualquer hipótese de fortalecimento económico, neste caso pelo desenvolvimento turístico. E vá de gritar aos quatro ventos contra as incomodidades do turismo desfazedores das nossas comodidades e interesses,  atrapalhando os nossos direitos à boa paz e às casas da nossa predilecção, por eles ocupadas, a imprensa associando-se, não com isenção mas camaradagem, no plano destruidor do turismo incómodo.
O texto, não de cortês ironia mas de amarga chacota, dá uma achega de apoio a esse alarido atrofiador de uma fonte de receita que queremos desperdiçar, plano que põe o dedo, simultaneamente, nos nossos processos de “enriquecimento” fraudulento, quer através dos “choferes” de praça, percorrendo os destinos dos turistas em desvios vultosos ou atropelando turistas, quer da restauração, servindo refeições mal preparadas, quer dos cidadãos comuns dando falsas informações, além da sugestão de “medidas” governativas a tomar, para satisfazer  os protestos contra os incómodos do turismo.
Deve resultar.
Turismo nunca mais
Talvez por influência da Catalunha, e dos interessantes chalupas que mandam em Barcelona, anda por aí um debate acerca do excesso de turistas sobretudo em Lisboa, um pouco no Porto e não tarda em Salvaterra de Magos. Personalidades de relevo chamam a atenção para a calamidade, com um frenesim proporcional ao relevo que pretendem alcançar. Os media conferem à calamidade a devida histeria. Multidões de anónimos partilham em fóruns (ou fora, para os chatos) testemunhos do horror. Todos juntos procuram responder à decisiva questão: como conseguir menos turismo?
Faz sentido. Numa altura em que todos os indicadores económicos se despenham pelos gráficos abaixo, seria ridículo que um sector destoasse da tendência geral. Enquanto quase pedia desculpa pelo inconveniente, uma secretária de Estado do Turismo já prometeu "afinações" à lei do alojamento local, alegadamente por causa da "preocupação" com a "segurança" e a "higiene". De facto, as preocupações são outras: tentar levar à falência negócios emergentes e acabar com a vergonha que é ver estrangeiros ocuparem-nos as ruas e deixarem aqui o dinheiro deles.
A intenção é óptima, porém insuficiente. Por muitas taxas, taxinhas e regulamentações que os governantes despejem em cima do assunto, os arrogantes dos estrangeiros não cessam de aterrar por cá, alheios ao carisma do comércio tradicional ou sedentos de descaracterizar o comércio tradicional (vai dar ao mesmo). Para cúmulo, continuam a irritar a irmã de Paulo Portas. A menos que, logo na fronteira, se impusesse um imposto de seis mil euros por cada turista excedentário que ouse pretender entrar no país, a coisa não vai lá por decreto. Sobra a sociedade civil.
A sociedade civil pode fazer imenso pela causa. A começar pelos choferes de praça no aeroporto, que até agora apenas são acusados de acrescentar umas voltinhas ao percurso requisitado. De agora em diante, compete-lhes manter as voltinhas adicionais para os primeiros turistas do dia (o contingente adequado, portanto) e acrescentar voltas de 300 quilómetros para os restantes, os quais, após o percurso Portela-Belém com escala na Figueira da Foz, ficariam sem orçamento para as férias e regressariam de imediato aos países de origem. À Uber sugiro que largue as mariquices e abrace este verdadeiro desígnio nacional.
Aos responsáveis da hotelaria cabe admitir somente uma percentagem escassa de turistas (definida previamente em sede de concertação social) e negar com rudeza quarto (ou ceder um canto nos fundos da lavandaria) à percentagem indesejável. Já os proprietários dos restaurantes têm, literal e metaforicamente, a faca e o queijo na mão: basta servirem sem problemas a quantidade decente de forasteiros e presentearem a quantidade indecente com salmoneloses, bruceloses e botulismos em abundância.
E os cidadãos comuns não ajudam? É só quererem. O que custa ao transeunte fornecer simpaticamente informações a meia dúzia de turistas e correr dúzias com indicações falsas ("A noite em Gondomar é um encanto, principalmente depois das duas da manhã...") ou meros insultos ("Olha-me este... Vai para a tua terra, boche de um raio!")? O que custa ao automobilista atropelar ocasionalmente um ou cinco espanhóis de chinelos e mapa perante a indiferença da polícia? E o que custa à polícia inventar transgressões suficientes para destruir as férias de uma família japonesa?
Não custa nada, excepto alguns milhares de milhões de euros que pelos vistos destoavam na nossa gloriosa caminhada rumo à bancarrota. Num instante atingiremos o número perfeito de turistas, que presumo similar ao da Coreia do Norte. E enfim seremos felizes: na Coreia do Norte a felicidade é obrigatória.

Quinta-feira, 29 de Setembro
Apoio ao cliente
Não vejo "telejornais" há muitos anos, tantos que já nem me lembrava porquê. Um dia destes, espreitei um e lembrei-me. Não vale a pena nomear o canal em causa. Basta notar que, no pedaço que segui (cerca de meia hora, suponho que uma pequena fracção da duração total daquilo), levei com representantes dos taxistas a exigirem apoios para não espancar a concorrência e com uma arqueóloga a exigir apoios para visitar o Egipto, alegada "terra dos sonhos" e evidentemente o sonho dela.
Pelo meio, beneficiei de uma bonita e extensa "reportagem" sobre um casal que queria alugar casa no centro de Lisboa. A senhora do casal (o homem, talvez por ter dificuldades de expressão ou vergonha na cara, não falava) reivindicava, no mínimo, um T2 compatível com o rendimento familiar. Pelos vistos, não havia. A senhora não se ficou: com a indisfarçada simpatia do "jornalista", protestou energicamente contra os proprietários que transformavam os apartamentos em habitação turística para - bandalhos - ganharem mais dinheiro. A senhora foi clara: desse por onde desse, ela tinha o direito de morar no exacto local que desejava, mais ou menos como eu tenho o direito a uma moradia em Laurel Canyon. Se bem percebi, a senhora exigia uma realidade alternativa. Ou "medidas". Ou "políticas". Ou - esperem um bocadinho - apoios.
Eis o problema dos "telejornais": estão repletos de portugueses.


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