São constantes as referências negativas a
Donald Trump, e hoje – porquê só hoje? - falou-se de irregularidades na sua
vida privada de Don Juan desligado de preconceito. Num mundo em que os furacões
se encarregam todos os anos de desmanchar a ordem, semeando o caos, a
hipotética eleição deste furacão aparentemente destituído de escrúpulos nem
sequer espanta muito. Mas assusta. Pelo que revela de inconsciência e falta de
valores de uma nação que sempre sobressaiu como potência em tantos ramos da
cultura e da tecnologia, prova de um vigor existencial que se admira. Ao propor
um candidato tão inescrupuloso, na sua actuação e nos seus discursos, bem parece
que essa nação poderosa – ou parte dela - enlouqueceu, ao apoiar uma tal figura
de títere apatetado, sem valores éticos, e desejando impor-se custe o que
custar, qual Peter Ustinov desempenhando o papel de um prepotente Nero, mas sem
a magia hilariante do extraordinário actor. Donald Trump talvez sonhe com ser
Nero, “ou qualquer coisa entre tantas de uma antipatia igual”, como
diria Mário de Sá Carneiro, em diferente contexto. O poder económico cria uma arrogância
absoluta, embora o poder deste Trump também resulte de trafulhice fiscal,
disse-se. Parece que isso não conta. Nem sequer o seu desbocamento nem ainda o
seu despudor de macho. Leiamos o excelente artigo de Jorge Almeida Fernandes,
que põe os pontos nos ii:
Donald Trump e os americanos
Jorge Almeida Fernandes
Público, 25/9/165 (Ponto de Vista)
Temos amanhã à noite o primeiro debate entre
Hillary Clinton e Donald Trump. É o arranque do final da corrida até 8 de
Novembro. É para ambos um confronto de alto risco. Todos esperam um debate fora
dos modelos normais. A regra de ouro de um candidato é não cometer erros. Trump
não funciona assim. Soma gaffes, provocações, indecências e não
teme mentir para lá de todos os limites. O que noutro candidato seria defeito
ou "suicídio eleitoral" nele parece virtude. Os seus adeptos podem
reconhecer que é um demagogo ou um charlatão mas aplaudem essas tiradas — e
tanto mais quanto sejam denunciadas pelos media ou adversários.
Estas eleições são diferentes. Resume The Economist: "Desta
vez não é exagerado dizer que esta eleição não é apenas sobre quem deverá ser
Presidente, mas sobre que espécie de país a América deveria ser."
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O percurso de Trump, que desarticulou o Partido Republicano e agora
desafia Hillary, foi uma surpresa e um facto extraordinário. Os fantasmas da
América mais conservadora não explicam a dimensão e a persistência do fenómeno.
Este faz certamente parte do vento populista que sopra no mundo,
particularmente na Europa. Mas veste "roupas americanas". E tem
uma ressonância particular porque está em jogo a sorte da maior potência do
planeta.
Os temas e o estilo
A campanha
de Trump tem duas vertentes que ele unifica numa mistura explosiva. Primeiro, exprime a ansiedade económica dos "perdedores da
globalização", ferida agravada pela grande crise de 2008. Diz um seu
adepto: "A candidatura de Trump é música celestial aos seus ouvidos.
Critica as indústrias que exportam para o outro lado do mar os seus empregos. O
tom apocalíptico adequa-se à sua experiência vivida no terreno. Ele adora
irritar as elites, o que muitas pessoas desejariam fazer mas não conseguem por
falta de instrumentos."
. Os dados estatísticos não permitem olhar as classes médias brancas
como um todo. Há ganhadores e perdedores, os que se adaptaram à globalização e
os que ficaram de fora. É fundamentalmente esta segunda fracção que é a coluna
vertebral do povo de Trump
A segunda vertente é um estilo que baralha as regras.
O Washington Post lamentou há dias a ineficácia dos "mainstream
media" perante a campanha — de resto, apenas 14% dos americanos se
informam através deles. Parte do eleitorado a quem Trump se dirige partilha
das suas idiotices e provocações — contra imigrantes e refugiados, insinuações
racistas, justificação da tortura, declarações de amor a Putin e outros
ditadores, manifestando, enfim, a mais patente irresponsabilidade na política
internacional, combinando o isolacionismo com brutais ameaças imperiais. Os outros absolvem-no: "As acusações [contra Trump] exprimem
uma instituição ilegítima ou um sistema" que usa o seu poder para os
frustrar. Eles desprezam a elite porque sentem que ela não os escuta e os
despreza. Se as elites odeiam Trump é a prova de que ele está certo.
Transforma em revolta a frustração social e económica: "Nós
contra eles". Dá uma demagógica expectativa de mudança. As elites têm aqui
uma alta responsabilidade: quando ignoram a exasperação popular estão a
preparar um imenso "motim". Escreve o Financial Times: "Nos
Estados Unidos, a elite de direita semeou ventos e agora colhe tempestades. Mas
tal pôde acontecer porque a elite de esquerda alienou a fidelidade de amplos
estratos da classe média autóctone."
Um fascismo americano?
No fim de 2015 começaram a surgir na imprensa americana artigos que
assimilam a campanha de Trump ao fascismo. Há uma interrogação recorrente sobre
a repetição da História: "Poderia [o fascismo] acontecer aqui?"
Robert Paxton, historiador americano do fascismo, preveniu em
Dezembro contra o abuso das analogias históricas. Prefere ver o fenómeno como
um "nacionalismo populista". Mas não encerrou o debate. O historiador
britânico Andrew Roberts apontou Mussolini como "a matriz secreta de
Trump." O neoconservador Daniel Pipes fala em "neofascismo" e vê
Trump como "um perigo interno inédito desde há 150 anos, uma ameaça que
poderia minar a sociedade americana e pôr em causa a posição da América no
mundo".
Outro e mais célebre neoconservador, Robert Kagan, voltou à carga em
Maio com um artigo intitulado "Eis como o fascismo chega à América."
Trump poderia conquistar o poder "apesar do seu partido, catapultado para
a Casa Branca por uma devota massa de seguidores". Se ele vencesse,
"imaginem o poder que teria". Kagan vai votar em Hillary.
Não interessa prolongar os exemplos, apenas sublinhar que não se
trata de um debate histórico mas de um combate político: o termo
"fascismo" serve para sublinhar a "perigosidade política"
do milionário. A América é uma sociedade individualista incompatível com
fascismos.
Escrevendo no fim das primárias republicanas, Jacob Weisberg,
director do Slate, frisa que Trump não tem uma ideologia, é um oportunista. "O
conflito na campanha de 2016 já não é entre Trump e os seus opositores
republicanos: agora, é Trump contra o sistema político americano. (...) Os
fundadores americanos designaram uma ordem constitucional para prevenir o
exercício de um poder tirânico. Podemos crer na eficácia do sistema, mas sem
desejar vê-lo testado desta maneira." Enfim: "Se os republicanos sãos
falharam em eliminar Trump, esta tarefa caberá a Hillary Clinton."
O "factor humano"
"O estilo é o homem." Com a sua vulgaridade, Trump
é um catalisador das frustrações. Ao mesmo tempo, desafia as instituições e a
incerta a ordem mundial. Poderá, se for eleito, abandonar os seus temas — o
ódio à imigração, a islamofobia, o desprezo pelas instituições, o
proteccionismo, o isolacionismo, a hostilidade à NATO e à UE? Talvez os
"tempere" mas renegá-los enfraqueceria a sua base. O seu programa é
uma garantia de conflito entre os poderes.
Fala-se muito no factor "temperamento". A História conhece
demasiados precedentes em que a personalidade dos líderes conduziu os povos
umas vezes à redenção, outras à catástrofe. Egocêntrico, imprevisível e
agressivo, como se comportaria no poder? Anotou Paxton numa entrevista: "O
perigo parece-me ser o risco de bloqueio entre Trump e o Congresso ou entre
Trump e os tribunais, ou que ele assuma acções inconstitucionais e as pessoas
tenham medo de lhe dizer não."
Muitas das suas ideias já entraram nos espíritos e não desaparecerão
tão depressa, mesmo se ele perder. Não seria apenas uma política externa à
deriva o que enfraqueceria os EUA e semearia insegurança no mundo. Também uma
América em convulsão interna seria uma ameaça para "o resto".
Tudo isto parece verdade. Mas, ensina a História, as instituições
americanas sempre acabaram por absorver as convulsões e as ameaças à
democracia. Pode demorar, mas não deixarão de funcionar.
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